A rotina da vida foi-se instituindo de forma radicalmente fundamentada no “trabalho”, mas não no sentido ontológico marxiano, e sim no sentido capitalista que elevou essa ontologia à máxima potência matemática, e em contradição nos despotencializou subjetiva, coletivamente e, por fim, humanamente.
Temos nossa casa, nossos horários, nossas relações permeadas pela rotina da atividade laboral; e a consequência disso?
Perdemos a capacidade para lidar com o extraordinário no sentido estrito do termo, como aquilo que está fora da ordem, sem programação, aquilo que não é o trivial, rotineiro, ou seja, ordinário. E quando os eventos extraordinários acontecem nos deslumbramos e paralisamos, depois buscamos encaixá-los na ordem, racionalizamos e nos incomodamos com sua existência, não sabemos lidar com os “estados de exceção” que tais eventos proporcionam. É assim quando nos apaixonamos, por exemplo, quando somos tomados de um sentimento que nos inunda a vida e que não faz sentido algum, a não ser o de tornar-se o sentido próprio da vida, até que transformemos esse sentimento em ordinário e, então, o encaixamos na rotina.
Este é também, o incômodo que nos causa o rompimento com a rotina laboral que uma greve nos provoca. Assim, vamos racionalizando sua função, seu objetivo, criticando a paralisação que ela causa, em última instância, em nossas vidas, afinal, em nossa sociedade, instituiu-se a máxima de que “somos aquilo que fazemos” enquanto atividade produtiva para o capital, ou seja, enquanto capacidade de produzir riqueza para o capital. Quantas vezes nos apresentamos às pessoas nos referindo a nossa atividade laboral? (Oi prazer, sou fulana, sou professora, psicóloga etc.). E quantas vezes, muitos de nós, julgamos como “vagabundos” aqueles que não produzem essa riqueza? FHC e seu discurso sobre os aposentados ilustra bem esse juízo de valores, que remunera mais às profissões que melhor servem ao capital.
Somos tão colonizados que transportamos para nossa vida íntima as metas produtivas que nos impõem o capital, num estado de competição eterno competimos com nossos pares, instauramos a competição em nossas relações cotidianas afetivas (sejam elas de amizade, de amor ou de trabalho). Quem cumpre melhor a meta ideal para ter uma vida perfeita e feliz?! Entre “ser feliz ou ter razão”, não há escolhas quando se faz da própria felicidade uma competição mascarada! Uma eterna busca do cumprimento da meta “felicidade”. Para tanto, aceitamos sem questionar que devemos ter isso, fazer aquilo e as eternas listas com receitas de como conseguir aquilo que não se tem ainda.
Na lógica social que nos damos e que nos é dada, de modo muito superficial, devemos ter uma boa casa, uma profissão em que sejamos socialmente reconhecidas e competimos com nossos colegas para sermos melhores, lógica absurda em que “melhor” se resume em ser “mais” (mais artigos, mais citações de seu nome, mais metas alcançadas, mais... mais... sempre mais!). Vivemos uma época das quantidades! E de “mais” em “mais” vamos nos tornando subjetivamente “menos” humanos, “mais” máquinas!
E seguimos na ilusão “máquina” de não sentir; o império da razão se sobrepôs à emoção e se instituiu (desde os gregos) que a razão coincide com pensamento e, em nossa sociedade atual, institui-se que pensar/razão é o que nos faz fortes e “melhores”. Aos sentimentos é relegada a fraqueza, a instabilidade, a insanidade. Não descumpra, não questione as regras, seja policamente correto! Controle-se! Não seja LOUCO! Não chores, não ria, não se irrite, não “perca a cabeça”, pois é nela, por herança de Platão, onde mora a razão.
Somos tão máquinas, que não aprendemos a lidar com a humanidade e a transformamos em superstição, transcendência, já dizia Espinosa: “(...) os homens são dominados pela superstição enquanto dura o temor (...)”. E seguimos cumprindo as metas das provas, das datas de formatura, dos prazos que nos impomos, em suma, aprisionamos a vida pública e privada, nossa razão e emoção à meta das quantidades.
Fomos colonizados, emoldurados, formatados para seguir o absurdo das conquistas imediatistas (a tão almejada meta). Agimos em prol dos resultados. E que resultados têm uma intensa atividade política que ultrapassou longos quatro meses?
Acúmulo histórico, político e resistente. It´s bullshit! Qual foi a meta, o resultado concreto, real e imediato alcançado?
Em tempos de imediatismo, “cagamos” para o acúmulo histórico, para as conquistas que não nos são palpáveis. Esquecemos que a política é parte de nosso “fazer ser” seres humanos. Deixamos o estágio abstrato e nos fixamos no concreto. Pobre Piaget, que entendia como natural, a partir da interação com o meio, essa passagem; talvez se sentisse perdido com a capacidade humana de não apenas aceitar, como “lutar” por permanecer na mediocridade concreta e imediatista.
Pois bem, na contramão dessa lógica dos absurdos (eu invoco como um mantra) nosso saudoso poeta-menino Manoel de Barros e lhes digo: “Perdoai eu preciso ser outros!”.
Profa. Vanessa C. Furtado
Professora do Departamento de Psicologia
Instituto de Educação/ UFMT