Quinta, 20 Agosto 2020 12:37

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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 Por Lélica Lacerda*

 
Imagine uma criança de dez anos, sistematicamente estuprada por quatro anos consecutivos, e grávida. O que seria justo que acontecesse com ela? Reparar e resguardar da violência sofrida, óbvio!

Quais são as consequências desta obviedade? O direito ao aborto legal, em sigilo e segurança, além de receber apoio de saúde física, mental e proteção social para que possa voltar a estudar e se desenvolver.

No entanto, assistimos estarrecidas o caso de uma criança, negra, ser inúmeras vezes vitimizada pela violência patriarcal de pessoas que se autodenominam cidadãs de bem.

Vejamos o "bem" que fizeram estes cidadãos. Os profissionais do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, de Vitória, negaram à menina o procedimento de aborto seguro, infringindo seu direito constitucional à saúde, e mantendo uma gravidez de risco num corpo estuprado, de 10 anos. Isso é omissão por parte dos profissionais, e violência institucional contra a criança.

E não parou por aí. Uma liderança de extrema direita, cidadã de bem, branca, se deu ao direito de divulgar dados sigilosos sobre a sua identidade e o hospital para onde seria transferida, cometendo mais uma violência.

Outras pessoas brancas atribuíram-se o direito de falar em nome de Deus, querendo impor a maternidade a uma criança de 10 anos. Quiseram controlar seu corpo, e a acusaram de assassina por abortar um feto fruto de um histórico de quatro anos de violência.

A cultura de estupro defendida pelo cidadão de bem está entranhada no cotidiano, e até mesmo nos poemas e músicas que retratam a “beleza das curvas da mulher brasileira”. O que omitem é que o corpo da mulher brasileira é talhado pela dor de um capitalismo patriarcal que transpira o machismo em cada dimensão da vida.

Nada disso é fatalidade. A violência contra essa criança negra vem da ideologia de propriedade privada no Brasil, fundada pelo estupro das mulheres não brancas. O senhor de escravo branco, que veio com sua família monogâmica e branca para tomar posse de um imenso latifúndio, demandaria uma linha de poder e violência para manter sua dominação num imenso território e contingente populacional escravizado.

Paralela à necessidade de manter relação sexual com a esposa branca para gerar o herdeiro das terras, fez uso do estupro sistemático dos corpos das mulheres negras e indígenas para gerar filhos bastardos para que garantissem o papel hierárquico entre o senhor e seus escravos.

Assim, as terras deixaram de ser espaços livres e se tornaram propriedade na mesma medida em que os corpos femininos se tornaram propriedade submetidas ao poder patriarcal do senhor. A dominação sexual masculina não pressupunha qualquer consentimento, porque não se atribuía à mulher o status de humanidade. Tratava-se apenas da reprodutora do filho do senhor patriarcal que perpetuaria suas propriedades e poder. A prática do estupro era o meio de tomar posse; assim, o estupro foi naturalizado.

A violência colonial fundadora de nosso país segue ecoando. Somos o quinto pais que mais mata mulheres no mundo, o que mais mata LGBTs. A cada 20 minutos, uma menor de idade é estuprada no Brasil. A média é de que 180 mulheres passam por isso todos os dias.

Nós construímos a noção sobre nossos corpos e sexualidade atravessadas pela dimensão da objetificação. A maior parte só entende o que seja violência física ou sexual pós-fato. Grande parte vive os abusos do patriarcado sem perceber que está sendo violentada! Todo corpo feminino carrega em si marcas do controle e violência patriarcal.

Enquanto sonhamos em controlar nossos corpos, escolhendo entre a maternidade, a contracepção e o aborto para conquistarmos inclusive liberdade sexual e econômica, os fundamentalistas querem tolher o poder e a liberdade a partir do domínio do corpo, impondo a maternidade compulsória, mesmo em caso de estupro, mesmo que a vida da mulher corra riscos.

O fundamentalismo religioso impõe a submissão dos corpos femininos ao poder de dominação patriarcal, e não é por acaso! Quanto mais os trabalhadores são submissos, mais podem ser explorados. É assim que retiram nossos direitos e nossa dignidade.
 
A intensificação da exploração econômica se impõe pelo autoritarismo sustentado pelas opressões. Para ampliar os lucros, vão querer levar os negros de volta para a senzala, as mulheres para o fogão e as LGBTs para o armário... eis o dilema histórico da luta de classes do século XXI. Mas isso não ocorrerá, porque seremos resistência!

 
 
*Lélica Lacerda é professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Mato Grosso e diretora de Imprensa da Adufmat-Ssind  

Quarta, 19 Agosto 2020 15:05

 

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Por Aldi Nestor de Souza* 

 

É uma travessia dolorosa e desafiadora demais a que estamos. É assustador e inevitável seguir em frente, sair na rua. Parece absurdo e imprescindível planejar, ensinar, aprender, dizer alguma coisa.
 
O caso que ocorreu com aquela menina de 10 anos, grávida do tio, abusada sexualmente desde os 6, é estarrecedor, inominável, na verdade. Não disponho sequer de meios para descrevê-lo. Só consigo sentir.  E como se não bastasse o dilaceramento todo na vida anterior da criança, na hora do aborto a que foi submetida, no tormento das 17 horas de cirurgia, consentido pela justiça, mais violência lhe foi imposta. Um festival, uma feira livre de acusações e ameaças aos médicos e a ela própria, foi montado e levado a cabo bem na frente do hospital.
 
Lá dentro, a menina tendo seu corpo ainda mais mutilado, suas entranhas ainda mais fustigadas, um feto sendo arrancado de sua frágil, indefesa e ainda, para ela, incompreensível estrutura física, suas dores ainda mais aprofundadas, sua vida completamente entregue ao limbo da existência.  Lá fora, o fundamentalismo religioso aos berros, empunhando uma bandeira de vida absolutamente conivente com o martírio pelo qual a menina teve que passar. Um fundamentalismo cúmplice do  e que não permite sequer discutir o modelo de família do qual a menina é oriunda e vítima. 
 
E tudo ganhou  ainda mais contornos e pavor quando o médico, diretor da unidade hospitalar onde se deu o procedimento cirúrgico, declarou que trabalha naquele hospital, que fica num bairro de Recife, desde 1996, e que neste período não houve uma semana sem que um caso semelhante ao da menina chegasse àquele hospital. Aí é só multiplicar aquele bairro pelos bairros de Recife, pelos bairros das capitais brasileiras, das grandes cidades, das periferias, das ruas, de todo o país para nos certificarmos, com a mais absoluta precisão, de que convivemos com um massacre intermitente.
 
Essa menina conseguiu chegar a um hospital. Mas tem aquelas milhares que não tem a menor chance de o fazerem e que são obrigadas a se submeter aos chás, às clínicas clandestinas, aos socos, pancadas e pontapés dos seus algozes mais próximos.
 
A impressão é a de que, no Brasil, a qualquer hora do dia ou da noite, em casa, no trabalho, na escola, na universidade, na rua, uma mulher, de qualquer idade, está sempre no corredor da morte, na fila do abatedouro, na mira de alguma arma, prestes a ser dilacerada. E apenas por ser mulher.
 
Que sociedade é essa? Que relações são essas que produzem e naturalizam essa barbárie?
 
Bem, na frente do hospital em Recife teve resistência. Organizou-se um não. O fundamentalismo religioso foi enfrentado ali mesmo na calçada. Teve luta, quando ceder parecia fácil.
 
E aqui farei três breves digressões.
 
Primeira: 110 mil pessoas, oficialmente, sucumbiram diante da covid -19 até agora. Há estudos afirmando que completaremos 200 mil antes de outubro.  Enquanto isso, as portas do comércio seguem cada vez mais escancaradas, os horários cada vez mais esticados, as ruas cada vez mais cheias, e o chefe maior do governo, que zomba das mortes, que brinca com a doença e que tripudia da dor dos parentes em luto, sobe nas pesquisas de avaliação de seu governo.
 
Que sociedade é essa que outorga, ao seu chefe maior, o direito a tamanho escárnio com a vida? Que relações são essas que impõem tanto silêncio e calmaria diante desse genocídio? Os trabalhadores da saúde foram à frente da sede do governo empunhar suas cruzes e fazer suas denúncias. Os trabalhadores dos aplicativos, os dos correios, os do metrô de São Paulo, os dos transportes coletivos de Juiz de Fora já disseram não. E fazem resistência, fazem greve.  57% dos estudantes brasileiros avaliam o presidente da república como ruim ou péssimo.  Portanto, há luta, mesmo quando parece tão fácil ceder.
 
Segunda: enquanto essa garota enfrenta seu suplício, o governador de Minas Gerais autorizou um massacre contra 450 famílias, acampadas há vinte anos numa fazenda que faliu e cujo dono não pagou os direitos trabalhistas a mais de dois mil trabalhadores. A polícia e seus canhões foram mandados até o local e principiaram a demolição e a expulsão. Destruíram uma escola, puseram fogo no assentamento, empunharam as armas, rumaram a tropa de choque e os blindados. E tudo isso em plena pandemia, quando qualquer ordem de despejo deveria ser crime.  A resistência, claro, foi inevitável. Trabalhadores e trabalhadoras, crianças, velhos, velhas não tinham outra alternativa a não ser empunhar enxadas e bandeiras e enfrentar as metralhadoras, os fuzis, os cassetetes, todo o aparato bélico do governador. Lutaram, quando ceder parecia tão óbvio.
 
Para onde iriam ou vão essas 450 famílias? E dos mais de 20 anos de plantio, de colheita, de luta, de solidariedade, o que iria ou irá ser feito?  Que país é esse que permite essa violência, essa catástrofe com o seu povo? Que relações são essas que produzem e naturalizam a barbárie da exclusão e da desigualdade social? Que relações são essas que criminalizam quem luta por reforma agrária, por direitos humanos, por um lugar pra viver e trabalhar? A luta, quando é fácil ceder, dirá a resposta.

Terceira: as trabalhadoras da limpeza da UFMT ainda não receberam, e não sabem se vão receber, o salário do mês de Junho. E já estamos em Agosto. Sem contar que, de Junho pra agora, houve uma troca da empresa terceirizada e elas tiveram que conviver com o suplício de serem demitidas, com a incerteza de conseguir um novo emprego e com a certeza, como de fato aconteceu com algumas, de não serem contratadas pelo novo patrão. São pessoas que ganham um salário mínimo, que convivem com as mais profundas privações de direitos, que moram longe, que pagam aluguel, que são invisíveis, que ninguém sabe o nome, que limpam as privadas da universidade, que mal sabem ler e assinar o nome. Aquelas com mais de sessenta anos foram orientadas a ir pra casa em Março, por conta da pandemia e por serem do grupo de risco. Foram, mas logo em seguida foram demitidas com a alegação de serem velhas demais e que por isso a universidade as descartava.
 
Que universidade é essa? Que tipo de conhecimento e de profissionais podem emergir de um lugar como esse? A serviço de quem estão essa casa grande e sua senzala? Que relações são essas que produzem e naturalizam essa barbárie bem do lado das pessoas que mais estudaram e que são as mais bem tituladas da sociedade?
 
Ano passado, mesmo sem ter estudo, mesmo sem ter nenhuma organização sindical que as proteja, essas mulheres reagiram, cruzaram os braços, descansaram as vassouras, fecharam a universidade e exigiram o pagamento de seus salários. Lutaram bravamente numa situação em que ceder não era apenas fácil, era a palavra de ordem. 
 
O Brasil é o resultado de um massacre, diz Darcy Ribeiro. E foi forjado à base de moinhos de gastar gente. Gente tratada como sacos de carvão. Gasta-se um saco, imediatamente põe-se outro no lugar, sem qualquer pudor ou cerimônia, para queimar e alimentar as relações que impõem essa barbárie e dizimam, particularmente, o povo mais vulnerável.
 
Florestan Fernandes diz que a burguesia brasileira é demente. No sentido que a mesma já nasceu subserviente e conivente, com interesses que habitam o outro lado do mar, e se mantém assim até hoje. Por outro lado, essa mesma burguesia é autoritária, violenta, sempre pronta e disposta a usar a força e submeter o povo brasileiro às mais cruéis agonias e atrocidades.
 
Como é que essa menina, depois de tudo isso, vai voltar a pensar em algum normal? O que é o corona vírus para quem foi estuprada desde a mais tenra infância?  Como é que ela vai voltar a falar com o pai? Com os tios? Com os irmãos? Com os amigos? O que é família pra essa menina? Como é que ela vai voltar à escola? Como é que ela vai sair na rua? Que dor é essa que essa menina sentiu?
 
Como é que aquelas 450 famílias, aquele assentamento, aquela escola, aquela plantação  vão se refazer agora? Que armas estão apontadas pra elas nesse momento?
 
Como é que as trabalhadoras da limpeza da UFMT vão pagar as contas de junho? E que planos elas tem pro futuro? Que cursos pretendem fazer? Cursos? Que carreira pretendem ter? Carreira? O que é o Brasil para elas? O que é a UFMT para elas?
 
Arrisco-me a dizer que a violência dos três casos é a mesma.  É a violência fruto das relações que enxergam e tratam as pessoas apenas como mercadorias, como objetos, desprovidas portanto de quaisquer humanidade, sentimento, poesia, sonhos, planos, alegria, dignidade, vontade, prazer, arte.
 
Superar essas relações, caminhar na direção de alguma emancipação humana, lutar quando é fácil ceder, é o que nos resta, como trabalhadores e trabalhadoras, a fazer. Não temos outra alternativa. E talvez, me arriscando num passo bem concreto, é urgente apelarmos pra nossa sensibilidade, pra nossa consciência e pra nossa convicção de que essas causas, essas dores, essas violências, como as acima citadas, são indiscutivelmente nossas, são feridas abertas em nós.
 
E quem somos nós? Somos, dentro da sociedade brasileira, aquela parte não demente, no dizer de Florestan, somos aquela parcela para a qual só resta a alternativa da luta organizada e que tem a obrigação histórica, como diz a canção, de:
 

Sonhar mais um sonho impossível
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
 
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
 
É minha lei,
é minha questão
Virar este mundo,
cravar este chão

Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
 
Amanhã se este chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu
Delirar e morrer de paixão
 
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão
 
 
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT-Cuiabá
Diretor geral da ADUFMAT
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Quarta, 19 Agosto 2020 11:12

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá
Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP
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            Neste momento pandêmico, não podendo dizer, como é dito na música, “...que fui por aí// levando um violão, debaixo do braço”, pus-me a reorganizar o espaço de meus livros. Na trabalheira, dois deles me chamaram para reler algumas de suas páginas.
            De um, antes de dizer o seu título, farei um teste de memória sobre nossa vida pós- golpe/ditadura/64, perguntando: em nosso processo de redemocratização, dos presidentes eleitos, houve quem tornasse central o discurso messiânico e o clamor ao sagrado?
            Claro que o “sim” foi a resposta de todos; de trás para frente, Bolsonaro e Collor. Não que outros, inclusive Lula, não invocassem a Deus, a depender da conveniência. Esse é o tipo do apelo emocional para qual a maioria de nosso povo está sempre receptiva. Há muito, a semente parece ter sido plantada, de fato, em terra tornada fértil.  
            Já que aludi à parábola bíblica do Semeador, agora, sim, revelo o título do primeiro livro: Fernando Collor – o Discurso Messiânico e o Clamor ao Sagrado, escrito por Olga Tavares e editado pela Annablume, SP, em 1998. Em sua p. 92, é possível ver o registro de Collor recorrendo ao cerne de importante (quiçá o primeiro) discurso fundador de nossa nação:
            “Manhã de 26 de abril de 1500. Poucos dias após o descobrimento, foi realizada num altar improvisado, na beira da praia, a primeira missa em território brasileiro, pelo Frei Henrique Soares Coimbra. Naquele dia, minha gente, ficou marcado nosso compromisso com Deus, o nosso compromisso com a fé...”.
            Dali em diante, quase tudo foi (e tem sido) feito “Em nome do Pai”. Dos discursos de Collor, alguns tópicos eram recorrentes, como: a) “construir um Brasil novo”; b) “combater a corrupção e a impunidade”; c) “ter coragem e força”; d) “enfrentar os marajás (termo imputado, principalmente, a funcionários públicos); e) “vencer os inimigos” (leia-se, preferencialmente, os comunistas).
            Alguma semelhança aos discursos de Bolsonaro?
            Praticamente tudo, excetuando a superioridade intelectual daquele, que não contava com Pedro “no meio de seu caminho”. Pedro foi o irmão de Collor que denunciou o esquema de PC Farias, estranhamente morto em um motel.
            Até onde sei, Bolsonaro não tem irmão chamado Pedro, mas tem pelo menos três pedras familiares em seu caminho; isso se ele – por si – não se consolidar como sua própria e maior pedra. Motivo: há muitos amigos “estranhos” ao redor de seu clã, sem contar o miliciano que já foi assassinado na Bahia. Tudo isso tem dado forma a uma nuvem pesada, da qual pode cair estrondosa tempestade, quiçá, muito parecida com aquela já experimentada por Collor.
            Falando do clã Bolsonaro, acabo de conhecer a “Carta ao Futuro”, música gravada pelos Detonautas, composta sobre (mais) este trágico momento político vivido no Brasil:
            “O indiferente não se importa, ele só quer poder// Fará o possível e impossível pra permanecer// Como um inseto pestilento em reprodução// Fatia o bolo entre a família sem preocupação”.
            Que ironia! Quanta farsa!
            Quase sempre a família está no centro dos interesses, e desde há muito tempo. E em nosso processo de redemocratização, a farsa de alguns – “terrivelmente cristãos” – derruba as máscaras justamente dos dois que mais esfregaram a Bíblia na cara de todos; que “em nome do Pai” se consolidaram como “salvadores” de uma terra arrasada, onde pulula (ops!) uma ignorância sem limites, talvez, desde o dia em que “ficou marcado nosso compromisso com Deus, o nosso compromisso com a fé...”.
            Resumindo a ópera, um já experimentou a humilhação do impeachment. O outro tem experimentado, a cada dia, a explicitação de seus reais interesses, que poderão levá-lo a um final pouco honroso, ainda que um aparente acordão das elites dos três poderes parece já estar em curso. Pelo sim, pelo não, o senhor Messias poderá ter de fazer milagre, mesmo dizendo não saber fazer isso, pelo menos não para evitar tantas mortes de brasileiros por Covid-19.
            O título do outro livro de que falei acima é Para compreender a ciência – uma perspectiva histórica, de Maria Amália Andery et alii, publicado pela EDUC, em 2002. Dele, por conta do que estamos vivendo no Brasil, destaco o capítulo 1, da Parte I, e a totalidade da Parte II: “Fé como limite da razão: Europa Medieval”.
            Diante da riqueza desse livro, finalizo, perguntando: como é possível, em pleno século 21, existir alguém – que influencia em ações de um governo – defender que a Terra é plana? Por consequência disso, como é possível, nesse mesmo governo, manter-se no silêncio um brasileiro – aliás, até agora, o único – que teve o privilégio de ter vagado pelo espaço e, portanto, ter visto a Terra lá de cima, obviamente redondinha, assim como as bolas de futebol, que, há décadas, ajudam a anestesiar uma nação inteira?
            Até onde desceremos?

Terça, 18 Agosto 2020 13:32

 

 

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JUACY DA SILVA*


Não bastassem a corrupção que continua roubando preciosos recursos que deveriam ser destinados `a saúde publica e `a  presença da COVID 19 que continua infectando, trazendo sofrimento e mortes no Brasil inteiro, os Estados que integram os biomas do PANTANAL, do CERRADO  e da AMAZÔNIA estão, literalmente sob uma densa camada de fumaça e fuligem, oriunda de dezenas de milhares de focos de incêndio, muitos dos quais criminosos.
Só no PANTANAL, cuja área recobre parte dos estados de  Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, onde já foram destruídos pelo fogo mais de um milhão de ha, dizimando boa parte da tão rica biodiversidade vegetal e animal e destruindo toda a base da economia regional. Dói no coração ver as imagens de línguas imensas de fogo avançando por todas as áreas, tornando o combate a essas queimadas extremamente difícil e perigoso.

As cidades de Corumbá, em Mato Grosso do Sul; Poconé e Cáceres em Mato Grosso estão tomadas pela fumaça que se espalha por grandes distâncias, mais de cem ou duzentos quilômetros, atingindo por exemplo, Campo Grande em Mato Grosso do Sul e diversas outras cidades que ficam neste raio de até 200km.

O mesmo acontece em Mato Grosso, onde Cuiabá e todos os municípios da chamada Baixada Cuiabana amanheceram hoje, 13 de Agosto de 2020, cobertos por densas nuvens/camadas de fumaça, com visibilidade quase zero, com menos de 50  ou 100 metros, onde o sol surgiu amarelado e nem mesmo os prédios mais altos podiam ser visíveis.

O número de focos de queimadas no Pantanal, no período de janeiro a julho de 2019 foi de 1.180 e no mesmo período de 2020 passaram para 3.415, um aumento de 189,4%. Cabe ressaltar que a força-tarefa constituída por bombeiros militares de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, com apoio da Marinha do Brasil, inicialmente informava que essas queimadas seriam controladas em 10 dias, mas `a medida que os dias passam constata-se que vai demorar muito mais.  A área devastada já chega a ser superior a um milhão de ha., recorde desde 1998.

Em Rondonópolis, cuja área fica próxima ao Pantanal, há poucos dias ocorreu uma grande queimada que destruiu uma boa parte da área de uma reserva indígena e também a cidade sofre com inúmeros focos de queimadas urbanas, poluindo o ar, tornando o mesmo irrespirável.

Para agravar ainda mais este quadro, surgem todos os dias diversas focos de queimadas urbanas e nas áreas periurbanas em Cuiabá e outros municípios, onde verdadeiros latifúndios urbanos estão situados, mal cuidados, estão cobertas por imensos capinzais, arbustos e outros materiais que acabam sendo tomadas pelo fogo de forma impiedosa.

Lamentavelmente, por mais que os esforços dos Corpos de Bombeiros em todos os Estados do Centro Oeste e praticamente em todos os municípios não dispõe de estrutura humana e de equipamentos para combater tantas queimadas ao mesmo tempo.

A “ajuda” da Marinha do Brasil tem sido importante, mas ainda deixa a desejar. Já que estamos em um momento de calamidade pública, onde as queimadas atualmente no pantanal e nas áreas urbanas tem fustigado e não tem dado tréguas à população, em que podemos afirmar que o pior ainda está por vir.

Vendo as fotos dessas queimadas, milhares na data atual, podemos afirmar que as suas consequências serão piores do que alguns desastres ocorridos em outros países nos últimos anos.

Na Amazônia, 2019 representou um avanço tanto das áreas desmatadas quanto de queimadas, recorde para os últimos dez anos, quando foram constatados 39.033 focos de queimadas e uma área destruída de 306.033 ha  e segundo as últimas estimativas do INPE poderão, até o final do período das queimadas serem mais de um milhão de ha.

Em 2020 a situação não tem sido diferente. Apesar da presença das Forças Armadas no contexto da GLO – Garantia da Lei e da Ordem, parece que grileiros, garimpeiros, madeireiros e invasores de terras públicas não se intimidam nem mesmo com a presença dos militares. Parece que sabem perfeitamente que as multas e autuações por parte dos organismos de controle e fiscalização tudo vai acabar em “pizza”, pois a impunidade conta com certa omissão e conivência por parte de órgãos públicos e também com a morosidade do poder judiciário.

De acordo o veículo de imprensa alemã Deutsche Welle (DW), em reportagem da última segunda feira, 10 de Agosto em relação ao desmatamento e queimadas na Amazônia, afirma textualmente: “Um ano após "dia do fogo", a Amazônia segue em chamas. Crime ambiental organizado por fazendeiros e empresários no Pará completa 12 meses, e ninguém foi preso. Apesar de ação das Forças Armadas, número de focos de incêndio na Amazônia já é maior do que no ano passado.

”A mesma Deutsche Welle, em outra matéria em 2019, utilizando dados oficiais do Brasil, chama a atenção para a gravidade das queimadas nas áreas do Bioma Cerrado, com o seguinte destaque “Focos de queimadas no Cerrado superam Amazônia em setembro. Em menos de dez dias, foram registrados mais de 7 mil focos de incêndio no bioma do Pantanal, contra 6 mil na Amazônia, afirma o Inpe. Estados declaram emergência, enquanto estiagem prolongada agrava situação”

 

A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas, atingindo quase um bilhão de leitores e ouvintes ao redor do mundo. Isto dá para  imaginarmos o estrago que uma matéria como esta acarreta em relação à imagem do Brasil no exterior e as repercussões negativas para o comércio internacional brasileiro, principalmente o agronegócio, cuja base produtiva fica exatamente em Mato Grosso e outros Estados que pertencem a esses três biomas em chamas: Pantanal, Cerrado e Amazônia.

No dia 17 de julho último o Presidente Bolsonaro assinou o decreto 10.424 que restringe, por quatro meses, o uso de queimadas em todo o território nacional, com proibição de todos os tipos de queimadas, até mesmo as controladas nos biomas Pantanal e Amazônia. Mas, quando vemos o que esta ocorrendo na realidade, parece que este Decreto é letra morta ou de eficácia inócua.

Em “live” na mesma época, de forma estranha, Bolsonaro criticou a proibição de queimadas, que ele próprio estabelecera em decreto, dizendo que tudo não passa de ações orquestradas por xiitas, nacionais e europeus, acusando inclusive os indígenas de colocarem fogo em suas próprias florestas e retomando a retórica de que interesses internacionais agem contra o agronegócio, o desenvolvimento da Amazônia e do Brasil, por interesses econômicos e geopolíticos, além de minimizar os efeitos negativos das queimadas, principalmente na Amazônia, dizendo que a Floresta se regenera rapidamente e tudo volta ao normal dentro de pouco tempo.

Chegou mesmo a mencionar ministros do Meio Ambiente de governos anteriores, desde FHC, Lula e Dilma como parte deste grupo de “xiitas” que atrapalham o desenvolvimento do país em geral e da Amazônia, em particular.


Parece que nosso presidente e o seu ministro do Meio Ambiente tem uma agenda oculta para favorecer o desmatamento, as queimadas, a ação de garimpeiros e mineradoras ilegais, enfim , a degradação ambiental em nosso país.

Apesar de toda esta retórica retrógrada do governo Bolsonaro, ambientalmente falando,  o INPE e tantos outras instituições de pesquisas nacionais e internacionais tem constatado que todos os anos essas calamidades vem aumentando sistematicamente ano após ano, onde o desmatamento e as queimadas afetam o clima, a economia regional, provocam acidentes nas estradas, dificultam o escoamento da produção e o abastecimento das cidades e também denigrem, de forma indelével, a imagem do Brasil no Exterior.

Diversos estudos tem apontado que o desmatamento e as queimadas, de forma acelerada como vem ocorrendo, alteram o regime de chuva tanto na Amazônia, quanto no Centro-Oeste e demais regiões do Brasil e também contribuem para as mudanças climáticas, tendo em vista que aumentam a emissão de gases de efeito estufa.

Conforme já enfatizado em setembro de 2010 pelo IBGE “As queimadas são responsáveis por mais de 75% da emissão de gás carbônico no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O dado faz parte da publicação Indicadores de Desenvolvimento Sustentável 2010, divulgada nesta quarta-feira (1º). Ainda segundo o instituto, o Brasil está entre os dez maiores emissores de gases de efeito estufa para a atmosfera”.

Em um estudo realizado por Philip M. Fearnside intitulado “Fogo e emissão de gases de efeito estufa dos ecossistemas florestais da Amazônia brasileira”, tendo por base as queimadas na Amazônia legal, o mesmo enfatiza que  “O FOGO NA AMAZÔNIA brasileira é responsável pela emissão de grandes quantidades de gases de efeito estufa por vários processos distintos, incluindo a queimada de floresta nas áreas que estão sendo desmatadas para agricultura e pecuária, incêndios florestais e queimada de capoeiras, pastagens, e diferentes tipos de savanas.”

No mesmo estudo ele calculou que as queimadas  só na Amazônia Legal, em 1990, produziram ,em milhões de toneladas ; 964 de CO2; 1,23 de CH4; 30,83 de CO; 0,07 de N2O; 0,83 de NOx e 0,66 de NMHC; todos gases de efeito estufa que contribuem para o aquecimento global.

Matéria veiculado pela BBC Brasil em 22 de Agosto de 2019, há aproximadamente um ano, destacava que “Fumaça de queimadas é ameaça à saúde pública, alertam médicos”, enfatizando também que “A saúde humana é afetada pelas queimadas porque a fumaça proveniente dela contém diversos elementos tóxicos.

O mais perigoso é o material particulado, formado por uma mistura de compostos químicos. São partículas de vários tamanhos e, as menores (finas ou ultrafinas), ao serem inaladas, percorrem todo o sistema respiratório e conseguem transpor a barreira epitelial (a pele que reveste os órgãos internos), atingindo os alvéolos pulmonares durante as trocas gasosas e chegando até a corrente sanguínea.”.

Além disso, é destacado que a fumaça das queimadas afeta o organismo humano de diversas maneiras, acarretando agravamento de outras doenças já existentes ou levando ao surgimento de novas doenças, até mesmo o câncer de pulmão.

Outro composto prejudicial é monóxido de carbono (CO). Quando inalado, ele também atinge o sangue, onde se liga à hemoglobina, o que impede o transporte de oxigênio para células e tecidos do corpo.

"Isso tudo desencadeia um processo inflamatório sistêmico, com efeitos deletérios sobre o coração e o pulmão. Em alguns casos, pode até causar a morte", explica o pneumologista Marcos Abdo Arbex, vice-coordenador da Comissão Científica de Doenças Ambientais e Ocupacionais da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Araraquara (Uniara).

Finalmente, vale a pena ter em mente que além disso, provocam quadros de alergia e, quando a exposição é permanente, há o risco de desenvolvimento de câncer", indica o médico.

Além desses aspectos, devemos levar  em conta que as queimadas em 2020 ocorrem em meio `a pandemia da COVID 19, podendo agravar ainda mais o problema de saúde pública nos estados mais afetados pelas queimadas, pois as pessoas que vão procurar atendimento para problemas de saúde decorrentes das mesmas, poderão entrar em contato com outras pessoas já infectadas pelo CORONAVIRUS.

Mas mesmo assim, este problema das queimadas pouca atenção e preocupação tem despertado em nossos governantes, incluindo as autoridades da saúde, que tentam minimizar a falência da saúde pública e aguardam “pacientemente” que ocorra o que chamam de “imunidade de rebanho” e até lá, com certeza mais alguns milhões de pessoas serão infectadas  e mais centenas de milhares irão a óbito pela COVID 19.

Cabe, finalmente, ressaltar que conforme a OMS a cada ano sete milhões de pessoas morrem no mundo (exemplo 2017) devido `a poluição e, boa parte desta poluição decorre das queimadas em inúmeros países, com destaque para o Brasil que é um dos grandes desmatadores e que provocam queimadas no planeta.

Diante desses números e das consequências das queimadas, tendo em vista o volume de desmatamento e de queimadas que ocorreram no Brasil desde o inicio dos anos 90 até este ano, onde está incluída a rápida expansão das fronteiras agrícolas em direção ao cerrado e Amazônia Legal,  quando milhões e milhões de ha de áreas nativas foram desmatadas, podemos imaginar o volume de gases de efeito estufa que só neste setor o Brasil produziu.

Ao longo dos anos o Brasil criou toda uma parafernália legal e de estruturas que jamais funcionaram adequadamente, com a finalidade apenas para cumprir um efeito propaganda perante os fóruns internacionais que pressionavam e continuam pressionando o Brasil a tomar medidas concretas de conservação e redução do desmatamento, das queimadas e da degradação ambiental, baseados nos termos de acordos internacionais aos quais o Brasil tem aderido soberanamente.

Um desses órgãos é o INPE, responsável pelo monitoramento do que acontece não apenas na Amazônia e demais regiões, mas também em monitorar o clima e as mudanças climáticas.

Em relação ao INPE, como aconteceu com dois ministros da Saúde, Bolsonaro não titubeou em demitir o Diretor Geral daquele centro de pesquisas, mas também a todos quanto se opõe às suas crenças, ideologia e formas simplistas de perceber ou definir a realidade nacional em suas várias dimensões. Neste sentido o Presidente age muito mais orientado por suas vinculações ideológicas do que por bases científicas.

Não é concebível que os Governos Federal, Estaduais e Municipais continuem agindo com tamanha negligência, complacência e omissão ante uma realidade que é sabidamente recorrente todos os anos e cujos custos  diretos e indiretos ultrapassam a cifra de vários bilhões de reais ou dólares a cada ano.

Quando confrontada esta realidade com as dotações orçamentárias dos três níveis de governo para ações de prevenção e combate `ao desmatamento, regular e, principalmente, irregular e as queimadas, percebe-se que nada disso é importante para as instituições governamentais, os recursos aprovados pelo Congresso ou pelas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais  são irrisórios, insignificantes, diante da gravidade e da magnitude do problema e, pior, o uso desses recursos aprovados pelos Legislativos sequer são aplicados integralmente em programas, projetos e ações pertinentes.

Reportagem publicada no Site Oitomeia, em 13 de setembro de 2019 e também em outros veículos de comunicação, relativa ao Orçamento Geral da União para o exercício de 2020, enfatiza que os recursos destinadas `as ações de prevenção e combate `as queimadas, que já eram insignificantes em 2019, foram cortados ainda mais. “Mesmo em meio à crise deflagrada pelas queimadas na Amazônia , o corte nos gastos direcionados à prevenção e ao controle de incêndios florestais fez os valores caírem de R$ 45,5 milhões para R$ 29,6 milhões — uma baixa de 34% nos recursos previstos de um ano a outro.”

Confrontando-se este valor de menos de R$30 milhões de reais e o tamanho do estrago que as queimadas provocam em todos os biomas, principalmente no Pantanal, no Cerrado e na Amazônia Legal, podemos concluir que pouco ou nada pode ser feito, ou seja, o fogo continuará destruindo anualmente milhões de ha de florestas e vegetação nativas, parte dos quais serão transformados em áreas degradáveis em breve. Esta realidade faz parte da politica ambiental dos diversas níveis de governo em nosso país. Uma lastima.

Outro aspecto inserido neste contexto e que não podemos deixar de mencionar é o sucateamento dos organismos ambientais, também em todos os níveis de governo, principalmente os setores de controle e fiscalização. Este sucateamento  pode ser visto na falta de estrutura de pessoal, de recursos materiais e de equipamentos, impossibilitando que a prevenção , o controle e o combate aos crimes ambientais, ao desmatamento ilegal e `as queimadas possam ser executadas de forma eficiente, eficaz e com efetividade.

O número de fiscais ambientais é irrisório para áreas imensas, algumas maiores do que vários países da Europa ou de outros continentes, esta realidade é secundada por um discurso liberal, até mesmo criminoso, que prega a redução do tamanho do Estado, inclusive e principalmente de seus órgãos de controle e fiscalização, deixando ao “deus mercado” a incumbência de disciplinar e conter as práticas nefastas que este mesmo mercado/iniciativa privada provoca, via madeireiros ilegais, garimpos e mineração ilegais e grileiros de terras publicas, incluindo reservas florestais, terras indígenas, quilombolas e áreas de preservação ambiental (urbanas e ruais, as chamadas APP – áreas de preservação permanentes) e parques nacionais.  Aqui, neste contexto dos crimes ambientais, do desmatamento ilegal, da grilagem e das queimadas, aplica-se, perfeitamente, a máxima de que o vampiro deve gerenciar o banco de sangue ou que a raposa deve ser a guardiã dos galinheiros, esta é apenas uma dimensão deste liberalismo e neoliberalismo criminosos.

Oxalá, a questão ambiental como um todo, incluindo as mudanças climáticas,  e não apenas as queimadas e desmatamento/destruição da Amazônia, do  Cerrado e do Pantanal, possam, de fato, serem incluídas na pauta das discussões da retomada das atividades econômicas no período do pós COVID 19; não podemos deixar que apenas as questões internas das estruturas de governo, como reformas fiscal/tributária, administrativa, do equilíbrio fiscal, do teto dos gastos públicos (que também é um verdadeiro crime, porquanto engessou os orçamentos de áreas estratégicas como educação, a ciência e tecnologia, a saúde e o próprio meio ambiente) façam parte da Agenda Nacional.

Antes que o Brasil tivesse aprovado o teto dos gastos, por exemplo, em 2015 nosso país comprometeu-se com a Agenda da ONU que definiu o que cada país deve fazer até  2030 para atingirmos todas as METAS acordadas e constante dos OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL e também os compromissos que o Brasil se comprometeu quando da aprovação do ACORDO DE PARIS.

Tanto em relação aos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ) quanto em relação ao ACORDO DE PARIS e também ao compromisso do Acordo de Letícia, firmado com os demais países amazônicos, o Brasil tem obrigações concretas que só serão atingidas através de politicas públicas e ações correspondentes e não com pronunciamentos e discursos demagógicos como costumamos ver e ouvir por parte de nossos governantes, talvez mais preocupados com seus projetos pessoais de poder , seus privilégios , como a famosa e vergonha VI (verba indenizatória) ou outros penduricalhos e mutretas para garantirem aos marajás da República um status de camadas altamente privilegiadas e tudo pago com o dinheiro público enquanto mais da metade da população brasileira tem que se contentar em sobreviver com uma migalha concedida com “auxílio emergencial”, importância esta que esses marajás da República gastam com apenas um almoço ou uma diária de um hotel de luxo onde costumam se hospedar.

Mesmo assim, em nome do equilíbrio fiscal, vemos e ouvimos com frequência por parte desses marajás que se esta migalha for concedida a mais de 60 , 70 ou 80 milhões de brasileiros que vivem próximos da linha da pobreza e  mais de 15 milhões que vivem na extrema pobreza vão quebrar o país, vão “furar” o teto de gastos, vão provocar as metas fiscais e outros cínicos argumentos.

Seria o fato de perguntarmos a esses donos do poder, marajás da República se os mesmos conseguiriam sobreviver e prover alimentação, transporte, saúde, educação, moradia e lazer para suas famílias com esta bagatela.

Resumindo, como disse o Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si, a Encíclica Verde “Tudo está interligado”, ideia expandida na letra da música que tão bem define que se tudo esta interligado, precisamos procurar os liames, as conexões que existem entre as ações humanas, tanto as públicas quanto as privadas.

O que fazemos ou deixamos de fazer, ou seja, ações e omissões, provocam fatos que podem ser positivos, mas também podem ser extremamente negativos, como no caso presente o desmatamento, principalmente ilegal, as queimadas acidentais ou criminosas.

Neste aspecto quem acaba “pagando o pato” , como costuma-se dizer, são todas as pessoas que passam a respirar um ar extremamente poluído, que causa doenças crônicas respiratórias graves, cujas vitimas sempre são os mais vulneráveis, os excluídos: as crianças, os idosos ou quem sofre de doenças respiratórias como asma, bronquite, tuberculose e também os fumantes que por escolha parece que gostam mesmo de “detonar” seus pulmões.


Finalizando, precisamos nos conscientizar como diz a letra referida música, “TUDO ESTÁ INTERLIGADO COMO SE FÔSSEMOS UM TUDO ESTÁ INTERLIGADO NESTA CASA COMUM”, Letra, Música e instrumentação: Cireneu Kuhn, svd. A primeira estrofe desta música é bem ilustrativa para o momento em que estamos vivendo diante da degradação ambiental geral, onde o desmatamento e as queimadas são apenas uma pequena parte desta globalidade, se tudo está interligado, precisamos respeitar a casa comum e a mãe natureza, e isto se faz com  “O cuidado com as flores do jardim, com as matas, os rios e mananciais O cuidado com o ar e os biomas com a terra e com os animais”. Isto é o que o Papa Francisco propõe através da ECOLOGIA INTEGRAL.


Além de protestar, de indignarmos ante toda esta destruição e poluição ambiental que está nos matando impiedosamente, precisamos refletir e identificar formas de luta para confrontarmos a destruição do meio ambiente e seus perpetradores em todos os setores da sociedade e salvar o que ainda resta do planeta terra ante esta sanha destruidora.


*JUACY DA SILVA, professor universitário UFMT, titular e aposentado. Sociólogo, mestre em sociologia, colaborador de alguns veículos de comunicação. Email O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. Twitter@profjuacy
 

 

Segunda, 17 Agosto 2020 13:32

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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        Profa. Dra. Alair Silveira[1]
 

            Dos tempos que pensávamos distantes ressurgem os monstros que queríamos superados. E poucas relações podem ser mais nefastas para a democracia do que aquelas que, envoltas pela aparência democrática, liberam seus detratores.

            No melhor estilo foucaultiano, alguns indivíduos investidos de micropoderes institucionais sentem-se liberados para tripudiar sobre as regras democráticas e os direitos alheios. E o fazem com uma desfaçatez que ultraja qualquer decoro procedimental. Mas, diga-se em seu favor: não o fazem (nem poderiam) sem a conivência subserviente de um número nada desprezível de outros indivíduos. Trata-se, como definiu La Bóetie, no século XVI, da servidão voluntária.

            Sob tal condição, paradoxalmente, servem aos interesses do tirano, em detrimento dos seus próprios interesses. Não porque são masoquistas, mas porque acreditam (por ilusão, por educação ou por tradição) que essa é a única forma de viver. A sagacidade de La Boétie, portanto, repousa na análise de um poder que tiraniza a partir da servidão voluntária dos oprimidos. Em outras palavras, a tirania extrai dos tiranizados a força que empodera o tirano.

            O encontro dos micropoderes com a servidão voluntária do século XXI tornou-se corriqueiro, e passeiam de braços dados sob as vestimentas da (pós)modernidade como se fossem a expressão mais robusta da democracia moderna.

            Na UFMT, as últimas reuniões dos conselhos superiores, especialmente aquelas convocadas como Colégio Eleitoral, sob a batuta do professor e procurador-geral do estado, Luiz Alberto Esteves Scaloppe, são a demonstração cabal de como micropoderes institucionais - e circunstanciais - podem resultar na tirania consentida.

            Desde que assumiu a presidência do Colégio Eleitoral – por indicação do atual reitor e não por eleição dos pares – o Conselheiro deleitou-se nas arbitrariedades. Sentindo-se a personificação do ‘poder’, o Conselheiro-mor desrespeitou o Regimento; negou direito de fala a alguns conselheiros; interveio nas manifestações quando o conteúdo das intervenções não estava em acordo com o que ele pensava; desconheceu direito à declaração de voto àqueles que se abstiveram; foi conivente com  corte de som dos microfones dos conselheiros quando lhe conveio; retirou-se abruptamente da sala virtual sem concluir a reunião; ironizou as reclamações dos conselheiros inconformados, “esclarecendo” que não se tratava de assembleia sindical etc. Ao menos reconhece que as assembleias sindicais são democráticas e cumprem as regras procedimentais!

            Porém, nada disso poderia surtir efeito sem a anuência da maioria dos conselheiros. A intolerância para com as arbitrariedades poderia ter sido a barreira intransponível para a soberba. Infelizmente para aqueles comprometidos com a democracia e, principalmente, com a UFMT, a maioria dos conselheiros encontrou em justificativas indefensáveis o argumento para renunciar ao direito de fazer valer o seu direito e defender a história de consulta democrática da própria Universidade. Curvados diante do poder simbólico das estruturas institucionais, cederam à prepotência e consolidaram o caminho da arbitrariedade.

            O resultado de todo esse processo não foi somente uma consulta com vício de origem (porque construída sobre o desrespeito às regras procedimentais), moldada pela ilegitimidade, mas, consequente e inevitavelmente, as cicatrizes cravadas sobre a Instituição. Cicatrizes que marcarão, também, a história de qualquer um daqueles que se refestelaram nesse trágico capítulo da vida da UFMT, com ou sem nomeação pelo presidente da República.

            Na vida, as pessoas fazem escolhas. E para cada escolha, há consequências. Algumas preferem marcar sua trajetória pela soberba; outras, pela sujeição; outras, ainda, pelo oportunismo. Mas a história também é feita de homens e mulheres que não se extasiam com os poderes, nem a eles sucumbem ajoelhados. Esses últimos, como ensinou Brecht, são imprescindíveis. Os outros... passarão...
 

 


[1] Professora de Ciência Política do Depto. Sociologia e Ciência Política/SOCIP/UFMT e do Programa PPGPS-SES/UFMT; Pesquisadora MERQO/CNPq; Membro GTPFS/ADUFMAT-ANDES/SN.

Sexta, 14 Agosto 2020 09:21

 

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
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Leonardo Santos

Prof. do Dpto. de Serviço Social da UFMT

Militante da Corrente Sindical Unidade Classista 

 
 

A televisão mostra o que acontece? Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar. A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona. 

 

Eduardo Galeano, A televisão/2. Em O Livro dos Abraços 

 
 

              Não é a primeira vez que os grandes meios de comunicação lançam reportagens apelativas que fazem campanha pela privatização de bens e serviços públicos, além de difamar servidores públicos em geral. A última se deu por meio do Jornal Nacional, da Rede Globo, que nesse segunda, dia 10 de agosto, lançou uma matéria sobre os gastos públicos com saúde e educação, apontando para o “fato” de que a culpa da falta de investimentos se dá por conta dos “altos” gastos com o funcionalismo público.  

​              Não é de se espantar que o Jornal Nacional não mire nos gastos do Estado com a alta cúpula do Exército, do Judiciário, do Executivo e do Legislativo, por exemplo, esses sim espaços recheados de privilégios... Contudo, não vou aqui me alongar nesse debate, sobre isso temos um número considerável de material que desmistifica esses contos da carochinha ultraliberal[1][1]. Quero aqui focar em o que é o Instituto Millenium - realizador da pesquisa - e a função que ele e outros aparelhos privados de hegemonia do mesmo tipo cumprem na atual conjuntura brasileira.  

​              O Instituto Millenium é mais um Think Tank, ou seja, instituição privada de divulgação de pesquisas e orientação a Estados e a sociedade em geral sobre ações de interesse público. Na prática, se inserem na lógica de lobbies de interesses particulares na disputa pelos rumos dos Estados Nacionais, seja na disputa ideológica, seja na formação de quadros políticos.  

​              Essas organizações não são necessariamente novas no mundo e nem no Brasil, a própria sociedade de Mont-Pelerin, que inicialmente abrigou os parcos pensadores neoliberais a partir dos anos 1920, foi um Think Tank. Contudo, é na onda de crise mundial dos finais da década de 1970 que essas organizações passam a se proliferar. 

​              Ou seja, esses Think Tanks têm sido utilizados sobretudo para divulgação do ideário neoliberal ou, atualmente, da sua intensificação a partir da crise capitalista mundial de 2008/2009, o ultraliberalismo[2][2]. Essas organizações, além de numerosas em todo o mundo, criaram redes de ligação e de financiamento bastante amplas. 

​              O Atlas Network, por exemplo, é um grande Think Tank que tem como função interligar e arrumar financiamento para os Think Tanks com atuação mais direta e voltada para seus países. 

               O Atlas Network atua basicamente como fomentador, financeiro e intelectual, de entidades que tem como princípio a defesa de “políticas públicas voltadas para o mercado”. Ajudam mais de 400 Think Tanks em mais de oitenta países – entidades que, formalmente (principalmente por questões legais), são orientadas a não se envolver diretamente na política partidária. 

               No Brasil, há nove entidades ligadas ao Atlas Network. É fato, portanto, que esse instituto é um elemento comum da conexão transnacional dessas entidades que, na prática, conformam um mesmo “partido”. “Muitos membros do Movimento Brasil Livre passaram pelo programa de treinamento do Atlas network, a Atlas Leadership Academy, e estão agora aplicando o que aprenderam no solo em que eles vivem e trabalham”, dizia artigo publicado no site da entidade (HOEVELER, 2016, p. 87).[3][3] 

​              Como se pode perceber, essa espécie de “Think Tank matriz” atua no sentido de financiar e de formar quadros nos demais países. O valor dessa ajuda financeira é difícil de precisar, pois além dos repasses diretos - e o Brasil é o país da América Latina que mais recebe -, o Atlas Network é responsável por fazer a ligação entre doadores e as organizações. Além do mais, o Atlas Network, apesar da principal, não é a única Think Tank que tem essa atuação de financiamento e formação transnacional. 

​              Assim, o Instituto Millenium - com o qual a Rede Globo mantem estreitas relações, inclusive de financiamento via afiliadas – talvez seja o maior Think Tank brasileiro, e certamente um dos que tem maior ramificação entre a burguesia do país (não é demais ressaltar que o próprio Paulo Guedes já foi um dos seus “especialistas”). É também um dos que organizam essa nova empreitada ultraliberal, junto com Instituto Liberal, Instituto von Mises Brasil, etc. E no âmbito político junto com organizações no estilo do Movimento Brasil Livre – MBL, RAPS-Brasil, Movimento Estudantes pela Liberdade, etc. 

​              Esse episódio da reportagem do Jornal Nacional contra o funcionalismo público pode nos ajudar a refletir sobre as relações que existem entre vários dos principais atores políticos do Brasil atual, deixando descortinada a unidade ultraliberal que existe, por exemplo, entre as Organizações Globo (e boa parte dos seus artistas) e o Governo Bolsonaro, com o seu ministro da Economia, Paulo Guedes. 

​              Uma frente que efetivamente se coloque contra o desmonte do país não pode contar com nenhum aliado do grande bloco ultraliberal. E, consequentemente, qualquer frente que abarque esses ultraliberais, não vai se contrapor de fato ao Governo Bolsonaro. O resto é engodo midiático. 
           
 


​              [1] Bons exemplos: I - https://revistaforum.com.br/midia/jornal-nacional-cria-fake-news-para-comparar-gastos-de-servidores-com-saude-e-educacao/ ; II  https://www.condsef.org.br/noticias/brasil-isp-contesta-reportagem-jornal-nacional-sobre-gastos-com-servidores
 
​              [2] Ver “Ultraliberalismo no Brasil atual”: https://www.adufmat.org.br/portal/index.php/comunicacao/noticias/item/4385-ultraliberalismo-no-brasil-atual-leonardo-santos
 
​              [3] Ver  HOEVELER, Rejane. A direita transnacional em perspectiva histórica: o sentido da nova direita brasileira. In: DEMIER, Felipe; HOEVELER, Rejane. A onda conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2016.
 
 

Quinta, 13 Agosto 2020 15:37

  

Marluce Souza e Silva[1]

 

              Desde o início da Pandemia que a necessidade de analisar e reorganizar as atividades docentes se tornaram prementes, exigindo de nós uma extenuante e paradoxal compreensão e explicação do que temos feito. Assim, decidi escrever um pouquinho sobre o trabalho remoto, desenvolvido pelos docentes, como medida de prevenção à COVID-19.
             Inúmeras são as nossas atuais preocupações, mas algumas merecem destaque e questionamento, tais como: estamos oferecendo atividades realizadoras do nosso projeto de universidade? Temos trabalhado em um ambiente capaz de promover a formação profissional e cidadã de nossos estudantes?  Temos conseguido separar o tempo do trabalho institucional com o tempo do trabalho doméstico?
             Se respondermos, teremos que admitir que a docência, especialmente neste momento, vem se avolumando e invadindo até nossas horas de sono. Já não temos sonhos, temos pesadelos. O trabalho já não consegue ser fonte de prazer e realização, pois assemelha-se em muito com os sentimentos de opressão, cansaço, adoecimento e confusão. São reuniões, reuniões, reuniões e reuniões. Cada uma gera novas demandas e mais consumo de energia física, emocional e de saúde. Dias e noites se misturam e se tornam apenas tempo de trabalho. O telefone toca e a panela queima; o banho que deveria ser um processo restaurador e relaxante, agora é apenas uma chuveirada rápida porque temos que abrir a sala virtual das atividades flexibilizadas. Uma loucura.
             Tudo se agrava quando o (des)governo brasileiro anuncia que o orçamento das universidades, para o próximo ano, será reduzido em R$4,2 bilhões, num momento em que se esperava um esforço orçamentário adicional para a área da educação; e pior, quando se tem a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 10/2020, conhecida como PEC de Orçamento de Guerra, que prioriza o mercado financeiro no contexto da pandemia, autorizando repasses de recursos sem qualquer contrapartida por parte das instituições que serão socorridas, enquanto as universidades morrem à míngua.
             Minha esperança é a de que a “redução insistente de recursos”, que deveria ser nossa preocupação neste momento (e não a flexibilização), nos faça: (i) olhar (e enxergar) os nossos baixos salários (um dos menores entre os servidores do Executivo); (ii) sentir as perdas remuneratórias que a aposentadoria irá nos impor; e (iii) enxergar que o árduo esforço despendido para realizar atividades acadêmicas (remotas ou não), como organizar um evento, publicar um artigo, consolidar um grupo de pesquisa ou um programa de pós-graduação é depreciado, inclusive, por aqueles que administram as universidades públicas.
             Na verdade, a imaterialidade econômica somada às condições desfavoráveis de realização do nosso trabalho vem, há muito, ofuscando a beleza e a nobreza da atividade docente. E as mudanças, advindas do trabalho remoto, parecem realçar ainda mais a desvalorização crescente da profissão.
             Tudo indica que o trabalho remoto pode ser a pá de cal na imagem gloriosa e artística do nosso trabalho, que tem se transformado em atividade desgastante, desvalorizada e sofrida, denunciando que a docência, como atividade intelectual e criativa, não está imune à opressão, à exploração e à alienação. Condição que se torna favorável à instalação de estados depressivos e de outros males emocionais e sociais entre os servidores públicos.
             O isolamento social, ainda que necessário, está nos deixando impotentes diante desta realidade, principalmente porque agora somos, mais intensamente, obrigados a adequar os afazeres institucionais com as atividades domésticas e o cuidado com a família, que também é demandadora de atenção, de equilíbrio emocional e de recursos financeiros.
             As condições de trabalho nas universidades, especialmente na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) já afrontava a dignidade dos docentes antes da pandemia, e agora se agrava quando passa a exigir criatividade e habilidades com a tecnologia e a oferta de conteúdos virtuais, quando a maior lição deveria ser “a solidariedade, a proteção e a preservação da vida”. Afinal de contas somos ou não a “elite pensante deste país”?
             É factível a condição de precariedade da docência e, não se integrar a essa ordem, está a exigir um posicionamento político e uma luta árdua, para o qual chamamos especial atenção dos servidores públicos e dos Sindicatos. Precisamos parar, pensar e agir. Não se esqueçam que “Platão, Aristóteles, esses pensadores gigantes, [...] queriam que os cidadãos das suas Repúblicas ideais vivessem na maior ociosidade, porque acrescentava Xenofonte, o trabalho tira todo o tempo e com ele não há tempo livre para a república e para os amigos (LAFARGUE, 1977, p. 55)”. Assim estamos: sem tempo para cuidar da República, da universidade e dos amigos.

 

[1] Professora do Departamento de Serviço Social/UFMT, Mestra e Doutora em Política Social, pesquisadora da temática dos Direitos do trabalho e membro do Grupo de Pesquisa MERQO.

 

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Referências

LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça e outros textos. São Paulo: Mandacaru, 1977.
 

 

 

Quarta, 12 Agosto 2020 11:14

 

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Por Roberto de Barros Freire*


Jair Messias Bolsonaro é realmente extraordinário, um mito, como dizem alguns, capaz de realizar milagres. O mais espantoso de todos, por enquanto, é o empréstimo ao Queiroz. De um lado, sem sacar nada de suas contas bancárias, deve ter consubstanciado em dinheiro vivo nas mãos do Queiroz os quarenta mil reais que diz ter emprestado. Não há um único registro de ter saído dinheiro das contas de Bolsonaro para entrada na conta de Queiroz. O dinheiro chegou até ele de forma milagrosa, como é digno de alguém divino, de um mito. Nem dá para saber quando foi, pois pelo menos desde 2013 há entradas em dinheiro graúdo inexplicável nas contas do serviçal e guarda costa do 01, o agora senador. O filho senador parece desfrutar dos mesmos poderes de consubstanciar dinheiro na mão do Queiroz, afinal ele pagou prestação do plano de saúde e da escola dos filhos do senador, sem que nada tivesse saído das contas do Flavinho. Ou então, milagrosamente, fez o Queiroz pagar de bom coração as dívidas particulares do senador.


Por outro lado, como Messias conseguiu juros tão altos é também um outro milagre inexplicável, afinal, foram depositados 89.000,00 na conta da primeira dama. Mais de 100% de juros. Digno de um agiota do mais alto gabarito, conseguiu mais do dobro do emprestado. Isso é para poucos, creio que só perde para os juros do cheque especial e do cartão de crédito. Sabe emprestar com juros extorsivos, e cobrar, ainda que em pequenas parcelas, cheques de 3.000,00 em sua maioria em depósitos que se prolongam por meses e anos na conta da patroa.


Outro milagre é como alguém, como o Queiroz, que recebe em dinheiro vivo mais do dobro do que recebe de salário, precisa de um empréstimo tão pequeno, de apenas 40.000,00. Quem mexe com 400.000,00, 600.000,00 por ano, precisa de 40.000,00 emprestado e ainda pagar um juro tão extorsivo, pagando 89.000,00 por essa mixaria? Ora, só de hospital (e não qualquer hospital, mas o Einstein de São Paulo) pagou 140.000,00 (em dinheiro vivo), com todo esse dinheiro guardado, como pode precisar de 40.000,00 emprestado? Mistério.....


Mas, se Messias Bolsonaro consubstanciou o dinheiro na mão do Queiroz, não será isso uma espécie de falsificação? Não teria cometido um crime? E por outro lado, não deveria declarar ao imposto de renda esse lucro abusivo do empréstimo e a origem dos 40.000,00? Enfim, parece que o divino omitiu a fonte do dinheiro e mais ainda o lucro obtido pelo empréstimo. Naturalmente, que isso é errado para os comuns dos mortais, mas acredito que deveria ser mais errado ainda para a divindade, afinal de contas, contando com poderes superiores e extraordinários, não deveria praticar coisas dignas de bandidos, agiotas, pessoas más intencionadas, de pessoas baixas.


Um outro milagre impressionante do sr. Messias é o fato de conseguir tirar o corpo fora do problema de saúde pública que arrasa o país. Após meses de pandemia, mais de cem mil mortos e nada fazer, quando não prejudicar o trabalho de governos e prefeituras, e propaganda de remédio inócuo, ele continua achando que não tem nada com isso, e o que é pior, consegue convencer quase 30% da população de que isso é verdade. Puro milagre! Seus seguidores continuam culpando ou a China, ou governadores pela desgraça que atinge o país, querendo tirar a culpa presidencial e sua responsabilidade pelo aumento de casos, que seriam bem menores se ao invés de ser um negacionista da realidade, tivesse assumido a direção do país e não se escondido em Lives e em passeatas de seguidores obtusos, que querem dar um golpe no país.


Nos últimos tempos tem parecido que Bolsonaro quer forjar um outro milagre para justificar um golpe no STF. Tem poderes para tanto, tem igualmente uma vontade que vem de décadas de impor uma ditadura no Brasil, mas mesmo a divindade tem que operar um milagre muito grande para poder justificar o golpe pretendido. Mas, semana sim, semana não chama seus ministros militares para conversar a respeito e ver se tem ambiente para tanto.


Mas, mesmo com milagres os militares não conseguem resolver nossos problemas. Nunca houve tantos militares no governo (outro milagre de Bolsonaro), nem na época da ditadura, e o país está cada vez pior em todas as áreas. Do meio ambiente às relações internacionais, da economia a saúde e educação, tudo está piorando. Ora militares são limitados na sua formação, servem mais para destruir do que construir, estão mais para oprimir do que libertar, mais para ameaçar a sociedade civil e o STF assim como o congresso do que defender a população de uma opressão ou as instituições republicanas. Infelizmente, não há milagre que transforme tiranos em democratas e isso nem o divino Messias Bolsonaro quer ou pretende. Se depender dele, fará os militares apoiarem seu golpe de Estado, que muitos estúpidos acharão ser um milagre.
 

*Roberto de Barros Freire
Professor do Departamento de Filosofia/UFMT
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Terça, 11 Agosto 2020 12:01

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Wescley Pinheiro
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            Minha primeira lembrança de Pedro vem de formações na Pastoral da Juventude do Meio Popular, onde padres e companheiras de resistência traziam seu exemplo nos embates no interior de Mato Grosso como inspiração para a nossa luta diante do desenvolvimentismo predatório e ilusório materializado na construção da barragem do Castanhão, no Vale Jaguaribano, em pleno sertão cearense, onde cada palmo de direito foi conquistado com muita luta para se ter condição de vida, moradia e algumas gotas daquela água futura que um dia alimentaria o grande capital à quilômetros de distância, no Complexo Portuário do Pecém, na longínqua região metropolitana de Fortaleza.
            Algum tempo depois ouvi de novo seu nome. Lembro de Pedro ganhar os noticiários mais uma vez, agora, numa greve de fome contra a dilapidação do Rio São Francisco. Ali, como fez em toda sua vida, encarou de frente os atalhos retóricos e fez de seu ato a palavra viva de transformação. Pedro foi um homem necessário. Um bisco contundente que ousou não cair no proselitismo diante da desigualdade promovida pelas elites para constituir soluções tão mágicas quanto destrutivas. Casaldáliga atravessou o tempo evidenciando uma Igreja cada vez mais distante, mas ainda mais necessária.
            É pela forma como viveu que Pedro nunca morrerá e, por isso também, é preciso que ele continue conosco para nos ajudar a enfrentar esses tempos turvos e pensar a espiritualidade para além dos quadros dados pelas estruturas. Falar de Dom Pedro Casaldáliga é falar de um Deus vivo, materialmente ancorado nas causas dos oprimidos, é reconhecer tantos outros sujeitos que realizaram a busca do novo sob os torpedos do reacionarismo. Penso em Pedro como a rebeldia e a solidariedade em unidade transcendente.
            Nessa hora onde seu espírito vira história e sua existência ainda nos inspira reproduzo parte das ideias que expus quando ocorreu lançamento de sua biografia, no dia 12/06/2019, no Instituto de Linguagem do campus de Cuiabá da UFMT, no livro “Um bispo contra todas as cercas: a vida e as causas de Pedro Casaldáliga”, escrito pela jornalista Ana Helena Tavares.
            Naquele momento eu já era professor em Mato Grosso. Saí do interior do Ceará, onde Pedro me inspirou, mudei tantas vezes de endereço e de percepção sobre espiritualidade, cheguei ao Estado onde o Bispo virou rio e raiz e, da caatinga ao Cerrado, o meu ceticismo sempre esbarrou na capacidade de pessoas como Casaldáliga, pois conseguiam consubstanciar uma ideia substantiva em matéria, fermentar o alimento da alma coletiva, multiplicar a possibilidade de seguir em frente diante de um mundo violento.
            Duvido da onipresença divina nos moldes antropomórficos, mas sei que a trajetória de Pedro atravessou a minha, os espaços que passei e a minha percepção política. Sei também que ele ainda tem muito o que ensinar, a mim e a todos que querem mudar o mundo.
            Dom Pedro viveu para demonstrar que a eternidade está numa trajetória que busque uma vida com sentido. Nesses tempos de pandemia o obscurantismo segue costurando sua perversidade por todos os âmbitos e a desesperança fortifica o medo social. Se a vida pede coragem, envoltos na atmosfera fatalista é preciso lembrar a famosa frase de Pedro Casaldáliga de que “o problema é o medo de ter medo”.
            Em tempos de cruzes laminadas e da sacralização das espadas se perpetua o mito de que a espiritualidade cristã caminha necessariamente com a intolerância, com a arrogância e com o comprometimento político com o fundamentalismo religioso e a ideologia econômica ultraliberal. No apogeu do protofascismo brasileiro as facções que catalisaram um “cristianismo de ódio” caminharam pelos rincões do país e pelas vielas das periferias, ocupando o vácuo do Estado e a ausência de políticas sociais universais, o distanciamento dos movimentos sociais, sindicatos e partidos de esquerda, além do enfraquecimento da formação política popular com sentido emancipatório em todos os espaços.
            Não é novidade que a história do Ocidente tem a cultura judaico-cristã e a estrutura religiosa como um importante pilar cultural do ethos moderno, burguês, branco, machista e eurocêntrico e que o processo de colonização impetrou particularidades históricas que fermentam as características da formação sócio-histórica do Brasil. No entanto, essa constatação em vez de enterrar os religiosos numa vala comum revela ainda mais a importância dos sujeitos individuais e coletivos que se expressaram na contracorrente desse processo.
            Nesse percurso, a ação orquestrada na Igreja Católica, a partir dos anos 1980, de dilapidar o humanismo cristão latino-americano da Teologia da Libertação casou com o fortalecimento dos setores neopentecostais entre os evangélicos protestantes, onde foi ganhando espaço uma lógica ampla que unificava a forma modernizada da indústria cultural com um conteúdo reacionário nos valores morais, articulando a potencialização da lógica neoliberal consumista com questões tradicionais do cristianismo.
            Esse processo se solidifica com o crescimento da ocupação da política formal por indivíduos e grupos fundamentalistas e reverbera a dificuldade de efetivação de um Estado laico, questão também fortalecida pelos recuos constantes dos governos ditos progressistas e sua ampliação em conchavos políticos para alimentar os demônios que, tão logo se aprofundasse as expressões de crise do capital, viriam os engolir.
            Nesse sentido, pensando a atual conjuntura, é preciso pontuar como foi (e tem sido) ineficaz o contraponto centrado apenas no apontamento dos equívocos de quem reproduz os discursos de opressão e menos no combate de quem articula e estrutura esse fortalecimento. O tom abstrato e de superioridade intelectual e moral que julga o outro como inferior não é incomum quando o assunto é a fé popular. 
            Assim, a “hegemonia da contra-hegemonia” tem circulado no pragmatismo eleitoral, na naturalização das (im)possibilidades conjunturais e, quando busca sair disso, caminha apenas na esteira dos discursos em-si-mesmados, sucumbindo às particularidades em particularismos, potencializando falas apenas entre aqueles que já se tem identidade e convencimento.A atuação política performática instrumentaliza condições, reza para convertidos e joga no inferno a principal parcela dos sujeitos que sofrem as opressões.
            O não-diálogo é o princípio do espírito do tempo histórico da barbárie não somente entre os conservadores. O resultado são os gritos sem direção, as guerras meméticas, divertidas mas estéreis e a incapacidade de descer do céu dos discursos e símbolos e pisar no chão da realidade concreta das pessoas que sofrem, vivem e reproduzem os valores que temperam sua própria exploração e o conjunto de complexos que os oprimem. A crítica radical se confunde com a mera auto-afirmação.
            Mas há dissonância e ela é fundamental. A pedra de Pedro permanece viva. Na seara das disputas dentro das religiões cristãs poderíamos citar muita gente na atualidade, poderíamos nominar pessoas como os Pastores Ricardo Gondim e Henrique Vieira, poderíamos citar coletivos como as Católicas pelo Direitos de Decidir. Poderíamos lembrar tantos outros. Nesse sentido, se exemplos não faltam, nesse momento de desesperança, rememorar práticas inspiradoras é fundamental, por isso, é preciso reavivar um daqueles que marcou com sua vida a história de fé e sua existência na materialização de que vale a pena lutar.
            Rememorar os caminhos e descaminhos de Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia, nos coloca a certeza de que o ser humano imperfeito e criativo, individual, mas coletivo, historicamente determinado, mas um ser da práxis, pode muito, pode sempre mais, pode lutar nas condições mais adversas e nas instituições mais difíceis.
            Pedro lembra cada liderança que não se rendeu ao status quo. Lembra Padre Augusto, pároco em Jaguaretama-Ce no fim no fim dos anos 1980, o padre que cantava samba enredo da Salgueiro, que falava das injustiças, que potencializava grupos de jovens para discutir política na paróquia, que era meu pai adotivo para que eu pudesse correr na calçada da igreja pelas manhãs enquanto meus pais trabalhavam.
            Pedro me lembra quem está aqui no meio de nós, como o Padre Júlio Lancellotti, homem que demonstra uma energia inesgotável na luta contra as injustiças, na vida mergulhada na solidariedade e no dom de enxergar Jesus em cada sujeito que sofre. Pedro me lembra um jovem negro da periferia de Fortaleza que virou pastor, lembra Jamieson Simões, que no apogeu do neopentecostalismo nas igrejas vai às ruas e prega um Cristo que pensa o êxodo em unidade com a ancestralidade africana, com a sabedoria de quem percebe a espiritualidade na transformação, no abraço e no embate contra a intolerância, contra a lgbtfobia, contra o racismo.
            Nesses tempos onde a intolerância parece ser quase unânime em alguns espaços, certamente o bispo do povo faz você lembrar também de várias mulheres e homens religiosas/os que estão na trincheira do lado de cá da história. Pedro foi pedra que cantou enquanto tentaram calar os profetas e, por isso, lembra cada mulher do movimento Católicas Pelo Direito de Decidir, cada Mãe-de-Santo que resiste ao fundamentalismo judaico-cristão, cada indígena e quilombola que sobrevive e ressuscita sua história sob o ataque dos tiros e do veneno do agronegócio. Pedro lembra o Sem-terra, o desempregado, lembra você. Você que é humano, que tem dúvidas e certezas, que tem esperança e que busca coragem e sentido.
            Pedro é pedra, é padre, é poeta, é político e é povo. É o bispo das colisões linguísticas, políticas e ideológicas. Ousou mais que falar, viver, vivenciar o que se acredita. O bispo que reverberou uma verdade pujante, tão firme que foi capaz de se comunicar por o mundo todo e com todo mundo, falando com crentes e ateus, com acadêmicos e analfabetos, com doutores das letras e doutores da terra, com o universo de todos aqueles que buscam uma vida com sentido, pois cultivou ações para que o suspiro da criatura oprimida e o coração de um mundo sem coração sejam repletos de ares e batimentos de um horizonte emancipatório.
            Sua caminhada permanece cada dia mais presente porque é preciso que sejamos o fio condutor dessa luta. Tantas lembranças servem para que ele nos recorde da humanidade que existe em nós, que, se em tempos de desumanização, de descrença no poder coletivo é difícil enxergar saídas, é possível ter fé, a crença no invisível, não é o pensamento mágico, o sofisma ideológico, mas o horizonte para olhar além da aparência e perceber a história aberta, pronta para a nossa ação. Pedro soube disso, gritou ao mundo e cochichou aos seus irmãos.
            Não é preciso comungar da cosmovisão teológica do Bispo, mas é fundamental perceber que sua história resguarda uma contra-hegemonia que nos falta na batalha das ideias da atual conjuntura. Se queremos enfrentar as duras batalhas pelos direitos das pessoas da classe trabalhadora precisaremos romper as cercas e os muros para se comunicar organicamente, para escutar e se fazer ouvir, para pensar coerência mesmo na contradição, para ter menos crença no além e ter mais convicção, como Pedro, de que se pode ir além.
            Por isso, quando o espírito da luta do nosso povo gritar "Casaldáliga", a história responderá: Presente, hoje e sempre!
 
 
 
Jaguaretama-Ce
08 de Agosto de 2020
Wescley Pinheiro
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso
 



Terça, 11 Agosto 2020 11:59

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá
Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP
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            Atônitos com tantas notícias ruins, a nós, brasileiros, soma-se a morte de Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Felix do Araguaia, ocorrida na manhã do triste 08/08.
 
           Desde as primeiras informações que tive sobre a vida de Casaldáliga, sempre fiz uma ligação espontânea com o percurso existencial de Severino, aquele personagem de Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto. Já no início do longo poema cabralino, quanto mais Severino tentava dizer quem ele era, mais ele próprio diluía sua identidade no meio de sua gente, igualando-se num coletivo que só tinha e via adversidades pela frente.
 
           Sobre Casaldáliga, talvez por conta das incontáveis adversidades que teve durante sua vida, geralmente percorrida em agrestes terras batidas e literalmente minadas, a tarefa de quem tenta dizer quem foi esse senhor também entra no labirinto das reticências, ou seja, daquilo que pode nos levar a muitas outras informações, quase numa perspectiva de espelho refletido ao infinito. Perante algumas existências humanas, as palavras e as enumerações, definitivamente, são limitadas; elas não dão conta.
 
           Assim que ingressei na UFMT, tive o privilégio de começar a conhecer diversas cidades do Mato Grosso. No início dos anos 90, fui a São Félix do Araguaia, por terra; e muita terra... Pelo trajeto, já fui compreendo melhor a dimensão do que poderia significar a luta de um sacerdote que usava chapéu de palha do sertanejo local contra todas as cercas levantadas pelos “senhores feudais” de nossa contemporaneidade. Mais: um trabalho assumidamente inserido na Teologia da Libertação, exercido com tanta altivez em um lugar tão inóspito, que parecia mesmo ser “um canto esquecido por Deus”.
 
           Já em São Felix, participando de uma atividade do Sindicato dos Professores do Estado (Sintep), por uma das tantas ignorâncias assumidas, precisei de um dicionário para desempenhar uma parte de minhas atividades. Um professor, rapidamente, me convidou para ir à “Biblioteca do Bispo”.
 
           - “Na casa do Bispo, certamente, há um dicionário”, disse-me ele.
 
           Com a possibilidade de conhecer aquele senhor, dei graças à minha estupenda ignorância. Era a oportunidade que eu teria de estar, frente a frente, com um dos seres humanos mais humanos de que eu tinha conhecimento. Eu já sabia que exatamente por conta de sua humanidade, de sua preferência explícita às camadas populares, a ditadura militar dos golpistas de 64 havia lhe imposto perseguição.
 
           Ao chegar à residência episcopal, em alguns lugares, “palácio episcopal”, só perplexidade, mas no sentido mais positivo do termo. Sua residência, de fato, era apenas uma casa, semelhante à maioria das outras casas da cidade. As portas estavam abertas, embora não houvesse ninguém dentro. Aquilo “era habitual”, disse-me o professor anfitrião.
 
           Para minha tristeza, Casaldáliga havia viajado para Cuiabá, de ônibus... Ele era resistente ao avião.
 
           - “Então, não podemos entrar”, concluí.
 
           - “Podemos. A casa é nossa também. É assim que Dom Pedro tem suas coisas. Tudo dele é do povo. O povo da cidade cuida de sua casa, e cuida dele também, pois ele vive sendo ameaçado por fazendeiros.”
 
           Superada minha tristeza por conta daquele desencontro, que seria um dos encontros mais felizes que eu poderia ter tido na vida, não me restava muito, a não ser fazer o papel indecente de uma visita curiosa, pois as referências que eu tinha de bispos e de seus palácios eram outras.
 
           A simplicidade de tudo o que eu via podia ser resumida nas paredes sem reboco e no chão absolutamente rude; também na caminha de solteiro que sustentava um colchão de pouca ou nenhuma densidade, onde ele repousava. Era uma casa de um sertanejo cristão: tudo bem organizado, mas em cima da mais pura simplicidade, dessas que nos encantam, como aquelas velhas xícaras de esmalte já descascado pelo tempo, soltando a fumacinha de um café passado na hora.
 
           Tudo aquilo era um choque para quem vinha de uma cidade imponente, que fazia questão de mostrar ao mundo que havia construído a catedral mais alta do país: pouco mais de 120m de altura, em tipo de um cone, supondo estar mais próximo de Deus...
 
           Ao contrário daquela e de tantas outras imponências que podem ser vistas alhures, a vida religiosa de Casaldáliga foi pautada, do início ao fim, pelas palavras que estão no convite para sua sagração como bispo. Extraí essa pérola da p. 197, do livro Um bispo contra todas as cercas (Gramma Editora), da jornalista Ana Helena Tavares. Mais do que um texto, eis um conjunto sintético de princípios de um verdadeiro cristão:
 
           “Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo; o sol e o luar; a chuva e o sereno; o olhar dos pobres com quem caminhas, e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor.
 
           Teu báculo (cajado) será a Verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti.
 
           O teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e a fidelidade ao povo desta terra.
 
           Não terás outro escudo que a força da Esperança e a Liberdade dos filhos de Deus, nem usarás outras luvas que o serviço do Amor”.
 
           Em uma das fotos mais significativas presentes no livro acima citado, vemos Casaldáliga recebendo um remo indígena durante a cerimônia de sua sagração. Ele não teve dúvidas: “usou aquele remo como seu báculo”. O melhor de tudo é que aquele gesto já lhe era incorporado em seu cotidiano, assim como o era estar ao lado de toda gente oriunda das comunidades tradicionais.
 
           Por tudo, finda sua missão por aqui, só posso, respeitosamente, dizer: quanta fidelidade contida em um conjunto de palavras, que assim ditas, parecem tão benditas, pois foram todas vividas e respeitadas, dia após dia, em seus 92 anos de existência. Esse comportamento, marcado pela coerência, é próprio apenas das avis raras. Pedro Casaldáliga foi uma avis rara que pousou por aqui, dando-nos o privilégio de pertencer à sua contemporaneidade nesse longo e difícil percurso da história humana.