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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Por Aldi Nestor de Souza*
“Não era para ninguém estar aqui. O cara acabou de morrer e vocês estão aqui como se a vida não valesse nada, nada, nada. Não era para ninguém estar aqui”
Era o início da tarde de ontem, 30/11, corria o minuto 21 da reunião do conselho de ensino pesquisa e extensão-CONSEPE, da UFMT, quando, com a voz nitidamente embargada, a professora e pro reitora de ensino de graduação, Liziane Pereira, comunicou que por volta da hora do almoço havia recebido a notícia de que seu sobrinho e afilhado tinha morrido de covid. E que, por conta disso, faria a leitura do parecer que lhe cabia em um determinado processo (sobre o calendário do ano letivo de 2021), que seria o próximo da pauta, e logo em seguida se retiraria da reunião.
O que se seguiu a esse informe, de imediato, foi mais de uma hora de debate, exclusivamente, sobre o processo citado: conselheiros e conselheiras vorazes se inscrevendo para tirar suas dúvidas, questionando o modelo flexibilizado de aulas, pontuando a incerteza do tipo de aulas para 2021, exigindo que se faça uma avaliação do ensino flexibilizado para se poder pensar em calendário.
30 votos favoráveis, 10 abstenções, zero votos contrários e o parecer/calendário foi aprovado.
A professora agradeceu pelas mensagens de pesar que recebera, presumo, pelo chat da reunião, se despediu e saiu.
Fez-se um minuto de silêncio e a reunião prosseguiu. Não houve, sequer, um grito de desespero, um pedido de socorro, um lamento em voz alta, um descontrole, um pedido para pararem com aquela reunião, um questionamento sobre o que aqueles conselheiros e conselheiras estavam fazendo ali. Uma frieza de cortar coração! Homens e mulheres assustadores(as), com suas falas desprovidas de dor, alheias à morte ao lado.
Eu vi esse vídeo bem mais tarde, só à noite, depois de avisado do ocorrido, mas mesmo assim me assustei. Homens e mulheres que me dão medo, muito medo.
Esse fato ajuda a entender a dimensão da crise civilizatória pela qual estamos passando e mostra o quanto a universidade está imersa nessa crise. O fato me remeteu a dezenas de outros, iguaizinhos, que acontecem diariamente.
Lembrei, por exemplo, da morte do modelo, durante o desfile na São Paulo Fashion Week, de 2019, que após ter o corpo retirado da passarela e a morte confirmada, a organização do evento pediu um minuto de silêncio e prosseguiu com o desfile como se nada tivesse acontecido.
Na ocasião, o rapper Rico Dalasam, que havia sido convidado para falar por uma das marcas de roupa do desfile, saiu aos gritos: “Não era para ninguém estar aqui. O cara acabou de morrer e vocês estão aqui como se a vida não valesse nada, nada, nada. Não era para ninguém estar aqui”.
O fato me lembrou também da morte do representante comercial Moisés Santos, que morreu enquanto trabalhava, numa loja do Carrefour, em Recife, no último dia 14 de Agosto. Na ocasião, os responsáveis pela loja cobriram Moisés com guarda-sóis, improvisaram uma parede com tapumes e engradados de bebidas para proteger o corpo morto e seguiram com a loja aberta, cheia de clientes, normalmente. O corpo ficou das 7:30 às 11:00 aguardando o IML.
O fato me remeteu, óbvio, aos arroubos do presidente da república que, negacionista confesso, zombador da pandemia, tripudiador dos mortos e dos parentes dos mortos, na ocasião em que já passávamos de 162 mil mortes, comemorou a suspensão dos estudos no instituto Butantan que buscava uma vacina contra a covid e disse que somos “ um país de maricas.”
A impressão é a de que não há, e talvez não devesse haver mesmo(posto que todos estão submetidos a alienação incontrolável do modo de produção capitalista), nenhuma diferença entre o CONSEPE e o presidente da república, entre o CONSEPE e a SPFW, entre o CONSEPE e o Carrefour de Recife quando o assunto é a morte. Todos tratam-na com a mesma naturalidade e até banalidade, como um mero detalhe, um fato qualquer, a ser lamentado apenas num chat, frio e distante, durante uma reunião que não pode parar.
Possivelmente soasse absurdo, inaceitável, um acinte, se algum conselheiro ou conselheira sugerisse parar/adiar a reunião por conta da morte, por covid, do sobrinho de um dos/as conselheiros/as. Acho que ninguém teria sensibilidade para admitir um coisa como essa.
Mas acho também que esse é o ponto. A universidade não consegue parar pra pensar o drama que vive, a crise civilizatória que estamos atravessando, as saídas que ela pode oferecer, distintas de aulas, e que a sociedade tanto precisa. Há estudantes pedindo emprestado a sombra de marquises e também a internet de escritórios e lojas, para conseguirem assistir aulas(posto que não tem internet em casa). Mesmo assim, o calendário para 2021 foi aprovado, com a segunda onda da covid a passos largos e com a certeza de que as aulas continuarão pela internet.
Para quem ousa discutir ou debater criticamente essa tragédia, há um argumento contrário bastante usado ultimamente na universidade, que é o seguinte: “a gente faz o quê, cruza os braços e espera a vacina chegar?”. Repare que essa frase é igual as ditas pelo presidente da república, sobre a mesma pandemia: “ vamos todos morrer um dia”, “ e a gente faz o quê, para a economia?”, “ não sou coveiro, tá!”
Sinceramente, o que espero é que a professora Lisiane e sua família, bem como todas os outros colegas de trabalho, que andam perdendo tantas pessoas queridas, encontrem conforto nesse momento, que consigam superar tão dura perda e que tenham a certeza de poder contar conosco, seus companheiros e companheiras de trabalho, nessa hora tão difícil.
Por fim, espero que a gente consiga parar. Que a gente pare o desfile, feche a loja e vele o corpo do trabalhador que se foi. Espero que a gente pare a reunião sem sentido, adie o máximo possível, dê uma trégua no pragmatismo estúpido e doentio, e celebre a vida e a emancipação humanas.
*Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de Matemática da UFMT
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