Roberto Boaventura da Silva Sá
Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP
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Depois de alguns dias da queda do avião que transportava a delegação da Chapecoense, jornalistas e outros trabalhadores, na qual setenta e uma pessoas perderam suas vidas, o Brasil, mais do que enlutado, perdeu também Ferreira Gullar, que foi quase de tudo um pouco: escritor, poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista..., mas, acima de tudo, um grande polemista; desses que o tempo ranzinza parece ter deixado de querer produzir.
Mas dessa sua última característica, particularmente, sei bem o que significava. Estive envolto a uma de suas polêmicas. Explico: durante a primeira campanha eleitoral de Fernando Henrique Cardos (FHC) à presidência da República, Ferreira Gullar esteve na UFMT, onde trabalho. A convite de um grupo de acadêmicos de História, esse grande intelectual brasileiro veio fazer campanha política para seu amigo e ex-professor da USP.
Após sua exposição, sempre bem articulada, bem-humorada e recheada de detalhes, fiz a ele uma pergunta embaraçosa: se, tendo a importância que tinha na vida cultural brasileira, tendo, inclusive, sofrido com as consequências do golpe de 64, não se constrangia de defender uma candidatura que tinha como principal aliado o antigo PFL (hoje, DEM, mas antes, ARENA), capitaneado à época por Antônio Carlos Magalhães (ACM), aliado do regime militar golpista. E ainda lembrei a Gullar de que ACM não era um aliado qualquer, tanto que seu codinome era “Toninho Malvadeza”, ou, no popular, “Marvadeza”.
Diante do embaraço, e sem resposta racional que pudesse convencer quem quer que fosse, Gullar partiu para a emoção, dizendo que aquela pergunta só podia mesmo vir de um dos puritanos do PT.
O auditório, repleto de seres igualmente emocionados e envolvidos até o pescoço numa campanha política, foi ao delírio; e eu, naquele momento, indignado, mesmo não sendo um petista, fui direto para o computador, ou para a máquina de escrever, nem me lembro com exatidão. Só me lembro que produzi um ensaio intitulado “Quando o aplauso não é plausível”.
Ali, fiz várias reflexões do significado político do aplauso, em especial daquele aplauso, que dava aval, dentro de uma universidade pública, a um segmento que se juntava com o que havia de mais retrógrado no cenário político de nosso país.
A Aliança Renovadora Nacional (ARENA), em antagonismo imediato como o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), fora o partido de sustentação dos golpistas de 64. Esse era o berço do principal apoio partidário que FHC recebeu para ser eleito presidente em 94 e avançar no projeto neoliberal inaugurado por Collor de Mello. O prêmio que o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de FHC deu àquele agrupamento político conservador foi a vice-presidência da República. Quem não se lembra de Marco Maciel?
Mas a despeito desse episódio, nunca deixei de admirar a obra de Gullar; tampouco de citar em artigos e usar em minhas aulas poemas seus. Nunca deixei de enxergar nele um ser humano que fazia de tudo para acertar e ver as coisas numa trilha correta. Portanto, mesmo divergindo de algumas opiniões e postura políticas suas, continuei a admirar sua imensa capacidade de se espantar com as coisas; afinal, a cada espanto seu, um poema de alta qualidade, a nós, vinha à tona. Enfim, sua existência foi um grande presente a todos os brasileiros. Sua ausência física, paradoxalmente tão frágil quanto forte, agora passa a ser preenchida por sua gigantesca e profunda produção artística.
Que Gullar viva sempre em nosso meio.