Quarta, 12 Junho 2019 18:00

ENTRE A CRUZ E A ESPADA, A BATALHA DAS IDEIAS E UM BISPO NECESSÁRIO - Paulo Wescley Pinheiro

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Paulo Wescley M. Pinheiro

Professor da UFMT

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    O obscurantismo vai costurando sua perversidade por todos os âmbitos e a desesperança fortifica o medo social no tempo histórico da barbárie. Se a vida pede coragem, envoltos na atmosfera temerosa e fatalista é preciso lembrar a famosa frase do Bispo Pedro Casaldáliga de que “o problema é o medo de ter medo”. Se no momento atual de incertezas há muito o que temer é também importante que esse medo impulsione o enfrentamento dos monstros reais e a dissolução das formas fantasmagóricas.

    Na guerra de narrativas, na peleja simbólica e na batalha das ideias muito tem se escondido da retroalimentação da luta de classes. Perdidos entre encruzilhadas e facas de dois gumes estamos carentes de direção, de lideranças e de predileções, buscando soluções mágicas em convicções frágeis e apostas desesperadas numa banca falida.

    Há que se superar quimeras, cultivar a coragem do cotidiano e encarar a necessidade da paciência histórica diante das determinações do mundo como ele está. Uma famosa frase de outro lutador das causas sociais diz que “a prática é o critério da verdade”, assim é crucial que voltemos nossos olhos e lentes mais profundas para aquilo que se esconde na reprodução corriqueira dos desvalores sociais e para os exemplos de luta naquilo que se efetiva na vida do povo.

    Por isso tenho insistido em olhar para essas questões com atenção especial e me repetido que não basta criticar o conservadorismo, que não adianta apenas apresentar as incoerências, muito menos tripudiar em cima dos fatos que jorram dos escândalos oriundos das práticas dos hipócritas e oportunistas. A disputa real está em potencializar cotidianamente a afirmação que nenhum espaço da vida do povo é propriedade da direita, dos protofascistas e dos setores das milícias reais e virtuais. Para isso é preciso relembrar e fortalecer quem sempre buscou demonstrar possibilidades em todos os espaços, inclusive, na religião.

    Em tempos de cruzes laminadas e da sacralização das espadas se perpetua o mito de que a espiritualidade cristã caminha necessariamente com a intolerância, com a arrogância e com o comprometimento político com o fundamentalismo religioso e a ideologia ultraliberal da economia. No apogeu do protofascismo brasileiro as facções que catalisaram um “cristianismo de ódio” cresceram, caminharam pelos rincões do país e pelas vielas da periferia, ocupando o vácuo do Estado e a ausência de políticas sociais universais, o distanciamento dos movimentos sociais, sindicatos e partidos de esquerda, além do enfraquecimento da formação política popular com sentido emancipatório em todos os espaços.

    Obviamente, não é novidade que a história do Ocidente tem a cultura judaico-cristã e a estrutura religiosa como um importante pilar cultural do ethos moderno, burguês, branco, machista e eurocêntrico e que o processo de colonização impetrou particularidades históricas que fermentam as características da formação sócio-histórica do Brasil. No entanto, essa constatação em vez de enterrar os religiosos numa vala comum revela ainda mais a importância dos sujeitos individuais e coletivos que se expressaram na contracorrente desse processo.

    Nesse percurso, a ação orquestrada na Igreja Católica, a partir dos anos 1980, de dilapidar o humanismo cristão latino-americano da Teologia da Libertação casou com o fortalecimento dos setores neopentecostais do protestantismo, onde foi ganhando espaço uma lógica ampla que unificava a forma modernizada da indústria cultural com um conteúdo reacionário nos valores morais, articulando a potencialização da lógica neoliberal individualista e consumista com questões tradicionais.

    Esse processo se solidifica com o crescimento da ocupação da política formal por indivíduos e grupos fundamentalistas e reverbera a construção histórica do patrimonialismo brasileiro, da dificuldade de efetivação de um Estado laico, questão também fortalecida pelos recuos constantes dos governos ditos progressistas e sua ampliação dos conchavos políticos para alimentar os demônios que, tão logo se aprofundasse as expressões de crise do capital, viriam os engolir.

    No ano de 2013, enquanto pulsavam nas ruas as famigeradas grandes manifestações, tão discutidas e tão pouco compreendidas em sua complexidade, eu, como mestrando, finalizava uma pesquisa que buscava compreender a questão dos valores religiosos, do crescimento do fundamentalismo e do choque dessa questão dentro da formação acadêmica do curso de serviço social.

    Naquele estudo já era visível como havia um crescimento das tensões, de um revisionismo histórico e ideológico que vilipendiava no cotidiano possibilidades pedagógicas de debater o princípio da laicidade, da tolerância, do respeito e da diversidade e isso ocorria principalmente por esse fenômeno mais amplo do papel religioso na cena política, mas também apareciam os problemas de efetividade de disputa presente no debate contra-hegemônico. A despeito do crescimento na esfera pública de debates importantes sobre direitos de setores historicamente oprimidos ocorria, concomitantemente e paulatinamente, uma desconexão com a capacidade de enraizamento desses debates nos setores populares.

    Nesse sentido, pensando a atual conjuntura é preciso pontuar como foi (e tem sido) ineficaz o contraponto centrado apenas no apontamento dos equívocos de quem reproduz os discursos de opressão e menos no combate de quem articula e estrutura esse fortalecimento. Assim, a “hegemonia da contra-hegemonia” tem circulado no pragmatismo eleitoral, na naturalização das (im)possibilidades conjunturais e, quando busca sair disso, caminha apenas na esteira dos discursos em-si-mesmados, sucumbindo às particularidades em particularismos, potencializando falas apenas entre aqueles que já se tem identidade e convencimento.

    A atuação política performática instrumentaliza condições, reza para convertidos e joga no inferno a principal parcela dos sujeitos que sofrem as opressões. O não-diálogo é o princípio do espírito do tempo histórico da barbárie não somente entre os conservadores. O resultado são os gritos sem direção, as guerras meméticas, divertidas mas estéreis e a incapacidade de descer do céu dos discursos e símbolos e pisar no chão da realidade concreta das pessoas que sofrem, vivem e reproduzem os valores que temperam sua própria exploração e o conjunto de complexos que os oprimem.

    Pensando tudo isso e angustiado por menos ilusões de atalhos e muito menos escapismos pós-modernos, eu que sou um crítico ferrenho dos limites da estratégia democrático-popular e que estou convencido que seus problemas não foram somente táticos nos últimos anos, penso que é fundamental reconhecer suas práticas e experiências de mobilização e atuação na segunda metade do século XX e tudo que se construiu na luta por democracia, pelos direitos humanos e na construção de possibilidades de enfrentamento do conservadorismo brasileiro dentro da realidade das pessoas, partindo do cotidiano, formulando teoricamente, mas sem perder de vista o diálogo efetivo com a concretude da vida.

    Na seara das disputas dentro das religiões cristãs poderíamos citar muita gente na atualidade, poderíamos nominar pessoas como o Pastor Ricardo Gondim, poderíamos citar coletivos como as Católicas pelo Direitos de Decidir, poderíamos relembrar fatos recentes como a posição importante da CNBB em abril de 2017 contra a contrarreforma da previdência de Temer. Nesse sentido, se exemplos não faltam, nesse momento de desesperança, rememorar práticas inspiradoras é fundamental, por isso, é preciso reavivar um daqueles que marcam com sua vida a história e fazem de sua existência a materialização de que vale a pena lutar.

    Dois dias antes de uma greve geral, em tempos de sobrevivência ameaçada da universidade pública, da criminalização do pensamento livre e da demonização da ciência, da ética e da política a vida de um religioso marcada pela resistência, pela ruptura de cercas e pelo enfrentamento dos cercos terá sua biografia lançada. No dia 12/06/2019, no Instituto de Linguagem do campus de Cuiabá da UFMT, em evento organizado pela Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL), a vida de um homem necessário será lembrada no lançamento do livro intitulado “Um bispo contra todas as cercas: a vida e as causas de Pedro Casaldáliga”, escrito pela jornalista Ana Helena Tavares.

    Rememorar os caminhos e descaminhos de Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia, nos coloca a certeza de que o ser humano, imperfeito, mas criativo, individual, mas coletivo, historicamente determinado, mas um ser da práxis, pode muito, pode sempre mais, pode lutar nas condições mais adversas e nas instituições mais difíceis.

    Pedro é pedra, é padre, é poeta, é político e é povo. É o bispo das colisões linguísticas, políticas e ideológicas. Ousou mais que falar, viver, vivenciar o que se acredita. O bispo que reverberou uma verdade pujante, tão firme que foi capaz de se comunicar por todo o mundo e com todo mundo, falando com cristãos e ateus, com acadêmicos e analfabetos, com doutores das letras e doutores da terra, com o universo de todos aqueles que buscam uma vida com sentido.

    Não é preciso comungar da cosmovisão teológica do Bispo, mas é fundamental perceber que sua história resguarda uma contra-hegemonia que nos falta na batalha das ideias da atual conjuntura. Unir o pessimismo da razão com o otimismo da vontade é algo que esse e tantos outros sujeitos que construíram com o povo uma resistência coletiva transcende os limites táticos e estratégicos do campo majoritário da esquerda das últimas décadas.    

    Se queremos enfrentar as duras batalhas pelos direitos das pessoas da classe trabalhadora precisaremos romper as cercas e os muros para se comunicar organicamente, para escutar e se fazer ouvir, para pensar coerência mesmo na contradição, para ter menos fé no além e ter mais convicção, como Pedro, de que se pode ir além.

 

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Atenciosamente,

Paulo Wescley Maia Pinheiro

Professor do Departamento de Serviço Social da UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso.

Coordenador do Grupo ETOS - Grupo de Estudos  e açõessobre Trabalho, Opressões e Ontologia do Ser Social. 

 

 
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