Segunda, 10 Agosto 2020 13:06

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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José Domingues de Godoi Filho*
 

“Pai não deixou dinheiro de herança, deixou liberdade, amor pela terra, floresta e sertão... Índio aceita terras dos brancos e as fronteiras, mas quer ser respeitado nas suas”. (AnicetoTsudzawere – Cacique Xavante).

 

A Constituição de 1988 incluiu um capítulo para tratar dos povos indígenas, reconhecendo “a sua organização social, os costumes, as crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Com isso, se contrapôs a posições do tipo “o povo-índios e não índios – perderá seus últimos redutores. Os valores culturais serão tomados pela religião do minério”. No entanto, desde a sua promulgação, aumentaram as agressões aos povos indígenas, as invasões de suas terras e não foi cumprido o prazo de cinco anos para a demarcação de suas terras.
 
O Deputado Jair Bolsonaro, em 1998, declarou ao jornal Correio Brasiliense – “pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios”. Em campanha para a Presidência da República, fez afirmações do tipo “essa política unilateral de demarcar a terra indígena por parte do Executivo vai deixar de existir, a reserva que eu puder diminuir o tamanho dela eu farei isso aí’; e, reiterou, por várias vezes,  “se eu assumir (a Presidência do Brasil) não terá mais um centímetro para a terra indígena”. E, deixou claro que “se eleito eu vou dar uma foiçada na FUNAI, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho. Não serve mais.”  Bem ao gosto do chefe do Gabinete de Segurança Institucional, se manifestou dizendo que “... vamos desmarcar (a reserva indígena) Raposa Serra do Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros”.
 
Os povos indígenas, convocados pelo Cacique Raoni, em janeiro-2020, se reuniram na Terra Indígena Capoto Jarina (MT) e, denunciaram algo que já estava claro: - "As ameaças e falas de ódio do atual governo estão promovendo a violência contra povos indígenas, o assassinato de nossas lideranças e a invasão das nossas terras”.
 
A chegada da pandemia de COVID-19 foi uma pérola para o Governo Bolsonaro, que apoiado por uma política econômica ultraliberal, a mesma adotada pela ditadura Pinochet e que está falindo o Chile, intensificou sua política genocida contra os povos indígenas, comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais
 
Frente ao descompromisso calculado do Governo Federal, o Congresso Nacional aprovou o projeto de lei 1142/2020, que previa a obrigatoriedade da elaboração e execução de um “Plano Emergencial de Enfrentamento à COVID-19 nos Povos Indígenas, Comunidades Quilombolas, Pescadores Artesanais e Povos e Comunidades Tradicionais”. O Presidente Bolsonaro, ouvidos os Ministérios da Saúde, da Justiça e Segurança Pública, da Economia e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, vetou vários artigos alegando ausência de demonstrativo do impacto orçamentário e financeiro. Os vetos atingiram a exigência do direito de fornecimento de acesso a água potável e distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção para as aldeias indígenas. Vetou ainda a obrigatoriedade de liberar verba emergencial para a saúde indígena e distribuição de cestas básicas. Nem pensar a obrigação de executar ações, para garantir a essas comunidades a instalação emergencial de leitos hospitalares e de terapia intensiva.
 
Enquanto isso, de março a junho, a OXFAM divulgou que os 42 maiores bilionários brasileiros aumentaram suas fortunas em US$ 34 bilhões, atingindo US$ 157,1 bilhões; as principais  entidades indígenas, em 07/08/2020, registraram 23339 indígenas afetados e 651 indígenas mortos pela COVID-19, atingindo 148 povos e, culminando com a morte de uma das maiores e respeitadas lideranças indígenas brasileiras - o Cacique Aritana Yawalapiti. Tudo diferente do que defendia e fazia um outro militar o Marechal Candido Rondon. Esse pesadelo precisa ter um fim.

 
*José Domingues de Godoi Filho – Professor da UFMT/Faculdade de Geociências.
Sexta, 07 Agosto 2020 12:43

 

 

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JUACY DA SILVA*
 

Dentro de um dia e meio a no máximo dois dias, ou seja, nesta sexta feira 07 ou sábado 08 de Agosto de 2020, o Brasil atingirá duas marcas tristes e vergonhosas. Serão TRÊS MILHÕES de casos de pessoas infectadas e CEM MIL MORTES, pelo coronavírus.

Esses são os números oficiais que, sabidamente, não representam o tamanho real do problema, pois existe uma enorme subnotificação de dados relativos aos casos de pessoas infectadas, principalmente porque o Brasil é um dos países que menos testes tem aplicado para constatar, rastrear e tratar o número real de pessoas infectadas. Entre os países que testam, tendo como base cada milhão de habitantes ocupamos a 101a. posição.

Se fossem realizados testes de forma massiva como tem acontecido em alguns países da Europa e EUA, as estimativas indicam que o número de pessoas infectadas poderia ser de até dez vezes mais, ou seja, mais de 20 ou 30 milhões de casos e talvez o Brasil estivesse ocupando o primeiro lugar neste campeonato macabro, já que no futebol há décadas não consegue.

Por exemplo, mesmo com a subnotificação o Brasil já, de alguns meses até hoje, ocupa o segundo lugar no ranking mundial tanto em número de casos quanto de mortes. Se o Estado de São Paulo, com mais de 575 mil casos, por exemplo, fosse um país estaria ocupando a quinta posição em número de casos de pessoas infectadas e a nona posição em número de mortes pela COVID 19.

Apesar de que no inicio da pandemia, de forma irônica, demonstrando sua insensibilidade, o Presidente Bolsonaro dizia que a COVID 19 seria apenas uma “gripezinha” e outras bravatas como “ e daí, todos vão morrer um dia, eu sou messias mas não faço milagres”, ao ser questionado certa feita sobre o crescente número de casos e de mortes respondeu também de forma irônica “não sou coveiro”. Chegou até insinuar que as crianças e pessoas que nadassem em esgoto estariam se tornando imunes a COVID 19.

Coube à falta de cuidados e a forma desdenhosa como tratava a pandemia, criticando o isolamento e o distanciamento social determinado por  governadores e prefeitos e fazia questão de circular em público, provocando aglomerações, apoiando direta ou indiretamente, inclusive atos antidemocráticos, sempre sem uso de máscara; dando um mau exemplo, até que em um determinado dia foi diagnosticado com a COVID  19 e teve que ficar isolado por algumas semanas.

Em seu entorno sete ministros e a primeira dama já contraíram o novo coronavírus e diversos integrantes de sua equipe que foram aos EUA acabaram também contraindo o vírus, mas nenhum teve problemas mais sérios, diferente de milhões de brasileiros que sofreram por falta de atendimento e esses CEM MIL que acabaram sucumbindo, ante a falta de leitos de UTI, falta de respiradores, falta de insumos, medicamentos e de pessoal técnico para o pronto atendimento, milhares enterrados em valas comuns, sem nenhuma dignidade e sem sequer poderem ser velados pelos seus entes queridos.

Todos os especialistas não se cansam de enfatizar que faltou ao presidente Bolsonaro a capacidade de liderança neste processo, a quem caberia coordenar e articular os esforços com os governos estaduais e municipais, dando maior celeridade às ações e maximizando os resultados, o que ele não conseguiu fazer, deixando o país perdido e sem rumo, razão pela qual não houve planejamento nem coordenação das ações, aumentando o número de vitimas.

Em meio à pandemia, a única coisa que Bolsonaro fez o tempo todo foi realizar propaganda da cloroquina, medicamento banido como forma de tratamento em diversas países pela sua ineficácia. Descontente com dois ministros da saúde, com formação médica, que se recusaram a alterar os protocolos para que a cloroquina fosse receitada de forma ampla, principalmente pelo SUS, não teve dúvida em demiti-los, colocando em seu lugar um leigo em saúde publica,  apesar de o mesmo ser um general com “expertise” em logística, como ministro interino que já perdura por meses no cargo.

Em meio a esta tristeza do avanço do número de casos que nas últimas semanas quase todos os dias é superior a 40 mil ou até mais de 53 mil e o número de mortes sempre também acima de mil por dia, o Brasil e os brasileiros assistem, entre um misto de vergonha e revolta, diariamente o  noticiário , em que casos e mais casos de corrupção nos Estados, nos Municípios, surrupiando preciosos recursos orçamentários e financeiros, pelas quadrilhas de colarinho branco que continuam agindo dentro e fora das instituições públicas, verdadeiras máfias que sugam a saúde pública há décadas.

A explosão que aconteceu há dois dias no porto de Beirute, que causou a morte , que poderão chegar a pouco mais de 300 pessoas e a, talvez, 10 mil feriados é de longe muito menor do que as mais de 1.500 mortes que tem acontecido todos os dias, nas últimos semanas pelo coronavírus no Brasil e a mais de 53 mil de novos casos em alguns dias. Só nos últimos doze dias foram mais de dez mil mortes e mais de 500 mil novos casos, um drama que nem é notado e nem causa pesar em nossas autoridades.

Todavia, nossas autoridades, como soe acontecer, de forma super rápida demonstraram, corretamente, diga-se de passagem, a sua solidariedade ao povo libanês; enquanto o total das  mortes por covid no Brasil até agora representam  mais de 300 explosões da mesma magnitude que quase destruiu Beirute.

O Japão esta “comemorando”, relembrando os 75 anos do lançamento da bomba atômica que em 1945 destruiu a cidade de Hiroshima, matando 140 mil pessoas, e no Brasil que de março até o inicio de agosto deste ano de 2020 a COVID 19 já matou 100 mil pessoas e até o final do ano ceifará mais vidas do que a bomba de Hiroshima não desperta nenhuma solidariedade por parte de inúmeras autoridades que continuam agindo como se nada estivesse acontecendo de tão grave em nosso país.

Só se fala em reformas, eleições municipais, crise fiscal, equilíbrio das contas públicas, fake news e outros assuntos correlatos, pouca atenção é dedicada `a maior pandemia que está varrendo o mundo e destruindo milhares de vidas e nada é dito sobre como ficará o SUS, já falido, no pós COVID 19.

A situação da crise sanitária no Brasil, a maior desde a gripe espanhola em 1918, há mais de um século, que já era grave, gravíssima antes mesmo da chegada da  COVID 19, piorou extremamente, apesar da suplementação dos recursos orçamentários e financeiros colocados `a disposição da saúde pública e deverá, assim permanecer ou até mesmo piorar no pós-pandemia.

Há poucos dias um médico sanitarista que já foi presidente da AVISA disse em uma entrevista a um canal de televisão, de forma clara e objetiva de que mesmo que a COVID 19 seja controlada e combatida com o surgimento de uma vacina que deve ocorrer talvez no primeiro semestre do ano que vem (2021), a degradação ambiental, principalmente o desmatamento da Amazônia, que segue a passos largos (a boiada continua passando) e as queimadas, contribuirão para que milhões de vírus que convivem com animais silvestres acabem afetando o ser humano, ou seja, o pior ainda está por vir.

O binômio COVID 19 e a degradação ambiental, incluindo o aumento acelerado do desmatamento da AMAZÔNIA e do CERRADO, as queimadas que já estão ocorrendo no Pantanal e nesses dois outros biomas referidos, onde mais de 120 mil ha já foram destruídos e ainda está longe de serem dominadas, bem como as queimadas na Amazônia que deverão ser superior a mais de 4, 5 ou mais vezes do que a destruição do Pantanal, estão afetando a qualidade do ar tanto no Pantanal e áreas de seu entorno, quanto na Amazônia Legal e no Centro-Oeste em geral, tornando o ar irrespirável, como já está acontecendo em Rondonópolis, Cuiabá, Corumbá, Campo Grande e região, quanto em outras regiões mais distantes.

Apesar dos “esforços” dos governos federal e estaduais, incluindo a atuação das Forcas Armadas, através da GLO e do Conselho da Amazônia, presidido pelo Vice Presidente da República, tanto em 2019 em relação a 2018, quanto 2020 em relação a 2019, tanto o desmatamento quando as queimadas aumentaram de forma acelerada.

Entre Agosto de 2019 e junho de 2020 foram desmatados na Amazônia Legal nada menos do que 754 mil ha. Entre 2008 e 2019 a área desmatada de forma ilegal na Amazônia e no Cerrado foi de 2,4 milhões de ha e o desmatamento legal foi ainda maior, uma área de mais de 3,8 milhões de ha.

Outro aspecto grave deste binômio é a situação da falta de saneamento básico que afeta mais de CEM MILHÕES  de pessoas, que não tem água tratada e nem coleta e tratamento de esgoto e nem  coleta regular de lixo urbano, acarretando o aumento de doenças e de pressão sobre um sistema público de saúde já totalmente falido.

Além desses aspectos, o Brasil está longe de cumprir as metas a que se comprometeu junto ao ACORDO DE PARIS, seja relativamente ao desmatamento e `as queimadas quanto `a emissão de gases que provocam o efeito estufa e está mais do que comprovado por diversas estudos e manifestações de pesquisadores e cientistas que os efeitos que advirão das mudanças climáticas, incluindo o aquecimento global, serão muito piores do que todas as pandemias que já ocorreram, inclusive o CORONAVIRUS que ainda não acabou, como imaginam diversas pessoas e governantes.

Além da demanda por atendimento médico hospitalar devido `a COVID 19,  os casos de problemas respiratórios, principalmente em crianças e idosos tem aumentado assustadoramente, nas cidades e áreas atingidas pela fumaça das queimadas que “viajam” centenas de km,  colocando o sistema de saúde pública em colapso e o aumentando o número de casos e de mortes decorrentes de problemas respiratórios.

Segundo o depoimento deste mesmo médico, o déficit de leitos hospitalares, principalmente de UTIs era superior a 40% tendo como comparação o ano de 2008 e mesmo com o aumento dos leitos de UTI para atendimento da COVID 19, não existe nada certo de que a situação possa melhorar após a COVID 19, seja pela falta de pessoal especializado, seja pela falta de medicamentos e, principalmente, pela falta de recursos orçamentários e financeiros, premidos tanto pela corrupção quanto pelo teto dos gastos, afinal, para os doutos entendidos em finanças públicas do Governo Federal e dos governos estaduais e municipais, o “equilíbrio fiscal” é mais importante do que a vida , do que o sofrimento e do que a morte das pessoas.

Se o Brasil tivesse um Sistema público de saúde melhor equipado e em condições de atender de forma rápida e efetiva às pessoas que ao contraírem a COVID 19 precisaram desses cuidados em UTIs e respiradores, com certeza milhares dessas mortes teriam sido evitadas. Foram o que se chama de “mortes desnecessárias” ou “mortes evitáveis”, enfim, tudo isso não deixa de ser uma negligência e desrespeito `a dignidade das pessoas, onde o direito a vida lhes foi negado pelo Estado.

Afinal, para diversos governantes que pensam desta forma, as pessoas tornam-se apenas números, estatísticas, esses governantes não conseguem ver as histórias de vida, as famílias destruídas como está acontecendo em consequência desta pandemia, com o aumento da fome e da miséria, o aumento do número de famílias que estão morando na rua, em baixo de viadutos, de marquises, nas praças públicas, implorando a caridade por um prato de comida, enquanto os marajás da República nos três poderes e nos estados e municípios continuam ostentando e ampliam seus privilégios e mutretas, como as famosas “VI” verbas indenizatórias, vale saúde e outras mordomias mais.

Alguns estudiosos e pesquisadores continuam afirmando que a COVID 19 deverá permanecer ativa em todos os países, em alguns mais e em outros um pouco menos, e uma segunda ou terceira onda não estão descartadas, como já esta acontecendo em alguns países da Europa e da Ásia, mas que com toda certeza o número de casos no mundo deverá ser superior a  25 ou 30 milhões  e de mortes mais de 1,5 milhões ou até dois milhões, até que alguma vacina esteja `a disposição de forma universal para que a população possa ser imunizada, como ocorre com outras viroses.

 No caso brasileiro imagino que até o surgimento da vacina e da imunização ampla da população poderemos ter mais de 20 milhões de casos de pessoas infectadas, tendo em vista que esses três milhões que deveremos atingir dentro de dois dias, representa uma grande subnotificação, como todos os estudos e pesquisas tem indicado e o número de mortes poderá ser superior a 150 mil ou até chegar a 200 mil vidas ceifadas desnecessariamente, caso as pessoas não se precavenham e as autoridades e organismos públicos continuem insensíveis, ineficientes, ineficazes e sem efetividade como ocorre no momento e a burocracia e a corrupção continuem aumentando o sofrimento e as mortes de tanta gente.



*JUACY DA SILVA, professor universitário, titular e aposentado UFMT, sociólogo e mestre em Sociologia. Colaborador de alguns veículos de comunicação social. Email O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. Twitter@profjuacy

Terça, 04 Agosto 2020 14:09

 

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Valfredo da Mota Menezes*

 

Desde a primeira publicação sobre o uso da cloroquina/hidroxicloroquina, como possibilidade terapêutica para a Covide19, surgiram esperanças e dúvidas relativas à sua eficácia. Esperança pelo fato de ser uma medicação que já vem sendo usada há décadas no tratamento da malária e como coadjuvante no tratamento de algumas doenças inflamatórias, sendo assim, já conhecida e manejada pela maioria dos médicos, além de ser barata e acessível; dúvidas pelo fato de que os experimentos iniciais não empregaram a metodologia correta para a avaliação. Na avaliação e no seguimento de qualquer doença é de fundamental importância o conhecimento de sua epidemiologia e, dentro desse conhecimento, saber como ela se comporta na sua evolução natural, isto é, a sua história natural. No caso da Covide 19 já sabemos hoje que, na dependência de fatores internos, principalmente resistência imunológica, as pessoas contaminadas podem ter um curso que vai desde a ausência de sintomas em algumas até a letalidade em outras. Nesse intervalo, cerca de 80 a 90% dos contaminados evoluirão de uma maneira benéfica para cura, independente de quaisquer suportes médicos. Os restantes necessitarão desse suporte para a sua recuperação. Assim, qualquer experimento de tratamento para ser considerado válido deve ser feito com um grupo controle. Sem um grupo controle nunca poderemos afirmar, definitivamente, se a cura se deu pelo tratamento ou pela própria evolução da doença, por casualidade. Na prática cotidiana atual, muitas pessoas têm tomado um coquetel de fármacos composto por cloroquina/hidroxicloroquina, azitromicina e, mais recentemente, ivermectina.  A maioria dessas experiências individuais, divulgadas por quem acredita nos resultados dessa medicação, mostra apenas os resultados “positivos”: “tomei e fui curado”. Seria também importante a divulgação dos casos de não cura que evoluíram dentro do percentual de cerca de 20 a 10%. Não vimos ainda nenhuma divulgação daqueles que tomaram e “não foram curados”. Fica a impressão de que todos os que tomam são curados. Como a doença pode evoluir para a cura espontaneamente, nunca teremos a certeza se os resultados foram pelo remédio ou se foi pelo acaso. Mesmo as publicações científicas que apoiaram essa proposta não foram realizadas com a melhor metodologia para avaliar tratamento. O tratamento foi apoiado com base em estudos não comparativos, não randomizados, estudos com número pequeno de participantes, levantamentos de dados retrospectivos dos pacientes (os chamados “estudos observacionais”) ou em estudos de laboratório (in vitro)1-7 Esses estudos são importantes etapas que servem para levantar uma hipótese: “parece que funciona...”. Essa hipótese deverá ser provada com outro tipo de estudo: o Ensaio Clínico Randomizado. Este é um estudo comparativo, em que um grupo de pessoas, com condições semelhantes (mesmo critério de inclusão), além do tratamento de suporte, toma também o remédio a ser testado e o outro grupo faz apenas o tratamento de suporte ou esse suporte acompanhado de placebo. Com a randomização, isto é, o sorteio dos participantes para os diferentes grupos, o pesquisador consegue distribuir de uma maneira igualitária e uniforme as possíveis diferenças existentes entre os participantes (idade, doenças pré-existentes etc.).

Desde o início da pandemia, toda a comunidade médica mundial vem esperando os resultados desses estudos. Enquanto esses resultados não saiam, os órgão reguladores de fármacos em alguns países, a nossa Anvisa e o próprio Conselho Federal de Medicina (CFM), com base nos primeiros estudos, permitiram aos médicos a prescrição desses fármacos fora da sua indicação de bula (“off label”). A partir dessa autorização, o Ministério da Saúde, alguns Estados e alguns Municípios brasileiros, gastaram milhares (se não milhões) de reais na compra desses fármacos, criando o assim apelidado “Kits Covid.”

Entretanto, parte da comunidade médica relutava em prescrever essas drogas sem a comprovação científica de sua eficácia. Criou-se uma divisão nunca antes vista ou vivida. “Se a única evidência são os estudos primários ou observacionais, vamos segui-los” dizia um grupo. “Em uma doença com tão alto índice de cura espontânea, não podemos causar mais danos com os efeitos colaterais...“primum non nocere”, diziam outros. A divisão aprofundou-se com a politização criada pelos Presidentes tanto do Brasil quanto dos Estados Unidos, os quais passaram a propagandear a Cloroquina/hidroxicloroquina como a droga que salvaria nossas vidas. “Os da direita tomam cloroquina, a esquerda toma tubaína”. Prefeitos e governadores passaram a se apoiar “nessa salvação”. Criou-se uma relativa sensação de segurança para a população que, progressivamente, passou a descuidar das medidas de segurança e, principalmente, do isolamento.

Como essa é uma doença nova, a defesa do tratamento empírico tem a sua lógica. Entretanto, o tratamento empírico deve caminhar até ser alcançado pela ciência. Os resultados dos estudos randomizados começaram a sair mostrando que a ciência já está alcançando o empirismo. Daqui pra frente ou tratamento deixa de ser empírico (ex. Dexametazona) ou deixa de ser tratamento (ex. Cloroquina e Lopinavir-Ritonavir em pacientes internados)8. Os primeiros resultados foram relativos a pacientes internados e mostrou a ineficácia da cloroquina.8,9

Alguns, relutantes, passaram a dizer que: “não, nessa fase já está instalado o processo inflamatório, e não adianta, temos que esperar os estudos de profilaxia”. Pois bem, começaram a sair também os resultados dos estudos com inclusão de pacientes nessa fase precoce da doença e também mostraram a ineficácia da Cloroquina.10-13

Agora não há mais o que discutir! Acabou! Saíram os resultados que todos nos esperávamos. Infelizmente o fármaco não funciona em nenhuma fase. Se era racional o tratamento empírico, daqui para frente passará a ser uma irracionalidade o seu uso. Os estudos mostraram que a principal droga do Kit não tem eficácia. A azitromicina sempre foi uma “dama de companhia”, utilizada para prevenção/tratamento de infecção secundária e está sendo associada com aumento de mortalidade cardíaca. O único trabalho sobre a ivermectina mostra que ela, em alta concentração, elimina o vírus “in vitro”. O álcool, também em alta concentração (70%), mata o bicho. Vão liberar a cachaça?

Está na hora de uma revisão geral sobre o uso dessa estratégia de “tratamento”. Está na hora de os governos/prefeituras/gestores direcionarem os recursos para a testagem ativa, com busca e isolamento dos casos confirmados. Está na hora do CFM e da Anvisa reverem suas orientações aos profissionais de saúde sobre o uso “off label”, como já foi feito em outros países e como recomenda a Sociedade Brasileira de Infectologia14. O que salva vidas é o isolamento social, o uso de máscaras, a atuação dos trabalhadores da saúde e dos essenciais e, aqui em MT, tem sido essencial a atuação do Ministério Público e a ação consequente de um juiz (Jose Luiz Leite Lindote).

 A população, carente de atenção, vai continuar buscando algum apoio. Um desses apoios continuará sendo exatamente o “tratamento” com o “Kit”. Alguém poderá inclusive argumentar que ”se o Presidente usa, se o Ministro da Saúde recomenda, porque esse doutorzinho não quer dar a receita????”. Mesmo com o apoio da ciência, o herói vai virar o vilão da história se não tiver o apoio do CFM e o respaldo da Anvisa.

É emocionante ver e ouvir depoimentos de pessoas que se contaminaram e que, por acreditarem que foram curadas pelas drogas do Kit, mostram sua solidariedade e empatia ao recomendarem que outras pessoas também o façam. Isto é salutar e solidário. Entretanto, não será surpresa se nos próximos meses, alguns oportunistas lançarem alguma “novaina” ou algum “novozol” e usarem essa mesma boa fé do nosso povo, com intenção puramente de ganhar dinheiro.

*Médico, Professor Associado/Medicina/UFMT (aposentado). Doutor em Medicina Interna e Terapêutica/UNIFESP
 

Referencias:
 

1.Philippe Gautret, Jean-Christophe Lagier, Philippe Parola et al. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial Int.J.Antimicrob.Agents. 2020 mar 20,105949

2.Matthieu Milliona, Jean-Christophe Lagiera, Philippe Gautreta,C,et al. Early treatment of COVID-19 patients with hydroxychloroquine and azithromycin: A retrospective analysis of 1061 cases in Marseille, France Travel Medicine and Infectious Disease 35 (2020) 101738

3.Jean-Christophe lagier, matthieu Million, Philippe Gautret et al.Outcomes of 3,737 COVID-19 patients treated with hydroxychloroquine/azithromycin and other regimens in Marseille, France: A retrospective analysis. Travel Med Infect Dis. 2020 june, 101791

4.S. A Meo, D C Klonoff, J Akram. Efficacy of chloroquine and hydroxychloroquine in the treatment of COVID-19 Eur Rev Med Pharmacol Sci.2020 Apr;24(8):4539-47

5.Liu J, Cao R, Xu M, Wang X, Zhang H, Hu H, et al. Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro. Cell Discov 2020;6:16

6.Xueting Yao, Fei Ye, Miao Zang et al.In Vitro Antiviral Activity and Projection of Optimized Dosing Design of Hydroxychloroquine for the Treatment of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2). Clin Infect Dis. 2020Mar 9;ciaa237. Doi:10.1093/cid/ciaa237

7.Leon Calya, Julian D. Drucea, Mike G. Catton et al. The FDA-approved drug ivermectin inhibits the replication of SARS-CoV-2invitro Antiviral Research volume 178,june 2020, 104787

8.Recovery trial: No clinical benefit from use of hydroxychloroquine in hospitalised patients with COVID-19. No clinical benefit from use of lopinavir-ritonavir in hospitalised covid-19 patients.. Disponível em: recoverytrial.net

9. Tang W, Cao Z, Han M et al. Hydroxychloroquine in patients with mainly mild to moderate coronavirus disease2019. Open label randomized controlled trial. BMJ.2020 may 14;369:m1849.doi: 10.1136/bmj.m1849

10.Boulware DR, PPullen MF, Bangdiwala AS et al. Randomized trial of hydroxychloroquine as postexposure prophylaxis for covid-19. N Engl J Med.2020 jun3. Doi: 10.1056/NEJMoa2016638

11. Calleb P. Skipper, Katelyn A. Pastick, Nicole W. Engen et al. Hydroxychloroquine in Nonhospitalized Adults With Early COVID-19. A randomized trial. Annals of Internal Medicine. 16 jul 2020. Disponível em: https://www.acpjournals.org/doi/10.7326/M20-4207#.XxDEYtMbC08.email

12. Oriol Mitjà, Marc Corbacho-Monné, Mari Ubals et al. Hydroxychloroquine for Early Treatment of Adults with Mild Covid-19: A Randomized-Controlled Trial. Clinical InfectiousDiseases. 16 july 2020, https://doi.org/10.1093/cid/ciaa1009

13.A.B. Cavalcanti et al. Hydroxychloroquine with or without Azitromycin in Mild-to-Moderate Covid-19. NEJM.org. DOI: 10.1056/NEJMoa2019014. July 23,2020.

14.INFORME N° 16 DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE INFECTOLOGIA SOBRE: ATUALIZAÇÃO SOBRE A HIDROXICLOROQUINA NO TRATAMENTO PRECOCE DA COVID-19. (17/07/20). Disponível em: https://www.infectologia.org.br/admin/zcloud/principal/2020/07/SBI_Informe_16_HCQ_precoce.pdf

 
Quinta, 30 Julho 2020 12:27

 

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Wescley Pinheiro*
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          Coloquei que sou pai no lattes. Pode parecer estranho, mas eu tenho os comprovantes: uma certidão de nascimento e um ser humano de dois anos e alguns meses correndo e tagarelando pela casa. A estranheza talvez não venha pela comprovação mas por não se tratar de uma atividade profissional, embora seja a única tarefa que consegue com tamanha eficiência o desejado tempo integral (e nesses tempos também a famigerada dedicação exclusiva).
          Não se enganem, não estou reclamando. Nessa experiência há mais realizações que produtividade, há mais aprendizados que ensinamentos, há, sobretudo, um convite ao sensível, ao descontrolado plano de vivenciar uma relação com o outro. O inferno são os outros.
          Mas eu coloquei no lattes não para ser estranho. Registrei por que os tempos são duros. O trabalho remoto demonstra que a ótica da fibra tem grilhões de fibra ótica, a pandemia adoece corpos, mata pobres e encurrala todos nós e todos os nossos conflitos que não refletimos. Estamos trancados em nossas contradições e nossas crianças sentem.
          Coloquei no currículo inspirado nas mulheres militantes que já o fazem. Apresentei esse título que nada pontua porque o tempo de dedicação é enorme e impacta em todo o resto que faço e no que tenho que fazer. Registrei porque muitas colegas mulheres e mães já o fazem, já refletem sobre esses impactos e se organizam coletivamente nos movimentos de Mães Cientistas. Essa é uma reflexão fundamental e que deve ser pauta de toda a classe trabalhadora.
          E essas mulheres pautam tal questão não gratuitamente. Enquanto as tarefas da maternidade são compulsórias, o patriarcado privilegia e coloca o peso da paternidade como opção ou mera responsabilidade legal e financeira, quando muito uma questão moral. É evidente a responsabilização da mulher no cuidado com filhas/os, além de todas as outras dimensões do machismo que envolvem o trabalho e o espaço doméstico.
          As particularidades de mulheres assalariadas nas camadas médias e a inserção no mundo acadêmico não as livra dessas questões e, entre tantas coisas que poderíamos citar, bastaria que pensássemos como o direito à licença maternidade impacta na necessidade de compensação para a progressão funcional com relação à produtividade acadêmica. Esse pequeno exemplo não é circunstancial, mas expressão de algo estrutural.
          Sabendo dessa desigualdade e da necessidade de torná-la ainda mais visível me questionei também se seria acertada a ideia de colocar que sou pai no currículo. Pensei se seria uma ação que, ao invés de pautar essa reprodução, acabaria reforçando a perda do protagonismo. Aprendendo sobre maternidade e paternidade com reflexões críticas de muitas dessas mulheres entendi que não. Percebi que quando nós homens confortavelmente não pautamos a paternidade estamos colocando novamente no colo das mulheres a ultrarresponsabilização.
          Compreendi que se não evidenciarmos que, quando exercida de forma efetiva e substantiva, a paternidade toma tempo e dedicação e o silenciamento disso reforça o não-lugar do homem no cuidado de filhas e filhos, nos colocando de novo na mera função de provedores ( lógica expressa também no tamanho da migalha que é a licença paternidade, mais uma expressão da estrutura).
          O silenciamento sobre a estrutura da não-paternidade coloca na paternidade efetiva um caráter místico e de bonificação, pois quando assumimos nossa função efetiva somos visto com um superpoder, um valor sobre-humano e não como algo que deve ser comum. O que parece elogio (ou como gostam os modistas, um biscoito) é somente uma forma de referendar uma alternativa não-hegemônica como um esforço singular e sacrifício individual.
          Se não é estranho, não posso dizer que não seja desconfortável falar sobre isso. Portanto é ainda mais necessário. Urge ampliar o debate sobre o papel masculino, quebrar a percepção dura do ser patriarcal que nada abala e esgota, realizar a análise dos problemas concretos no cotidiano dessa experiência tão incrível e contraditoriamente limitada pela estrutura que vivemos, pela formação que temos, pelas instituições que construímos.
          Registrei que sou pai no lattes porque no momento de quarentena, numa jornada que orbita a prioridade de acolhimento de um ser de dois anos de idade vivenciando o isolamento social e uma atmosfera de incertezas sociais, escrever uma tese é um desafio. A paciência, a disposição e a sensibilidade de um dia inteiro precisa conviver e dialogar com a noite não dormida e de tentativa de leitura e escrita. O esgotamento é a única certeza. Das incertezas não reclamo. O inferno são os outros.
          Minha paternidade está no lattes porque é preciso debatê-la. Afinal, para que você trabalhe, estude, pesquise, para que você entre num processo de concentração e imersão é preciso que alguém esteja com sua/seu filha/o. Nessa conjuntura, se você está conseguindo produzir as perguntas são: quem está cuidando de sua/seu filha/o está abrindo mão do que para fazer isso? Como fica sua/seu filha/o abrindo mão de sua convivência nesse momento tão difícil? Como ficaram os/as filhos/as de trabalhadoras/es de tantas áreas que não tiveram direito ao isolamento social?
          Coloquei que sou pai no lattes porque discutir paternidade é discutir maternidade, é pensar trabalho doméstico, é refletir sobre rede de apoio, carga mental e, sobretudo, uma sociedade que privilegia determinados sujeitos e papéis.
          Em pesquisa realizada pelo Movimento Parenti in Science, entre abril e maio de 2020, quase 15 mil pesquisadoras/es responderam questões sobre o trabalho acadêmico nesse momento histórico, no estudo intitulado “Produtividade Acadêmica durante a pandemia: efeitos de gênero, raça e parentalidade”. O resultado é esse mesmo que você imagina. Pessoas com filhos produzem menos, entre elas, as mulheres, muito menos, ainda entre esse grupo, a questão racial também impacta na produtividade. A pesquisa versa sobre elementos como o sucesso no cumprimento de prazos, submissões de artigos e sobre a capacidade de realização de trabalho remoto. A análise dos dados demonstra que mulheres negras, com e sem filhos e mulheres brancas com filhos até os 12 anos foram as mais afetadas. Os menos afetados foram os homens brancos sem filhos.
          Embora eu não tenha respondido a pesquisa, de licença para o meu doutoramento, eu estou entre os 79,4% homens com filho que não estão conseguindo produzir como planejaram, número distinto dos 59,9% homens que tiveram a mesma dificuldade mesmo sem filhas/os. Apenas 14,9% de homens com filhos tem conseguido trabalhar remotamente (entre as mulheres o número cai para 4,1%). A pesquisa completa pode ser conferida no informativo do movimento no site https://www.parentinscience.com/. Há outras coisas importantes e interessantes lá como um “Guia Prático para oferecimento de recreação em eventos científicos” (fica a dica!).
          Por essas e por tantas outras coisas discutir paternidade perpassa discutir machismo, patriarcado, masculinidade, desigualdade de gênero, racismo e determinantes de classe. Perpassa por pensar condições e relações de trabalho e, na particularidade desse texto, também adentra o capcioso tema do produtivismo acadêmico e seu caráter de meritocracia abstrata que descarta questões estruturais e cotidianas. Mas há muito mais para pensar o desconforto que é afirmar-se pai.
          Falar de paternidade é quebrar o silêncio e o silenciamento, a insegurança a partir das experiências duras, duradouras e perversas que se alinham desde os conservadores e suas práticas do senso comum até a instrumentalização dos ditos desconstruídos que não enxergam um palmo distante de bravatas manualescas.
          Depois de dois anos tenho começado a superar certo bloqueio emocional para compartilhar as reflexões da experiência da paternidade. Ser pai foi, ao mesmo tempo, o início de uma experiência magnífica, cheia de descobertas, sentido, beleza e cansaço, como também se revelou um momento de rupturas dolorosas com pessoas, grupos, espaços que me eram muito caros no trabalho, na militância política, na convivência pessoal, mas que, após a paternidade, passaram a se revelar ou a se potencializar como lugares e relações hostis diante de um momento que nossa filha, minha camarada e companheira e eu precisávamos.
          A ânsia binarista por encaixar os sujeitos em formatos enquadrados recai não somente entre os setores conservadores, mas também entre a militância imediatista e superficial (mesmo que se apresente diferente), ferindo as pessoas sem a menor responsabilidade com a realidade concreta que se vivencia e imputando aos outros expectativas, cobranças e contradições diante de momentos profundamente complexos, onde tempo e espaço se tornam sensíveis, onde exaustão física e mental se fundem com euforia e amor, onde incertezas e compartilhamentos se entrelaçam com convicções e processos solitários.
          Pessoas do espaço político ao mesmo tempo que enviavam mensagens carinhosas pelo nascimento de uma criança faziam cobranças públicas e me expunham nos lugares dizendo "não saber os motivos do meu sumiço das tarefas militantes". Havia uma clara naturalização da responsabilização da mãe, acompanhada de uma imposição para que eu não vivenciasse a paternidade para cumprir “as tarefas de homem”, ao passo que se construía uma narrativa para ocupar um espaço que eu deixaria, caso assumisse esse papel. As pessoas até diziam que poderiam ficar com minha companheira e nossa filha, exercer a “solidariedade com minha companheira”, mas ela e eu, queríamos nós, juntos naquele momento e não que viessem ocupar um lugar por uma ausência produzida.
          Em meio a enxurrada de emoções que foi o puerpério, perrengues com pediatras, dificuldades na amamentação, noites mal dormidas, humor deprimido, tendo que lidar com trabalho, doutorado, tive que, além de fazer de tudo para ficar ao lado da minha companheira e da minha filha, compartilhando as delícias e dores desses momento, realizando tarefas domésticas para além da divisão que já fazíamos, aprendendo a ser pai e me realizando nesse afeto, precisando ainda lidar com a cobrança do espaço público.
          Foi duro, doloroso e decepcionante. Correr 48 horas por dia, se sentir incapaz, ficar decepcionado com pessoas que eu achei que estavam ao nosso lado, ver minha companheira sofrer com isso, ter que me afastar dos espaços que faziam tanto sentido para mim, mas que agora não me cabiam. Fiquei mal, porque tinha que ficar bem, porque tinha que trabalhar, estudar, não dormir, cuidar da casa, porque me sentia exausto mas não me permitia chorar, afinal, o tempo era curto demais.
          Então mergulhei na parte da minha vida que fazia sentido: minha filha e minha companheira. O espaço de trabalho, estudo e de socialização em geral viraram procedimentais. Ser pai, estar pai todos os dias foi pensar como todas essas coisas que até então como homem só me vinham em reflexão teórica e que, agora, me absorvem na transcendência para um lugar que poderia ser profundamente confortável se eu não ousasse pensar, mas que eu posso escolher tocar nessas feridas, nas minhas, nas da estrutura, nas daqueles espaços que dizem combatê-las.
          Sei que o exercício da paternidade não tem perfeição ou heroísmo. Com todas as dificuldades e descobertas, erros e acertos, limites e possibilidades é o que há de mais humano em mim. É pouco, não me faz especial, muito menos um ser elevado. Não é uma via crucis pois é recheada de prazeres. Oportunistas poderão até me acusar de familista ou de pai performático - como já fizeram - é um risco a se correr, mas um risco que vale a pena. É uma acusação compreensível diante do que é o modelo hegemônico de paternidade e, cá pra nós, embora seja sim doloroso é pouco diante do sofrem as mulheres.
          Coloquei que sou pai no currículo lattes porque é o que mais sou. É o que hoje sou o tempo inteiro. É o que me faz querer outro mundo, outra sociabilidade. É o que me move para falar, para dialogar sobre paternidade, inclusive, quebrando o medo de expor e criando a vontade de expor.
          Por isso, no podcast que realizo toda semana iniciei uma série chamada Miolo de Pai e se você, assim como eu, quiser conversar sobre isso, se você também sente vontade de partilhar, aprender, reaprender e lutar por várias mudanças, desde pequenas coisas como trocadores de fraldas em banheiros masculinos, licença paternidade real, espaços de convivência, creche até a superação de um cuidado repartido e não compartilhado, uma noção de arranjo familiar enquadrado na estrutura produtiva e uma vida que privilegia a produção e não a realização, bom, que bom! Temos muito o que conversar.
          Há muito o que pesquisar, há muito o que estudar, há muito, sobretudo, o que mudar. Por isso coloquei que sou pai no currículo lattes. Façamos isso juntos de nossas crianças e, quando não for possível, nas madrugadas não dormidas até conseguir uma condição digna de ser pesquisador e militante por outra sociabilidade.
          Pessoalmente posso falar que entre horas a menos de sono, muitas trocas de fraldas e uma bagunça inesgotável na casa há também muita felicidade e amor. Mas quem poderá falar o quanto há de verdade naquilo que se vivencia é quem interessa. No caso, uma menina linda, sapeca, cheia de vida chamada Elis. Com ela não tem discurso e atuação que dê jeito, pois para ela a prática é o critério da verdade.
 
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Atenciosamente,
*Paulo Wescley Maia Pinheiro*
*Professor do Departamento de Serviço Social da UFMT - Universidade Federal
de Mato Grosso.*
*Doutorando em Política Social - UnB

Quarta, 29 Julho 2020 16:27

 

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.

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JUACY DA SILVA*

 

“Disse-lhe Jesus: "Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá”, Evangelho de São João 11:25, Bíblia Sagrada.

Desde quando nascemos a única certeza que temos é que um dia a morte vai nos levar desta jornada terrena. Para alguns a morte chega muito cedo, para outros demora um pouco mais e para uns poucos ela se aproxima dos cem anos ou mais.

Todavia, como a morte continua cercada por muitos mistérios e incógnitas, os quais e as quais nenhuma religião consegue oferecer explicações racionais, apenas a fé, que cada pessoa professa ou adere pode confortar , propiciar resiliência e esperança, como com a ressurreição, no caso do cristianismo ou a reencarnação para os espíritas.

Mesmo assim, a morte é rodeada por sofrimento, dores, angustia, não apenas para suas vitimas, mas também para todas as pessoas próximas de quem faz parte desta vida/experiência terrena de quem partiu, principalmente os amigos/amigas e familiares  mais próximos, onde o vazio existencial é preenchido apenas pelas saudades eternas. Com certeza a dor mais profunda que uma pessoa pode sentir é a morte de um ente querido, esta dor nos acompanhar ao longo da nossa existência, jamais nos esquecemos ou esqueceremos as imagens e as lembranças de quem partiu para uma viagem sem volta.

Todos nós somos como passageiros de uma grande nave espacial, em movimento continuo e acelerado rumo ao infinito, nossa passagem aqui, pelo planeta terra, a nossa materialidade um dia terá fim; mas para aqueles que acreditam na vida eterna, na ressurreição, esta permanência aqui na Terra é apenas uma etapa desta grande jornada transcendental, razão pela qual, devemos aproveitar cada momento e cada oportunidade para sermos solidários, fraternos e fazermos o bem, como se diz, não importa a quem.

Moysés Nadaf Neto, era Filho de Pedro Moysés Nadaf (Pedrito) e Marieta Nadaf, neto do saudoso Moysés NADAF patriarca da família, que, juntamente com a FAMILIA BUSSIKI que se interligam, são duas das mais tradicionais famílias de Cuiabá e Várzea Grande, das quais, por adesão matrimonial e demais laços afetivos e de amizade tenho orgulho de participar e pertencer.

Por isso a dor que sinto é imensa, primeiro pela perda/falecimento de seu saudoso pai (Pedrito) também ceifado pelo Coronavírus, homem afeito à família e um ser humano indescritível, afável e amoroso, manso de coração, que há menos de duas semanas nos deixou para ir ao encontro de Deus.

Moyses representa não apenas mais um número nesta estatística macabra que a COVID 19 tem deixado e continuará deixando no Brasil e no mundo todo, mas sim, mais uma vítima que nos deixa precocemente, com tantos serviços prestados, ideias e ideais voltadas e voltados sempre para o coletivo, para o bem comum, para uma medicina realmente humana e humanizada, razão pela qual era muito querido e admirado por seus pares da carreira médica e demais profissionais da saúde em todos os locais e setores em que trabalhou durante sua vida profissional aqui em Mato Grosso, estava sempre na linha de frente desta batalha que é a saúde pública, talvez por isso tenha sido vitima desta pandemia.

Lamentavelmente a COVID 19 continua ceifando vidas, deixando um rastro de sofrimento, tristeza, dor, saudades e angústia em inúmeras famílias no Brasil e centenas de milhares mundo afora.

Moysés Nadaf Neto, era uma ótima pessoa, afável, simples no trato com as demais pessoas, muito humano, solidário, atencioso e um ótimo médico, sempre pronto para atender a todas as pessoas que o procuravam ou necessitavam de seus serviços profissionais.

Convivi com ele, bem no inicio de minha vida profissional, quando cheguei em Cuiabá, primeiro como professor no Colégio São Gonçalo e depois quando ele ainda estudava medicina no Rio de Janeiro e ao longo de décadas aqui em Cuiabá, uma pessoa formidável.

Além do vinculo de parentesco, nossa amizade transcendia esses vínculos, principalmente quando se tratava do diálogo e dos dos rumos da saúde pública no Brasil e outros temas que gostava tanto de conversar longamente.

Uma vida dedicada ao interesse público e a saúde pública. Vai deixar saudades, deixar um espaço difícil de ser ocupado tanto no seio familiar quanto na área da medicina em Mato Grosso.

Que Deus, em sua infinita bondade e misericórdia, receba a sua alma e, ao mesmo tempo, conforte seus familiares, amigos e colegas de trabalho. Viaje em paz , meu caro MOYSÉS NADAF NETO, que Jesus guie sua jornada rumo a eternidade, um dia vamos nos encontrar com certeza!

Você cumpriu galhardamente sua missão aqui neste planeta, grato por tudo o que você fez ao longo de sua tão curta existência terrena! Saudades! Muitas saudades!



*JUACY DA SILVA, professor universitário aposentado, UFMT, sociólogo, mestre em sociologia. Email O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. Twitter@profjuacy

Terça, 28 Julho 2020 12:03

 

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Wescley Pinheiro
Professor da UFMT
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            Já durante essa pandemia uma jovem médica de esquerda com bastante alcance nas redes sociais colocou a foto de Jair Bolsonaro preso em uma camisa-de-força com a seguinte legenda: "Bolsolini comprou um novo terno para o seu próximo pronunciamento".
            Fiquei bastante chocado com a incapacidade de perceber o quão problemático é o teor de um meme com essa conotação. Com muita cordialidade a interpelei sem o tom agressivo que costumeiramente os antagonistas tomam nas redes sociais. Falei para ela sobre quanto é ruim sugerir que Bolsonaro é um doente mental por conta de sua performance como presidente e por seus posicionamentos fascistas.
            Ainda mais, falei como é irresponsável usar um instrumento de tortura para ilustrar um suposto louco, afinal, para quem conhece a luta antimanicomial, sabe bem que é isso que uma camisa-de-força.
            A médica em questão falou que não estava sugerindo loucura, mas sim, da necessidade de limitar os seus movimentos. Com muita paciência argumentei que não me parecia prudente que a gente pudesse utilizar um pau-de-arara como figura para significar a limitação dos movimentos de alguém, assim, a camisa-de-força, algo historicamente imputado à loucura, um processo de tortura referendado como cuidado, não poderia ser vista assim, sendo aquela sugestão não ofensiva com Bolsonaro e com o seu protofascismo, mas sim com todas as pessoas que sofrem ou sofreram violência em manicômios ou nos equipamentos ainda existentes que permaneceram com práticas manicomiais.
            O fim dessa conversa foi isso. Ela não apagou a foto, não respondeu mais, os comentários eram de piadas e todo mundo ali continuou de esquerda, de oposição, de luta e crítico, mesmo reproduzindo um debate ignorante, preconceituoso, violento e estigmatizante sobre saúde mental.
            Já em março deste ano apareceram os primeiros pedidos de interdição de Bolsonaro. Agora, partidos e lideranças de esquerda fazem coro com essa defesa, perpetuando piadas e compreendendo a violência bolsonarista como uma incapacidade de enxergar o mundo com sanidade.
            Achando que estão desmoralizando Bolsonaro, os setores de esquerda continuam a se desmoralizar com ações que apenas jogam para a torcida, viram memes, tornam assuntos pertinentes nas redes sociais, mas que não atingem a estrutura fundamental que perpetua o bolsonarismo e, sobretudo, o projeto ultraliberal no poder. Para ficar ainda mais grave fazem isso aprofundando senso comum e caricaturas perigosas sobre temas que não conhecem, mas que deveriam conhecer.
            Essa forma de encarar as coisas não é nova. Estamos acostumados a tratar o que nos choca como loucura. Não é loucura. Pior, a questão é que além da falta de capacidade política, de valores opressores e da defesa de um projeto genocida ser algo totalmente normal em nossa sociedade, isto é, além do fato de Bolsonaro ser o tipo médio dos sujeitos que reproduzem opressões e negacionismos cotidianamente e isso nada tem a ver com doença, o uso da anormalidade e da loucura como periculosidade e, desta como algo a ser marginalizado, silenciado e eliminado serviu historicamente para patologizar coisas consideradas chocantes para uma sociedade que criminaliza os pobres, que é racista, machista e lgbtfóbica. Em suma, quem costumeiramente foi tido como louco, que teve que ser interditado, que fez uso de tratamentos violentos foram os sujeitos oprimidos.
            A notícia de um pedido de impeachment questionando a sanidade mental de Bolsonaro quando o mesmo comete crimes de responsabilidade fiscal, crimes contra a humanidade, quando tem ligações com milicianos, vive  mergulhado em escândalos de corrupção, retira cotidianamente os nossos direitos, descumpre um calhamaço de artigos constitucionais e reproduz todos os dias posições de racismo e lgbtfobia, enfim, a centralidade na suposta insanidade demonstra a incompetência da oposição lidar com fatos concretos para disputar o poder, mas também revela como muitos que estão lado de cá adoram realizar discursos críticos em diversas áreas, mas estão longe de compreender os impactos do mito da loucura, da lógica manicomial, da medicalização, do tratamento do sofrimento mental intenso como doença individual e da patologização das expressões da questão social como algo fundamental à essa sociedade que dizem querer transformar.
            Tão certos contra o apelo da cloroquina como um lobby da indústria farmacêutica os reprodutores do mito da loucura de Bolsonaro não percebem que caem na mesma armadilha com suas provocações rasas e ignorantes. Tão radicais contra tantos assuntos, continuam a mistificar a saúde mental, reproduzir o velho e carcomido positivismo ou a nova e vencida pós-modernidade.
            Os delírios de Bolsonaro não são fantasias de um surto, mas reprodução de uma ideologia violenta, sua incompetência e apelo ao senso comum não tem nada de doentio, pois é tão somente a premiação da ignorância e da lógica formal-abstrata promovida pela decadência ideológica da hegemonia que se apega a qualquer forma tosca para a manutenção do poder e do lucro. Sua perversão e insensibilidade não são deformações psicológicas, mas características de um fascista, expressões de uma lógica alienada e alienante.
            Bolsonaro não está doente. Bolsonaro representa um projeto e o nosso choque não é e nem deve ser com uma patologia, mas com as estruturas desse projeto. Não é a anormalidade de Bolsonaro e de seu governo o grande problema, ao contrário, é a normalidade de tudo isso, é a naturalização que vai desde o extermínio da população preta, passando pelo encarceramento penal, pelas torturas na ditadura até o aprisionamento em hospitais psiquiátricos.
            Patologizar Bolsonaro é fingir que a tragédia que vivenciamos está apenas nele, é desconhecer que o que o produziu é muito mais complexo que um surto individual ou coletivo e, por fim, é perpetuar a mesma lógica de sempre sobre saúde mental.
            Não se enganem que aqui estou tendo uma visão ingênua, voluntarista ou liberal quanto à Bolsonaro. Não pensem que estou entrando naquela lógica de que "desejar o mal é se igualar a ele". Não é nada disso. Contra o fascismo não cabe nenhuma ingenuidade e nem condescendência. O grave de tudo isso é que essa forma imatura e irresponsável de enfrentar Bolsonaro demonstra o quanto estamos perdidos na capacidade de combatê-lo.
            Não vivemos uma sociedade doente. Vivemos uma sociabilidade em crise, mas que funciona assim desde que se fundou. Vivemos uma sociedade que coloca o lucro em primeiro lugar, onde a vida humana não tem valor fora da exploração, onde negros, mulheres, LGBTs e nordestinos sofrem discriminação, valem menos como força de trabalho, tiveram suas culturas patologizadas e puderam e podem ser eliminados em caso de necessidade do mercado. Vivenciamos uma sociedade do moralismo e do autoritarismo, onde nossas contradições e desigualdades são amortecidas com mentiras, com tiros, com aprisionamento e também com substâncias químicas vendidas nas farmácias.
            Vivemos uma pandemia, mas não estamos numa sociedade doente e nem somos governados por um louco. Não se trata essa sociedade como um remédio, mas sim, se derruba sua estrutura desigual para a construção de algo radicalmente novo. Não se retira o presidente genocida o chamado de louco, mas sim realizando pressão e um trabalho político para desvendar para os nossos aqui de baixo como sua política e esse projeto quer o nosso fim.
            Dentro de um tempo histórico tão turvo é fundamental romper com supostos atalhos que nada mais são do que desvios, distorções apressadas, caricaturas, placebos para fingir que avançamos, enquanto não conseguimos fazer a tarefa essencial: não tolerar a violência, a intolerância e a desigualdade.
            Há males que nem por bravatas são combatidos com ivermectina ou com camisa-de-força Autoritarismo se combate com a força coletiva, com horizonte emancipatório e, por isso, com necessidade de coerência e sem reprodução de preconceitos e de uma lógica conservadora em todas as áreas. Chamar fascista de louco é o terraplanismo da esquerda na saúde mental
 

Segunda, 27 Julho 2020 12:02

 

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Prof. Dra. Alair Silveira
Depto. Sociologia e Ciência Política/SOCIP;
 PPGPS/SES do ICHS/UFMT
 

            O rebento do dia 24 de julho (que foi parido no dia 17 de junho/2020) foi concebido em meados de 2018, quando a então Reitora, Profa. Dra. Myriam Serra, desrespeitou o Regimento do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE). E, apesar do recurso de duas conselheiras exigindo a anulação daquela Reunião, a Relatora do processo (a então conselheira Rosaline Lunardi) recomendou a rejeição ao Recurso, sendo acompanhada pela maioria dos conselheiros, que fizeram “vista grossa” ao ocorrido.
            Com o precedente, o mesmo procedimento foi repetido em uma reunião do Conselho Universitário (CONSUNI), firmando-se como uma prática disponível toda a vez que o conteúdo das propostas e/ou os procedimentos regimentais desagradassem àqueles que presidiam as reuniões dos conselhos superiores. E, assim, “rasgando” regimentos, atropelando ritos regimentais e cassando o direito à manifestação daqueles que se opõem a essas práticas, chegamos ao ápice das arbitrariedades às instâncias colegiadas e aos conselheiros representantes, sob a batuta do conselheiro “nomeado” pelo Reitor-Candidato para dirigir a reunião dos Conselhos no dia 17/06/2020: Professor Dr. Luiz Alberto Esteves Scaloppe. Ironicamente, da Faculdade de Direito. 
            Qual a legalidade de um processo originado sobre o desrespeito às regras do jogo? Qual legitimidade têm aqueles que, de costas para as regras democráticas, participam de um processo construído sobre a arbitrariedade de alguns?
            Deste processo indigno da história da UFMT, três chapas disputaram a consulta no dia 24 de julho. Duas delas encabeçadas por docentes que em 2019, mais uma vez de costas para a Universidade em que laboram, uniram-se ao então Ministro da Educação, Abraham Weintraub (de triste lembrança) para, em detrimento da defesa da UFMT, combinar os meios para dirigi-la à revelia da legitimidade da comunidade acadêmica. Um desses candidatos não somente criou um abaixo-assinado, solicitando a intervenção na UFMT, mas entrou com ação judicial para denunciar irregularidades na consulta, do qual ele mesmo participava como candidato! A terceira chapa, por sua vez, reuniu o atual reitor, cuja prática por protagonismo ou conivência está descrita nos parágrafos acima, devidamente acompanhado daquela que, em 2018, recomendou a rejeição ao recurso que reclamava o respeito às regras do jogo.
            Vê-se, assim, porque a reunião do dia 17 de junho/2020 pariu um processo que foi gerado há muito tempo atrás. Aqueles pré-candidatos comprometidos com a lisura procedimental e com a tradição democrática da UFMT recusaram-se a participar do pleito, engajando-se na sua denúncia. Aqueles que, ao contrário, não tiveram nenhum pudor em articular com Weintraub e contemporizar com os atropelos não-democráticos, alegremente, construíram suas campanhas, beneficiando-se dos recursos deploráveis que a geraram.
            Durante uma campanha virtual, marcada pela conveniência das regras e das perguntas assépticas, os candidatos puderam fazer afirmações sem contestações nem constrangimentos. De fomento às parcerias com a iniciativa privada ao empreendedorismo, da falsa neutralidade entre ideários políticos à cantinela moral da “education”, a campanha passou longe do compromisso com a Universidade Pública, gratuita, de qualidade, democrática, laica e socialmente referenciada. E, menos ainda, com a autonomia universitária e com a altivez que se espera de dirigentes efetivamente à altura da Universidade Pública, pela qual tantos antes de nós lutaram para construir e consolidar!
            De costas para o direito legítimo de voto paritário entre as três categorias da comunidade acadêmica, assim como para o voto presencial e os debates que conformam a história democrática da UFMT, essas chapas antecipavam o protagonismo crítico da maioria dos estudantes, que lhes recusaria apoio, abstendo-se de participar. Dos 18.440 estudantes, nada menos que 81,76% se abstiveram. Amparada em uma Lei cujos fundamentos remetem ao período da ditadura militar, a categoria docente (de 2.398 professores) desfruta de sobrerrepresentação (70%) em relação aos estudantes (15%) e aos técnicos (15%).
            Assim, em uma consulta marcada pelo espectro da intervenção (abertamente pedida por um dos candidatos tempos atrás!), muitos dos eleitores empreitaram-se na areia movediça do voto útil, na crença vã de que o resultado das urnas será garantia de nomeação pelo Presidente da República, cujas credenciais não são necessariamente democráticas!
            Eleito com 2.082 votos de um colégio eleitoral conformado por 22.173 eleitores (estudantes, professores e técnicos), o atual Reitor, Evandro Silva, e a vice Rosalina Lunardi, ainda tem pela frente a consagração no Conselho Superior e a efetiva nomeação pelo Presidente Jair Bolsonaro.
            E, em que pese a felicidade com que seus cabos eleitorais alardeiam a vitória por 66,98% dos votos válidos, há alguns registros a fazer: 1) não há mérito em uma vitória marcada por um processo feito ao preço de rasgar regimentos e interromper a tradição democrática da Universidade; 2) não há mérito em ser ungido reitor pela sobreposição de uma categoria sobre outras; 3) não há mérito em uma vitória construída sobre o atropelo da autonomia universitária; 4) não há mérito em participar de uma página da história da UFMT, marcada pela vergonha; e, por fim, 5) não há mérito em dirigir uma universidade com o apoio de menos de 10% da comunidade acadêmica.

Quinta, 23 Julho 2020 15:13

 

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Por Reginaldo Silva de Araujo*
 

 
          O título desse texto não restringe-se a uma provocação, ou algo do gênero, trata-se de fato de uma leitura política imposta pela realidade na UFMT. Sem rodeios, nem meias palavras: a atual Reitoria da nossa Universidade criou um processo de consulta nos campi a partir da reunião do Colégio Eleitoral que, muito em breve, caracterizar-se-à como farsa.

          O encontro que estabeleceu tal momento contou com um reitor “escondido atrás das câmeras”, anunciando que o debate deveria ser encerrado porque a plataforma de internet que mantinha a reunião não poderia funcionar por longas horas..., uma forma de pressão, para findar o debate. Assim, a mesma plataforma que permitiu ao CONSEPE realizar pelo menos 7 (sete) encontros - sendo alguns deles com duração de até 12 horas, para debater a implantação da flexibilização com aulas remotas na UFMT, no momento de discutir a sucessão da reitoria na UFMT..., “deveria acontecer de forma apressada”.

          Esse mesmo encontro - “feito de forma atabalhoada”, só estava decidindo o futuro da UFMT. Nesse, ocorrido em 17 de junho de 2020, obteve por parte do presidente da plenária o anúncio que o Colégio Eleitoral Especial formado na UFMT, não teria regimento e nem regras a serem seguidas, por não constituir-se como “fórum de debate” no arcabouço da nossa Instituição.

          Desse modo, o dirigente do Colégio, ignorou o artigo 21 do Estatuto da Universidade que faz previsão dessa instância em nossa estrutura, como também, desconheceu as regras previstas nos regimentos das instâncias superiores da Instituição. Na oportunidade, expressou equívocos que revelaram total ignorância quanto ao papel destinados aos membros que compõem a referida instância decisória, como por exemplo, ao afirmar que: “os/as conselheiros/as ali presentes não representam unidades, faculdades e entidades de categorias”.

          O circo de horrores, completou-se quando o presidente da sessão não se constrangeu – no momento de formar a Comissão Eleitoral, em tentar indicar “pessoas de confiança” para conduzir o pleito, anunciando o convite publicamente a um colega docente que revelou-se ser seu compadre.

         Foi nesse cenário, que iniciou-se o atual processo eleitoral, que ocorrerá essa semana, num cenário de dor e mais de 82 mil mortes em nosso país, ocasionadas pela pandemia provocada pela Covid - 19:

              Assim, esse processo traz ainda outras complicações, que gostaria de pontuar:

            A) Candidatos que não dialogarão, tampouco apresentarão suas plataformas de mandato, propostas e projetos para as diversas organizações políticas que compõem a nossa Universidade - Centros acadêmicos e DCE’s, organizações de juventude, grupos religiosos, étnico-raciais, representações LGBT’s, movimentos ecológicos, organizações esportivas, grupos e núcleos de pesquisas e de projetos de extensão, trabalhadores/as técnicos/as administrativos, docentes e outros. Como também, ignorará grupos sociais externos a nossa comunidade que nela depositam expectativas e esperanças para alcançarem condições de existência dignas e possibilitem o bem viver.

           B) Abandonará as urnas eletrônicas fornecidas historicamente pelo TRE, e realizará um processo eleitoral em um ambiente de completa insegurança quanto à licitude no processo de votação. Foi revelado num dos encontros do Colégio Eleitoral que a segurança do processo de votação estaria entre 90 a 95%. Tal revelação foi fornecida pelo servidor pertencente ao setor de tecnologia da STI, responsável pela organização da votação.

          Aqui, cabe um parêntese, não estou afirmando que aqueles que atuam nesse setor sejam incompetentes, pois sabemos que as condições de trabalho nos últimos anos, num cenário de sucateamento, criaram muitas fragilidades em alguns setores da UFMT. Contudo, há dados de realidade que demonstram a incapacidade para sermos os responsáveis por uma votação de tamanha envergadura, por simplesmente não termos expertise nessa área.

            Nesse sentido gostaria de registrar que enfrentamos dificuldades até mesmo para resguardar os dados pessoais dos estudantes da nossa comunidade;

        C) Ignorará a revelação feita por coordenadores de cursos de que o acesso a e-mails e senhas de discentes ocorrem de forma corriqueira em nossa Universidade, e a eleição via internet possibilitará fraudes;

        D) Estabelecerá um maior aprofundamento de hierarquias estabelecidas por alguns colegas docentes na relação com técnicos/as administrativos/as e estudantes, pois o fim do voto paritário colocará em risco a histórica aliança construída entre as três categorias que garantiram, até aqui, que as universidades brasileiras permanecessem públicas, gratuitas, laicas, de qualidade, socialmente referenciada e inclusiva!!!!

             É nesse cenário que os/as candidatos/as estarão correndo atrás do seu voto e do seu apoio. Pois saiba que essa eleição é uma farsa!

         É uma farsa porque, na minha opinião, a próxima Reitoria da UFMT será escolhida pelos coronéis da política mato-grossense e os bolsonararistas que encontram-se de plantão nos poderes Legislativo e Executivo em Brasília. Desse modo, o seu voto cumprirá o papel de legitimar o futuro interventor/a.

          Diferentemente das eleições para Reitoria ocorridas em anos anteriores, ainda que a legislação vigente seja a mesma desde de 1995 (Lei 9.192/1995), oportunizando a eleição de Fernando Nogueira, Paulo Speller e Maria Lucia por duas vezes, Myrian Serra e seu vice Evandro Silva, dessa vez, não haverá respeito à decisão das urnas. O que estou afirmando é que, no dia seguinte à eleição, independentemente do resultado, as três chapas estarão correndo atrás de apoio junto a políticos como Otaviano Piveta, Mauro Mendes, Jaime Campos, José Medeiros, Nelson Barbudo, Welligton Fagundes, e outras figuras que frequentam o Palácio Alvorada, com um único propósito: serem “escolhidas na lista tríplice”.

            Dessemelhante dos pleitos anteriores, em que os/as candidatos/as - eleitos/as e derrotados/as - encontravam-se cientes de que nossa comunidade estaria unificada para mobilizar-se contra qualquer possível usurpador do cargo máximo na Reitoria, dessa vez, sem a histórica legitimidade das urnas, as hienas atuarão.

           Sim, e farão isso porque sabem que a UFMT é uma das poucas instituições públicas em Mato Grosso que não foram aparelhadas com os costumeiros cargos para seus/suas apadrinhados/as, consequentemente, por seus interesses, como fazem a alguns anos na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), Departamento Nacional de Infraestrutura (DNIT), e outras.

        Desse modo, independente de quem será o/a empossado/a, posso adiantar que será subserviente a interesses alheios aos dos estudantes, técnicos administrativos e professores da UFMT.

          Para encerrar, não poderia deixar de lembrar: nós somos sujeitos que costumeiramente tomamos o futuro em nossas mãos, despertando consciências e conquistando corações. Portanto, independente de quem seja nomeado para dirigir a UFMT, estaremos prontos para gritarmos, se necessário for, que não roubarão nossos sonhos e não retirarão nossos direitos!!!!!

 

*Professor Dr. do Departamento de Saúde Coletiva da UFMT– Cuiabá/MT

Quarta, 22 Julho 2020 14:08

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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José Domingues de Godoi Filho*

EPPUR SI MUOVE
(Galileu Galilei)
 
 
Na primeira metade do século XVII, Galileu Galilei, um dos principais formuladores do método científico, foi condenado pelo Tribunal da Inquisição pela acusação de defender que a Terra girava em torno do Sol. O Vaticano reconheceu, três séculos depois, que a condenação foi um erro; no entanto, há ainda quem acredite que a terra é plana, que as mudanças climáticas não estão ocorrendo e que faça campanha contra as vacinas.

A ciência, um dos saberes construídos pela espécie humana, não se pauta pela verdade revelada, mas sim pela compreensão de como a natureza está organizada; pela busca dos recursos necessários para a sobrevivência; por amplificar a capacidade de percepção dos sentidos; por buscar explicações para entender a transcendência humana e ampliar os horizontes de liberdade. Obviamente, a utilização, sem criticidade, da metodologia científica, de suas premissas e limitações pode gerar conclusões que refletem ou levem a imposições de interesses nada defensáveis.

Vivemos num tempo em que a racionalidade está sendo atropelada e ameaçada pela emoção e, a ciência é olhada com desconfiança e desprezo. Contudo, nos dias de hoje, diante das dificuldades para mentir, são utilizadas com insistência, como fez o Governador de Mato Grosso, afirmações falsas e tentativas de desqualificação de quem se contrapõe aos seus interesses, com  o “objetivo de convencer pessoas para quem a distinção entre fato e ficção, verdade ou mentira, já não existe mais”, como ensina Hannah Arendt

Em momentos de instabilidade social, como a situação inusitada que a humanidade está enfrentando, é comum a postura negacionista desse tipo de dirigente, que não cumpre com as exigências do cargo e procura justificativa em discursos conspiratórios insustentáveis. O negacionismo científico se torna perigosíssimo quando a saúde pública está em questão e a atitude dos dirigentes são muito mais políticas e incapazes de encontrar soluções.

Os ataques, a deslegitimação e o desmonte das instituições de ensino superior públicas é a estratégia utilizada para que a sociedade passe a duvidar da produção científica e do trabalho de formação de profissionais nesses lugares. É a era da pós-verdade, “quando os apelos à emoção, a crenças e a ideologias têm mais influência em moldar a opinião pública que os fatos objetivos”

O estudo Evolução da Covid-19 em Mato Grosso: panorama atual e projeções para as regiões de saúde”, realizado por docentes da UFMT, está baseado cientificamente e utiliza métodos e modelos reconhecidos e adotados por outros pesquisadores no Brasil e no exterior. Ao perguntar “qual é a base científica desse estudo” e responder afirmando “não tem nenhuma”, o Governador demonstra que, ou não leu o relatório, ou não sabe o que é o método científico. Em ambos os casos, está procurando, irresponsavelmente, diminuir consensos científicos, agindo por impulso para esconder o não cumprimento efetivo de suas obrigações e ofendendo trabalhadores docentes de uma universidade pública.

A posição do Governador muito bem se enquadra dentro do que afirma Brotherton (1)“Nossas crenças vêm em primeiro lugar. Nós inventamos razões para elas. Sermos mais inteligentes ou termos acesso a mais informações não necessariamente nos deixa menos suscetíveis a crenças deficientes”.

(1) Brotherton, Rob – Suspicious Minds: Why We Believe Conspiracy Theories.Bloomsbury Sigma, 2016.
 
 
 
*José Domingues de Godoi Filho - Professor da UFMT/Faculdade de Geociências.
 
Terça, 21 Julho 2020 10:34

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Leonardo Santos, Prof, do Dpto. de Serviço Social da UFMT, Militante da Corrente Sindical Unidade Classista
 

 

Absolutamente condenável é uma “educação popular sob incumbência do Estado”. Uma coisa é estabelecer, por uma lei geral, os recursos das escolas públicas, a qualificação do pessoal docente, os currículos etc. [...], outra muito diferente é conferir ao Estado o papel de educador do povo! O Governo e a igreja devem antes ser excluídos de qualquer influência sobre a Escola. [...] é o Estado que, ao contrário, necessita receber do povo uma educação muito rigorosa. (MARX, 2012, p. 46)

 

         Dentre tantos dramas, quem defende o caráter público e gratuito das universidades brasileiras tem de lidar com um pensamento endogenista e autocentrado profundamente arraigado nas comunidades universitárias. Por exemplo, diante do drama do atual contexto pandêmico em que vivemos, temos a insistência dos órgãos de direção das universidades em se manter debatendo ensino remoto e consultas sobre processos eleitorais de reitorias... As universidades brasileiras têm demonstrado um rico potencial – na pesquisa e na extensão – de serem linha de frente no enfrentamento desse difícil momento, mas na maioria dos casos suas direções não cumprem o papel de organização dessas iniciativas, seguem fingindo uma volta à normalidade que não coaduna com a realidade e, pior ainda, aproveitam o momento para deferir golpes de sucateamento e privatização, seguindo à risca a linha do Governo Federal.

            A universidade e a educação são um direito social, e como qualquer direito são frutos de interesses contraditórios, alguns antagônicos. Por um lado, é nítido que a universidade e a educação pública em geral não existiriam como as conhecemos sem uma longa história de lutas da classe trabalhadora, permeada de vitórias que fizeram com que o Estado garantisse escolas e universidades públicas. Por outro lado, a educação e as universidades públicas são construídas no intuito de garantir a formação e a qualificação de mão de obra para o capital, e qualquer observação mais atenta entende que nossas escolas e universidades têm uma assustadora centralidade na manutenção da exploração capitalista e das opressões a ela vinculadas, sendo espaços importantes de naturalização dessa sociedade, cumprindo o papel de aparelho privado de hegemonia (COUTINHO, 1994).

            Assim, se o capitalismo transformou as universidades europeias e criou as estadunidenses no século XIX para servir aos seus interesses, as lutas sociais foram indispensáveis para moldá-las de lá para cá, tornando-as mais democráticas, acessíveis e ampliando sua função social a partir das necessidades concretas das classes trabalhadoras. Vale ressaltar o quanto é fundamental para o modelo de universidade que temos hoje a Reforma Universitária de Córdoba, em 1918. A partir da luta se estabeleceu naquela universidade argentina acesso universal e um direcionamento político visando enfrentar as expressões da questão social no país. E não nos parece casual que tais demandas tenham vindo das sociedades latino-americanas. É a partir desse exemplo que nasce a Extensão como pilar da nossa compreensão de universidade. Em suma: entender as escolas e universidades como aparelhos privados de hegemonia não invalida a luta em defesa destas, principalmente calcada em uma educação e uma universidade que possa ir além da reprodução da mão de obra, da “formação para o mercado de trabalho”.

            O destino das escolas e universidades públicas sempre esteve visceralmente ligado à correlação de forças nas lutas de classes. Pensemos que a Reforma de Córdoba nasce na esteira das revoluções mexicana e russa; pensemos que as revoltas mundiais de estudantes em 1968 estava profundamente ligada à crise que se avizinhava e estiveram em muitos lugares unidas às greves operárias; ou ainda, pensemos que no Brasil, após o golpe de 1964 e o desmantelamento das principais organizações partidárias, sindicais e populares, foi o Movimento Estudantil que tomou a dianteira da luta contra a Ditadura. Ainda é válido mencionar que o teor de modernização conservadora da reforma universitária brasileira de 1968 está intimamente relacionado com o contexto de Ditadura e a necessidade de conter o Movimento Estudantil da época.

            Assim, pensando na atual correlação de forças, vemos o quão problemático pode ser o futuro de nossas universidades. A partir de 1968-1973 o capital entra em uma crise estrutural (MÉSZÁROS, 2010) sem precedentes. Como resposta ela engendra um conjunto de medidas que restaura seu poder de classe (HARVEY, 2014) a partir do trinômio neoliberalismo, reestruturação produtiva e mundialização do capital com hegemonia do capital financeiro. Isso significa o fim do padrão fordista e keynesiano do capitalismo global (BEHRING, 2003). No âmbito da educação e das universidades, houve a partir daí um ataque brutal ao seu caráter público e gratuito, um redimensionamento das suas funções, com a defesa agora de uma relação mais direta com o “mercado”, além de uma mudança no perfil dos seus formandos, visando um profissional “polivalente”, mais tecnicista, voltado mais diretamente para os interesses da reestruturação produtiva.

            Se ainda temos escolas e universidade públicas e principalmente gratuitas, isso se dá por conta das lutas travadas por estudantes, professores, técnico-administrativos e demais movimentos que entendem sua importância. No Brasil, políticas como o FIES e o PROUNI nos mostram qual o caráter do Ensino superior defendido pelo grande capital. Mesmo no interior das universidades públicas temos um forte processo de privatização, ancorado na precarização dos cursos e serviços que não são “privatizáveis”.

            Levando-se em consideração que esse processo já tem em torno de 50 anos, não se pode dizer que ele seja necessariamente uma novidade. Contudo, estamos entrando em uma nova e assustadora fase desse mesmo modelo, com a crise capitalista de 2008-2009, o grande capital começou a operar o que entendemos como um novo ciclo de dominação burguesa, um ultraliberalismo que vai acirrar a retirada de direitos, a destruição de políticas sociais e a entrega de riquezas nacionais para “acalmar o mercado”. Para isso se utiliza de toda sorte de iniciativas, mas principalmente do advento de golpes estatais e governos de extrema-direita com tendências fascistas. São levadas à última instância as características privatistas, antidemocráticas e tecnocratas do Estado neoliberal. O Brasil tem sido laboratório para boa parte dessas medidas que se tornam tendência mundial na última década. No âmbito das universidades, que em nenhum momento deixaram de ser atacadas, agora surge uma proposta de golpe final, através do Projeto Future-se.

            Nunca deixamos de resistir. A bandeira de uma universidade pública, gratuita, de qualidade, presencial, laica e “socialmente referenciada” foi construída ao longo das últimas décadas por diversos movimentos, militantes e entidades. E nunca é demais insistir que é graças a esses movimentos que continuamos de pé até hoje. Contudo, dia-a-dia, o capital descortina o seu caráter de barbárie. As possibilidades de luta no interior da ordem, se sempre foram limitadas, principalmente em um país dependente e subdesenvolvido como o Brasil (FERNANDES, 2005), agora se tornam praticamente inexistentes. Uma grande unidade ultraliberal ataca a universidade brasileira, que tem no Bolsonarismo a sua expressão mais nefasta, mas que tem apoio em outros setores, como o “Centrão” do Congresso Nacional e por vezes na “esquerda da ordem” (SAMPAIO JUNIOR, 2014). A Universidade do capital começa a aparecer sem máscaras e sem qualquer concessão democrática ou igualitarista. Ela é socialmente referenciada na sociedade do capital em crise, na barbárie (IASI, 2011)

            O que nos resta, afinal? Nos resta entender que a sorte da universidade brasileira está intrinsecamente ligada à sorte da sociedade brasileira, e que a construção de uma universidade que atenda aos interesses da maioria da população – ou seja, trabalhadores e trabalhadoras, do campo e da cidade, dos povos originários, sujeitos LGBT, das periferias, dos assentamentos e acampamentos, negros e negras, desempregados e jovens – só se dará com a retomada da força e da organização da maioria dessa população, das massas trabalhadoras. Assim, entendemos que mais do que pautas de reformas da educação e da universidade que temos, nos interessa reconstruir uma universidade a partir dos interesses do povo trabalhador, construir uma Educação Popular e uma Universidade Popular, que se neguem a coexistir com os interesses do “mercado”, que se posicionem na luta de classes, contra a barbarização da vida em andamento e pela socialização do conhecimento, da filosofia, das ciências, das artes e da riqueza material e imaterial socialmente produzida. Assim, os projetos de Educação e Universidade Popular são mais uma trincheira na luta contra hegemônica pelo Poder Popular na perspectiva da emancipação humana, são uma trincheira na luta por uma outra sociedade, onde uma outra educação e universidade possam se concretizar.

            Marx e Engels, no seu essencial A ideologia alemã, ao falar do comunismo, nos dizem que

"O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade terá de se regular. Chamamos comunismo ao movimento real que supera o atual estado de coisas.” (2009, p. 52)

 
            Assim, também a Universidade Popular não é um ideal de universidade para um futuro distante, chamamos Universidade Popular ao movimento real que se contrapõe à Universidade do Capital, ao movimento que constrói no hoje as bases da necessária construção de uma educação e universidade para além do Capital. E é de suma importância que nesse movimento, sem hegemonismo e sem autoproclamação, tenha espaço para todas as experiências já existentes e que caminham no mesmo sentido, por vezes isoladas, atomizadas.

            Nos debates que temos feito em torno da pauta de uma Universidade Popular, sempre aparecem questionamentos sobre o utopismo dessa proposta, sobre a necessidade de centrarmos nossa luta contra os ataques do momento, e sobre não idealizarmos um projeto que não tem viabilidade na atualidade. Bem, isso nos parece uma falsa contraposição que nos coloca em uma situação defensiva e desarmada. As experiências históricas no capitalismo nos mostram que é justamente quando as classes trabalhadoras têm organização e projeto próprio, que conseguimos conquistas de direitos. É justamente quando apontamos para a ruptura com a ordem que pressionamos por conquistas dentro da ordem.

            Bem nos disse, há mais de cem anos, Rosa Luxemburgo,

[...] não é a sorte do movimento socialista que está ligado à democracia burguesa, mas, ao contrário, a do desenvolvimento democrático que está ligada ao movimento socialista. [...] a democracia não vai sendo viável na medida em que a classe operária renuncia à sua luta emancipadora, mas, ao contrário, na medida em que o movimento socialista vai fortalecendo-se bastante para lutar contra as consequências reacionárias da política mundial e da deserção burguesa. [...] os que desejarem o reforçamento da democracia devem desejar igualmente o reforçamento, e não o enfraquecimento, do movimento socialista, e que, renunciando aos esforços socialistas, renuncia-se tanto ao movimento operário quanto à própria democracia. (2015, p.97-98)

 
            O século que se passou não desmentiu sua análise. A defesa da atual universidade e educação pública existentes passa não por deixar de lado um projeto de universidade alternativo, pelo contrário, só resistiremos a partir de um projeto de Educação e Universidade Popular!

            É nessa perspectiva que se tem construído nos últimos anos o Movimento por uma Universidade Popular – MUP e o Movimento por uma Educação Popular – MEP. Que já contaram com um Seminário nacional em 2011 e um Encontro nacional em 2014. Atualmente, além de organizados no Movimento Estudantil de todos os Estados brasileiros, o MUP e o MEP se apresentam no interior do movimento docente, seja no ANDES ou no SINASEFE. É apenas o começo, a construção de uma educação e Universidade popular demanda um movimento massivo e muito organizado! E é por isso que neste ano, mesmo com todas as dificuldades acirradas pela crise sanitária, tem sido realizadas Plenárias conjuntas em todos os Estados. Vamos também, no próximo sábado, dia 25 de julho, participar da Plenária do MUP e do MEP em Mato Grosso!

A plenária será online e as inscrições são feitas pelo link abaixo.

https://forms.gle/cVg4ypHLffjmMHbc8

Nos vemos lá!

 
 
REFERÊNCIAS
 
BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contrareforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003.
 
Coutinho, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 1994.
 
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5 ed. São Paulo: Globo, 2005.
 
HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. 5 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
 
IASI, Mauro Luis. Movimento por uma Universidade Popular. Blog da Boitempo, São Paulo, 14 de set. de 2011. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2011/09/14/movimento-por-uma-universidade-popula/. Acesso em: 19 de jul de 2020.
 
LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução? 3 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
 
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
 
MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
 
MÉSZÁROS, István. Atualidade histórica da ofensiva socialista: uma alternativa radical ao sistema parlamentar. São Paulo: Boitempo, 2010.
 
SAMPAIO JUNIOR, Plínio de Arruda. (Org.). Jornadas de junho: a revolta popular em debate. São Paulo: Instituto Caio Prado Jr., 2014.
 
 
Leonardo Santos
Assistente social, CRESS 3ª Região - Nº 6420