Terça, 12 Abril 2022 08:56

NÃO OLHE PARA BAIXO: ADULTOCENTRISMO, O SILÊNCIO E A NÃO VACINAÇÃO DAS CRIANÇAS - Paulo Wescley Pinheiro

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.

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Por Paulo Wescley Maia Pinheiro



 

          Os mais otimistas dizem que é hora de olhar para frente, falam que o pior já passou e que a vida finalmente vai poder seguir seu curso. Entramos em abril de 2022 num quadro de aparente volta da normalidade e o mundo olha para o horizonte tentando deixar a dor da pandemia no passado. Um respiro quase consensual faz com que as máscaras caiam e tudo seria ótimo se as crianças não estivessem expostas sem qualquer condição de imunização.
          Assim, um tipo peculiar de negacionismo paira sobre a sociedade: o daqueles que antes defenderam os cuidados na pandemia, a importância da ciência e da vacinação mas que, agora, esquecem que parte da população permanece sem esse direito. O amortecimento dos críticos de outrora se junta ao discurso horrendo dos grupos antivacinas e a funcionalidade das suas bravatas que tanto atrapalharam os processos preventivos e o enfrentamento real da COVID-19.
          No dia 11 de março de 2022 a Anvisa recebeu a solicitação do Instituto Butantan para incluir a faixa etária de 3 a 5 anos na indicação da vacina CoronaVac. Seis dias depois a Agência pediu novos dados. Já no dia 22 de março uma reunião com entidades e especialistas discutiu o caso. No dia 04 de abril, uma nova reunião, um novo prazo, o mesmo silêncio da imprensa. De lá para cá pouco se soube dos trâmites do processo. O prazo se esgotou e nenhum veredito foi tomado, apesar dos estudos já publicados sobre a segurança da vacina. Famílias inteiras buscam uma luz no fim do túnel e só encontram o mais obscuro desinteresse.
          Entre um silêncio aqui e um sussurro ali, o mercado se satisfaz com o "novo normal" e com seus trabalhadores/consumidores vacinados. As crianças menores de cinco anos de idade estão esquecidas. O vácuo de mobilização e a falta de diálogo público revelam a desatenção quase generalizada. Na fila de espera estão as crianças e estamos nós, mães e pais, todos os dias caçando notícias sobre o tema. Permanecemos tendo que explicar para nossos filhos a necessidade da manutenção das privações, enquanto notas raras e superficiais saem nos jornais, informações protocolares são publicadas pelo governo e o mais absoluto desdém persevera.
          A sociedade moderna é adultocêntrica e costumeiramente trata as crianças de forma coisificada. No passado, corpos baratos e descartáveis, instrumentos do processo produtivo do modelo industrial nascente e componente do trabalho invisível da reprodução social patriarcal. Depois, crianças vistas como um vir-a-ser, um investimento para a futura força-de-trabalho especializada. Por último, assistidas  como mercadorias e nicho de mercado, valorizadas ou não por determinantes de classe, gênero/sexo e raça/etnia. Assim, os olhos para frente não enxergam crianças como sujeitos, como viventes e sobreviventes do presente. A visão ensimesmada de uma sociabilidade pragmática e adormecida pela desumanizacão tem seu horizonte no agora. Nele só quem produz é digno de ser enxergado.
          Na barbárie conjuntural o adultocentrismo produtivo vai se materializando mais uma vez: o silêncio dos movimentos sociais, dos partidos políticos, dos parlamentares, das entidades organizativas e da imprensa diante do tema da não vacinação não é um acaso. O “novo normal” retrata a essência do velho e impulsiona a culpabilização dos indivíduos e das famílias  diante dos riscos. 
          No entanto, por baixo dos nossos olhares embrutecidos de gente grande, a sensibilidade de gente pequena também tenta viver. Uma dessas pessoas se chama Elis, sou o pai dela, uma menina de quatro anos e seis meses de idade. Quase metade deste curto período em que está neste planeta, ela tem precisado ficar trancada dentro de casa. Não tem sido um período fácil, apesar dela ter aprendido muito sobre prevenção, autocuidado, a importância da ciência, do SUS e da responsabilidade individual e coletiva para o bem estar de todos. 
          Tal aprendizado, no entanto, não diminui a dor de um cotidiano de angústia e a ansiedade pela privação dos espaços públicos. Ela tem sido muito paciente, mas, ao ver todos nas ruas após a imunização e vivendo sem qualquer cuidado, não consegue entender o motivo de também não poder se vacinar. Eu, adulto, entendo as precauções, os protocolos sanitários e os trâmites para a vacinação segura. No entanto, também não consigo aceitar o desprezo coletivo na busca pela viabilidade da imunização dela e de todas as outras crianças. 
          O tempo passa. Cada dia a mais é um dia a menos. Em nossa particularidade (e a duras penas) conseguimos manter o distanciamento social preventivo. Já famílias que não tiveram direito às condições de isolamento permaneceram todo esse tempo vivenciando tensão ainda maior para diminuir riscos. Agora, a cada atividade presencial promovida, a pressão se amplia em cima de mães e pais, jogando a suposta escolha em não participar para os indivíduos, alimentando a imposição de colocar a criança não imunizada em um risco maior de contaminação. Criança, mães, pais e responsáveis são obrigadas/os ao "novo normal" ao mesmo tempo que são marginalizados nos espaços, no modus operandi muito emblemático das contradições de uma sociedade forjada no familismo, enquanto constrói sua lógica anti-infância e, sobretudo, no aprofundamento da invisibilização das mulheres mães, na ultra responsabilização da maternidade, na redução da paternidade como busca da providência financeira/material. Quanto às crianças, agora, ou estão nas creches e nas escolas, com uma probabilidade muito maior de adoecimento, ou continuam vivenciando a dura experiência do confinamento.
          E assim a sociedade olha para frente, segue a sua vida, busca uma justa retomada, mas esquece de olhar para baixo, de baixar a cabeça e perceber os pequenos sujeitos de direitos, as pessoas que permanecem vivendo a pandemia. Na linha inferior ao corte da visão dos adultos cansados de falar de COVID-19 o afeto é obscurecido, o cuidado é jogado para o espaço privado, a vida humana continua sem sentido.  
          Por ora, fica claro que tudo que vivemos nos últimos anos não serviu para sensibilizar o olhar para as determinações sociais da saúde e para o compromisso coletivo no cuidado de todos. Que Elis e sua geração consiga superar esse período histórico onde embaçamos ainda mais a nossa visão pelas lentes do negacionismo. 
          Que a vacina não mais demore. Que olhemos para baixo, encarando o horizonte sabendo que enquanto uma pessoa permanecer sem direito à vacinação, estaremos todos nós adoecidos.
 

 

Paulo Wescley Maia Pinheiro
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Professor da UFMT
Pai da Elis

 

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