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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Por Aldi Nestor de Souza*
“Traga-me um copo d'água, tenho sede
E essa sede pode me matar
Minha garganta pede um pouco d'água
E os meus olhos pedem o teu olhar”
Dominguinhos – Tenho Sede
Beber água, fazendo as mãos de cuia, na beira de um córrego, é uma coisa. Beber água, abrindo uma geladeira, escolhendo uma garrafa e um copo adequados, é outra muito diferente. A sede pode até ser semelhante, o ato social de matá-la, não.
Quando a água era coisa que dava nos rios, de graça e não cogitava virar uma mercadoria, bastava à humanidade, acossada pela sede, talvez após uma caminhada, curvar o corpo, esticar os braços e tomá-la natural, pura e à vontade, direto da fonte, sem intermediários, numa relação certamente próxima de natural. Não havia, nessa altura da história, com respeito a forma de matar a sede, muita diferença entre o ser humano e os outros animais.
Com o passar do tempo, a água foi invadindo as moringas, os potes, os tonéis, os barris, os tanques, os filtros até, finalmente, as geladeiras, seu estágio atual. Cada mudança dessa foi forjando a sede e, fundamentalmente, foi desnaturalizando a forma de matá-la. Diversos intermediários foram se aproximando, entrecruzando e intervindo na trajetória da sede. O artesão do pote, do barril, do tonel, o fabricante da geladeira são alguns exemplos. O ser humano também foi se alterando. O que bebe água gelada certamente é outro tipo de ser, tem o paladar muito distinto daquele que fazia as mãos de cuia.
A água, hoje, tem dono, está privatizada, inclusive a do subsolo, dos confins da terra. Está até na bolsa de valores. Virou uma commoditie. Ganhou rótulos, marca, código de barras, data de vencimento, enfileirou-se em prateleiras. Uma cadeia produtiva, de proporções gigantescas, está por trás de um simples copo d’água. E a humanidade nem se assemelha àquela natural, que ia ao córrego. Também se distanciou daquela que usava moringas, potes, barris, filtros e que ia aos artesãos. Matar a sede se tornou algo muito mais complexo, exige até conhecimento científico.
A geladeira depende de uma linha de montagem e de uma quantidade quase incontável de pessoas no seu entorno. Tem modelo específico, cor, design, nível de consumo de energia, capacidade em litros, marca. É produzida por certo tipo de trabalhadores, com variadas formas de direitos trabalhistas. É vendida numa loja, por outros trabalhadores, com outra configuração e outra forma de trabalho. É entregue nas casas dos compradores por outros trabalhadores, sujeitos também a outras regras do mundo do trabalho. A geladeira é um produto do trabalho assalariado, que a humanidade das mãos de cuia nem em sonhos imaginava que viesse a existir.
Uma fonte de energia é necessária para gelar a água. Talvez a construção de uma hidrelétrica, talvez a tecnologia da energia solar ou eólica, um certo tipo de política energética, uma agenda governamental. Aqui, outros milhares de trabalhadores envolvidos: engenheiros de diversos tipos, advogados, cobradores de impostos, trabalhadores da companhia de energia; e uma classe de políticos: vereadores, deputados, governadores, senadores e até presidentes da república. Da confluência e da disputa entre toda essa gente sai uma fonte de energia.
Para construir uma hidrelétrica, outros milhões de pessoas, além dos trabalhadores da construção, são afetadas diretamente, populações inteiras, cidades inteiras são remanejadas. Mas também a fauna e a flora do entorno do rio a ser contido. Uma operação invasiva e de dimensões profundas é realizada e está por trás do ato, aparentemente singelo, de se beber um copo de água gelada.
A garrafa também mobiliza outras gigantes da indústria, outros incontáveis trabalhadores, milhões de outras relações sociais, inclusive a indústria petrolífera e a ciência mais avançada. Uma simples mudança no formato da garrafa, para economizar plástico e baixar os custos de produção, envolve modelos matemáticos de otimização, a engenharia química e o estudo da resistência de materiais. Muito distante dos reservatórios de água e de quem vai matar a sede, uma frota industrial trama, intervém, media e controla os passos da sede.
O copo também tem sua existência e suas mediações. Também é consequência de uma cadeia produtiva. Assim como a garrafa e a geladeira, tem modelo, cor, marca, tamanho, design. E para cada uma dessas coisas, trabalhadores com diversos tipos de habilidades são necessários. Tem copo para adulto e para criança, tem de vidro e tem de plástico. O copo também impõe que a ciência se mexa, que a tecnologia lhe atenda. Também depende das decisões de estado sobre os direitos e as políticas trabalhistas, pois assim como a geladeira e a garrafa, depende do trabalho.
A indústria de água mineral é um capítulo à parte. Retirada de certas propriedades privadas, a água mineral é embalada em garrafões e comercializada. A compra desses garrafões de água, em geral, depende de uma companhia de telefonia ou de uma rede de internet. Novamente, outro sem número de trabalhadores envolvidos, entregadores por aplicativos, com tecnologia de ponta nas mãos e submetidos a condições de trabalho precárias.
Beber um copo d’água, hoje em dia, aquece a economia, mexe com o produto interno bruto, agita o mercado financeiro, inflama os especuladores. Beber um simples copo d’água, mesmo no silêncio da noite, mesmo se estando em casa, com as portas trancadas, é um ato que obriga o mundo inteiro a ficar sabendo. Ninguém, hoje em dia, bebe um copo d’água impunemente.
E é um mistério, algo como um feitiço, que toda essa avalanche de gente e de acontecimentos estejam por trás de um simples copo d’água e a gente nem se dê conta. É fascinante, intrigante, o número de funções que um copo d’água cumpre. Matar a sede parece ser apenas o mais aparente, o mais simples de se entender.
*Aldi Nestor de Souza
Professor do Departamento de Matemática- UFMT/Cuiabá
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