O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Por Aldi Nestor de Souza*
O caso que ocorreu com aquela menina de 10 anos, grávida do tio, abusada sexualmente desde os 6, é estarrecedor, inominável, na verdade. Não disponho sequer de meios para descrevê-lo. Só consigo sentir. E como se não bastasse o dilaceramento todo na vida anterior da criança, na hora do aborto a que foi submetida, no tormento das 17 horas de cirurgia, consentido pela justiça, mais violência lhe foi imposta. Um festival, uma feira livre de acusações e ameaças aos médicos e a ela própria, foi montado e levado a cabo bem na frente do hospital.
Lá dentro, a menina tendo seu corpo ainda mais mutilado, suas entranhas ainda mais fustigadas, um feto sendo arrancado de sua frágil, indefesa e ainda, para ela, incompreensível estrutura física, suas dores ainda mais aprofundadas, sua vida completamente entregue ao limbo da existência. Lá fora, o fundamentalismo religioso aos berros, empunhando uma bandeira de vida absolutamente conivente com o martírio pelo qual a menina teve que passar. Um fundamentalismo cúmplice do e que não permite sequer discutir o modelo de família do qual a menina é oriunda e vítima.
E tudo ganhou ainda mais contornos e pavor quando o médico, diretor da unidade hospitalar onde se deu o procedimento cirúrgico, declarou que trabalha naquele hospital, que fica num bairro de Recife, desde 1996, e que neste período não houve uma semana sem que um caso semelhante ao da menina chegasse àquele hospital. Aí é só multiplicar aquele bairro pelos bairros de Recife, pelos bairros das capitais brasileiras, das grandes cidades, das periferias, das ruas, de todo o país para nos certificarmos, com a mais absoluta precisão, de que convivemos com um massacre intermitente.
Essa menina conseguiu chegar a um hospital. Mas tem aquelas milhares que não tem a menor chance de o fazerem e que são obrigadas a se submeter aos chás, às clínicas clandestinas, aos socos, pancadas e pontapés dos seus algozes mais próximos.
A impressão é a de que, no Brasil, a qualquer hora do dia ou da noite, em casa, no trabalho, na escola, na universidade, na rua, uma mulher, de qualquer idade, está sempre no corredor da morte, na fila do abatedouro, na mira de alguma arma, prestes a ser dilacerada. E apenas por ser mulher.
Que sociedade é essa? Que relações são essas que produzem e naturalizam essa barbárie?
Bem, na frente do hospital em Recife teve resistência. Organizou-se um não. O fundamentalismo religioso foi enfrentado ali mesmo na calçada. Teve luta, quando ceder parecia fácil.
E aqui farei três breves digressões.
Primeira: 110 mil pessoas, oficialmente, sucumbiram diante da covid -19 até agora. Há estudos afirmando que completaremos 200 mil antes de outubro. Enquanto isso, as portas do comércio seguem cada vez mais escancaradas, os horários cada vez mais esticados, as ruas cada vez mais cheias, e o chefe maior do governo, que zomba das mortes, que brinca com a doença e que tripudia da dor dos parentes em luto, sobe nas pesquisas de avaliação de seu governo.
Que sociedade é essa que outorga, ao seu chefe maior, o direito a tamanho escárnio com a vida? Que relações são essas que impõem tanto silêncio e calmaria diante desse genocídio? Os trabalhadores da saúde foram à frente da sede do governo empunhar suas cruzes e fazer suas denúncias. Os trabalhadores dos aplicativos, os dos correios, os do metrô de São Paulo, os dos transportes coletivos de Juiz de Fora já disseram não. E fazem resistência, fazem greve. 57% dos estudantes brasileiros avaliam o presidente da república como ruim ou péssimo. Portanto, há luta, mesmo quando parece tão fácil ceder.
Segunda: enquanto essa garota enfrenta seu suplício, o governador de Minas Gerais autorizou um massacre contra 450 famílias, acampadas há vinte anos numa fazenda que faliu e cujo dono não pagou os direitos trabalhistas a mais de dois mil trabalhadores. A polícia e seus canhões foram mandados até o local e principiaram a demolição e a expulsão. Destruíram uma escola, puseram fogo no assentamento, empunharam as armas, rumaram a tropa de choque e os blindados. E tudo isso em plena pandemia, quando qualquer ordem de despejo deveria ser crime. A resistência, claro, foi inevitável. Trabalhadores e trabalhadoras, crianças, velhos, velhas não tinham outra alternativa a não ser empunhar enxadas e bandeiras e enfrentar as metralhadoras, os fuzis, os cassetetes, todo o aparato bélico do governador. Lutaram, quando ceder parecia tão óbvio.
Para onde iriam ou vão essas 450 famílias? E dos mais de 20 anos de plantio, de colheita, de luta, de solidariedade, o que iria ou irá ser feito? Que país é esse que permite essa violência, essa catástrofe com o seu povo? Que relações são essas que produzem e naturalizam a barbárie da exclusão e da desigualdade social? Que relações são essas que criminalizam quem luta por reforma agrária, por direitos humanos, por um lugar pra viver e trabalhar? A luta, quando é fácil ceder, dirá a resposta.
Terceira: as trabalhadoras da limpeza da UFMT ainda não receberam, e não sabem se vão receber, o salário do mês de Junho. E já estamos em Agosto. Sem contar que, de Junho pra agora, houve uma troca da empresa terceirizada e elas tiveram que conviver com o suplício de serem demitidas, com a incerteza de conseguir um novo emprego e com a certeza, como de fato aconteceu com algumas, de não serem contratadas pelo novo patrão. São pessoas que ganham um salário mínimo, que convivem com as mais profundas privações de direitos, que moram longe, que pagam aluguel, que são invisíveis, que ninguém sabe o nome, que limpam as privadas da universidade, que mal sabem ler e assinar o nome. Aquelas com mais de sessenta anos foram orientadas a ir pra casa em Março, por conta da pandemia e por serem do grupo de risco. Foram, mas logo em seguida foram demitidas com a alegação de serem velhas demais e que por isso a universidade as descartava.
Que universidade é essa? Que tipo de conhecimento e de profissionais podem emergir de um lugar como esse? A serviço de quem estão essa casa grande e sua senzala? Que relações são essas que produzem e naturalizam essa barbárie bem do lado das pessoas que mais estudaram e que são as mais bem tituladas da sociedade?
Ano passado, mesmo sem ter estudo, mesmo sem ter nenhuma organização sindical que as proteja, essas mulheres reagiram, cruzaram os braços, descansaram as vassouras, fecharam a universidade e exigiram o pagamento de seus salários. Lutaram bravamente numa situação em que ceder não era apenas fácil, era a palavra de ordem.
O Brasil é o resultado de um massacre, diz Darcy Ribeiro. E foi forjado à base de moinhos de gastar gente. Gente tratada como sacos de carvão. Gasta-se um saco, imediatamente põe-se outro no lugar, sem qualquer pudor ou cerimônia, para queimar e alimentar as relações que impõem essa barbárie e dizimam, particularmente, o povo mais vulnerável.
Florestan Fernandes diz que a burguesia brasileira é demente. No sentido que a mesma já nasceu subserviente e conivente, com interesses que habitam o outro lado do mar, e se mantém assim até hoje. Por outro lado, essa mesma burguesia é autoritária, violenta, sempre pronta e disposta a usar a força e submeter o povo brasileiro às mais cruéis agonias e atrocidades.
Como é que essa menina, depois de tudo isso, vai voltar a pensar em algum normal? O que é o corona vírus para quem foi estuprada desde a mais tenra infância? Como é que ela vai voltar a falar com o pai? Com os tios? Com os irmãos? Com os amigos? O que é família pra essa menina? Como é que ela vai voltar à escola? Como é que ela vai sair na rua? Que dor é essa que essa menina sentiu?
Como é que aquelas 450 famílias, aquele assentamento, aquela escola, aquela plantação vão se refazer agora? Que armas estão apontadas pra elas nesse momento?
Como é que as trabalhadoras da limpeza da UFMT vão pagar as contas de junho? E que planos elas tem pro futuro? Que cursos pretendem fazer? Cursos? Que carreira pretendem ter? Carreira? O que é o Brasil para elas? O que é a UFMT para elas?
Arrisco-me a dizer que a violência dos três casos é a mesma. É a violência fruto das relações que enxergam e tratam as pessoas apenas como mercadorias, como objetos, desprovidas portanto de quaisquer humanidade, sentimento, poesia, sonhos, planos, alegria, dignidade, vontade, prazer, arte.
Superar essas relações, caminhar na direção de alguma emancipação humana, lutar quando é fácil ceder, é o que nos resta, como trabalhadores e trabalhadoras, a fazer. Não temos outra alternativa. E talvez, me arriscando num passo bem concreto, é urgente apelarmos pra nossa sensibilidade, pra nossa consciência e pra nossa convicção de que essas causas, essas dores, essas violências, como as acima citadas, são indiscutivelmente nossas, são feridas abertas em nós.
E quem somos nós? Somos, dentro da sociedade brasileira, aquela parte não demente, no dizer de Florestan, somos aquela parcela para a qual só resta a alternativa da luta organizada e que tem a obrigação histórica, como diz a canção, de:
Sonhar mais um sonho impossível
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei,
é minha questão
Virar este mundo,
cravar este chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
Amanhã se este chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu
Delirar e morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT-Cuiabá
Diretor geral da ADUFMAT
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