Terça, 02 Abril 2019 17:33

ENSAIO SOBRE A MAGNÍFICA MÁQUINA DE MOER GENTE: PARTE 1 - Paulo Wescley

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Paulo Wescley M. Pinheiro

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Universidade

 

Na fábrica de trabalhadores

Não mais apaga dores

Não mais quadros e cores

Só moedores de humanos

 

Tem espremedor de anos

Tem um ralador de sonhos

Tem fermento de intempéries

Tem forno, lenha e esteira

Para produzir em série

 

Tem tempero de arrogância

Tem corantes de ganância

No discurso do produto

E na ferramenta do mestre

Tem doença e tem cobrança

Tem tremores e tributos

Carne fresca de doutores

Tem de tudo e tem de nada

Tem de pasto e tem de peste

Na sala dos roedores

 

Entra semestre e sai semestre

A fábrica trabalha dores

 

1.1. Prolegômenos sobre a Máquina: (não) leia o manual

 

    A forma como temos lidado com a produção e socialização de conhecimento tem nos colocado em esparrelas capciosas para nossos espaços de trabalho e estudo. Entramelados numa robusta engrenagem vamos seguindo o curso das catracas intelectuais, lubrificando o sistema com nosso suor, queimando o combustível dos nossos neurônios até não sabermos mais quem somos nós e quem é a máquina institucional que vivemos boa parte de nossos dias.

    No dia 29 de março de 2019, em uma mesa do Pré-Encontro Nacional de Educação, no auditório da ADUFMAT, dialogamos sobre uma interrogação tão pertinente quanto espinhosa: conhecimento para que e para quem? Em tempos de desconstrução da universidades nunca foi tão necessário se perguntar sobre isso.

    As gavetas das especialidades da ciência burguesa tem apresentado sua forma mais grave de decadência ideológica nesses tempos de crise. Isso hipertrofia o caráter mercadológico da ciência e o conhecimento como mercadoria. Cada vez mais distante de uma perspectiva de práxis que aproxime ação e reflexão partindo das necessidades coletivas, vamos naturalizando uma formação procedimental e cultivando relações de estranhamento entre os sujeitos da comunidade acadêmica.

    Da sacralização da razão instrumental abstrata ao processo de demonização de todo conhecimento racional temos nos percebido longe da superação da falsa dualidade entre o conservadorismo e a crítica pós-moderna. Um apelo ao pragmatismo tem se ampliado nos espaços da academia. A universidade tem se transformado em um espaço cada vez menos possível de disputas contraditórias e cada vez mais afirmado, explicitamente ou de forma tênue, o caráter desumanizador, privilegiando o ser tecnificado, o irracionalismo e a mistificação da realidade.

    O prólogo para entender uma série de problemas que vivenciamos enquanto docentes, discentes e demais trabalhadores da universidade perpassa por compreender como temos constituído nossas relações, qual a essência dessa instituição e como ela tem aprofundado os preceitos de uma determinada sociabilidade. Tentaremos apresentar esse debate em cinco seções de textos (incluindo esse) que compõem aquilo que eu intitulei de “Ensaio sobre a magnífica máquina de moer gente”.

    Nessa primeira primeira parte, procuramos introduzir a questão e apresentar a ênfase que daremos ao longo das formulações: o processo de expressões de sofrimento e adoecimento mental na universidade. A lógica de formulação e socialização de conhecimentos sem sentido é expressão de uma sociedade sem sentido e, assim, temos manifestado características similares de ampliação da exploração, das opressões e de sofrimento tal e qual outros espaços de trabalho presentes em nosso tempo histórico.

   

1.2. Reflexões sobre o sofrimento mental na Universidade

 

O processo de adoecimento no âmbito acadêmico não é propriamente uma novidade. Tem sido frequente o crescimento dos debates sobre o assunto, embora os eventos e proposições estejam longe de encontrar respostas efetivas diante da complexidade do problema.

O Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis (FONAPRACE), no ano 2018, desenvolveu um levantamento que demonstra a agudização dos processos de adoecimento mental entre os/as alunos/as. No ano anterior, ganhou as redes sociais uma campanha que explicitava uma série de formas do sofrimento discente dentro das universidades brasileiras.

Com o mote #NãoÉNormal, as imagens e textos circulavam denunciando a naturalização do modelo arcaico e hierárquico da academia, expressando a  perpetuação do autoritarismo, de diversas formas de preconceito e do silenciamento discente que, junto com diversos outros fatores, culminava em exposições de depoimentos sobre crises de ansiedade, processos depressivos, somatizações físicas, entre outras questões graves. Em matéria no dia 18 de setembro de 2017, o site Olhar Direto apresentou um dado expressivo que apontava que 10% das/dos estudantes da UFMT já pensaram em suicídio.

Não é preciso ser especialista em saúde mental para perceber que o cotidiano da universidade tem sido cada vez mais difícil. É perceptível a dificuldade progressiva em realizar processos efetivos em sala de aula. O que vemos são discentes cansadas/os, em sua maioria, aparentemente, desinteressadas/os ou desencantadas/os com o processo de formação. O sofrimento latente salta aos olhos de maneira multiforme, ora na apatia, ora de modo agressivo, outras vezes, desesperado. O difícil é tirar o véu da naturalização disso tudo e não cair em análises rasas, maniqueístas e imediatas da questão.

Não é raro a perpetuação de formas insistentemente equivocadas do trato sobre saúde mental e a concepção do que é ser saudável e doente nessa sociedade. Ora tratada como algo menor, do campo dos valores pessoais, da vida privada e de um plano afeito à “força de vontade”, também se chega ao processo de fetichização dos modismos de tratamento e, por fim, ao tradicional e limitado trato centrado em questões fisiológicas, genéticas, neurológicas e, em larga medida, protagonizando a centralidade do diagnóstico, da descrição de sintomas, do modelo biomédico como exclusividade e do uso de farmacos como principal elemento.

Na esteira do recrudescimento do conservadorismo, cresce ainda a imposição da moralização, da repressão e do disciplinamento como pilares importantes para fortalecer a desresponsabilização do Estado em detrimento do mercado e da refilantropização da saúde, além do enclausuramento, do proibicionismo, da desconstrução da laicidade e da focalização em ações individualizantes.

No tempo histórico da internação compulsória, das comunidades terapéuticas, da venda desmedida de remédios tarja preta, da política de “guerra às drogas” em detrimento da política de redução de danos, do senso comum dos livros de auto-ajuda e coach’s, além da assombrosa revitalização do manicômio, debater sobre saúde mental de forma rigorosa é mais que salutar, faz parte de uma reflexão sobre o caminho da barbárie que temos construído.

O que surge em nosso cotidiano é resultado de um vácuo nas políticas sociais, de uma forma reacionária do trato das expressões da questão social e da concentração de uma política de saúde mental que fortalece sua contrarreforma e privatização. A forma como temos atuado no “fazer ciência” não está alheia a tudo isso.

Entre tantas discussões e exposições de diversos olhares, quase sempre, se perde algo crucial: se está todo mundo mal deve haver algo de errado com esse lugar. Entra dia e sai dia, pessoas diferentes, com vivências particulares e distintas formas de acessá-las tem reclamado do cotidiano universitário e isso acontece entre alunos/as, professores/as e técnicos-administrativos/as. A conclusão óbvia é que numa sociedade profundamente adoecedora a universidade não é uma bolha.

Formar profissionais que não terão emprego para pessoas que não terão acesso aos serviços, produzindo pesquisas que não tem financiamento e socializando em periódicos que não são lidos tem sido a tônica da máquina de moer gente, dilapidando o espírito de quem sonha construir um outro processo educativo,diminuindo a resistência aos ataques às possibilidades de atividades emancipatórias dentro desse lugar.

Quando não nos concentramos em debater um projeto de universidade articulado ao desenvolvimento de um projeto de sociedade tendemos à articulação imediata das questões fenomênicas como elemento essencial. Assim, passamos a não refletir sobre quais as determinações de um cotidiano tão pesado e vamos apenas reagindo sobre ele.

Se não passarmos a pensar a universidade como um instrumento que precisa ser disputado para uma lógica efetivamente pública, garantindo um tipo de produção e formação que realize os sujeitos que a constroem e a classe que a alimenta estaremos aprofundando o caráter adoecedor desta instituição.

 

1.2. O estranhamento no espaço do conhecimento: universidade, relações sociais e coisificação

 

Nesse sentido, embora reveladora e importante, a campanha #Nãoénormal só expressa a ponta de um complexo fenômeno e, se percebida de modo isolado, tende a concentrar no/a professor/a o problema. Nas reflexões da maioria das pessoas que compartilhavam as peças da campanha a dimensão mais reproduzida era apenas uma crítica à forma de avaliação, à eventual tirania, ao ritmo exigido na formação acadêmica.

Embora saibamos o quão problemática é a forma de avaliação, mesmo que não seja ficção os inúmeros casos de abuso de autoridade e, por fim, reconhecendo as intempéries do aligeiramento da formação, há muito mais a ser colocado em relação às questões que envolvem a temática central para que o protagonismo do problema não caia sobre os ombros dos sujeitos que também são atingidos: os/as trabalhadores/as da universidade, inclusive, os/as professores/as

O coquetel de uma instituição historicamente determinada pelas elites, aprofundada no tecnicismo, no conservadorismo e na lógica formal-abstrata é um pontapé para entender que a idealização da academia encobre que ela é fruto e reprodutora da sociedade e de seus valores hegemônicos. O aspecto contraditório e contra-hegemônico sempre enfrentou a violência maquiada nos legalismos, formalismos, burocracias e afins.

Sendo assim, o racismo estrutural, a naturalização machista, lgbtfóbica e misógina, a falta de acessibilidade para deficientes, a desigualdade regional das instituições, o acesso não universal e tantas outras formas de reprodução das opressões aparecem em práticas e em componentes de todos os sujeitos que compõem a comunidade acadêmica.

Esses elementos se expressam desde os trotes estudantis à insensibilidade nas aulas por parte de professores, aparecem na falta de políticas efetivas de assistência estudantil, na hegemonia de um conhecimento eurocêntrico da ciência burguesa, na reprodução da desigualdade de financiamento e estamento de profissões do ensino superior, na burocracia e no burocratismo dos processos internos, etc.   

A lógica do capital se capilariza por todos os espaços e a universidade, ao invés de ser a idealizada e romantizada “fábrica intelectual dos trabalhadores” é, apenas, uma fábrica de trabalhadores, produzindo sujeitos podados para a esfera do mercado e assumindo o individualismo e todas as suas formas de expressão ideológica, desde a culpabilização de sujeitos até a miragem do oasis meritocrático e empreendedor diante do desértico cotidiano desumanizador.

Na agudização da crise da sociabilidade hegemônica o esfacelamento estrutural do espaço universitário degrada condições de trabalho e estudo, fortalece perspectivas conservadoras no campo teórico, potencializa críticas meramente espontaneístas e voluntaristas, numa perspectiva irracionalista e infantilizada.

Tudo isso reverbera em atitudes e práticas dos sujeitos que materializam posturas coisificadas, autoritárias e violentas, sejam na reprodução do status quo, seja na suposta tentativa de bradar suas intempéries para a superação. As disputas pelos quinhões produtivistas diante do corte de verbas são expressões disso.

Ao invés de uma leitura profunda da lógica imposta há, costumeiramente, apenas um senso comum esclarecido, que percebe expressões cotidianas de reprodução da mesma e impõe à elas a essência enquanto imediaticidade. A partir disso se esgota a crítica estrutural e se constitui à “caça às bruxas”, nos supostos jogos do micro-poder, sem perceber que há algo mais amplo que promulga a vigência dessas relações estranhadas nos diversos sujeitos e grupos particulares que vivem da venda de sua força de trabalho.

Não podemos fechar os olhos para as manifestações de violência, preconceito e discriminação no espaço universitário. Isso implica perceber suas expressões e o que representam essas posturas, responsabilizar legalmente quem pratica e pressionar politicamente por respostas institucionais para além do punitivismo.  

É necessário pensar os processo de contradições inerentes dessa sociedade que pulsam em diferentes formas de desenvolvimento de atos desumanizadores. Seja na lógica elitista dessa estrutura, que possibilita a reprodução do autoritarismo em muitos docentes, passando pelo processo de redução da importância dos trabalho dos técnicos-administrativos e a diminuição de seus postos de trabalho, chegando ainda no espraiamento de uma concepção desvirtuada, reproduzida por  grande parcela de discentes, oriundos da educação bancária, que tratam a formação como uma mercadoria e o professor como um instrumento de trabalho.

Quando permanecemos apenas descrevendo as manifestações imediatas passamos a desresponsabilizar a estrutura, amortecemos o impacto da lógica institucional e jogamos novamente para os indivíduos a responsabilidade de lidar com coisas muito mais complexas do que o que surge no campo da aparência. Uma manifestação de coisificação da práxis educativa se solidifica.

Semelhante à alienação no processo produtivo, um não-reconhecimento diante daquilo que realizamos se constitui em nosso cotidiano. O/a professor/a não se realiza naquilo que produz, envolto nos prazos, formalismos do sistema de avaliação da graduação e da pós-graduação e baixo rendimento com os alunos em sala de aula, cresce uma frustração constante. O/a profissional não tem identidade com os seus pares, diante da concorrência e do fomento da competitividade como tática de resistência individual na busca por espaço físico, notoriedade acadêmica ou financiamento de pesquisa e nem se enxerga nos/nas estudantes, diante da precariedade do exercício profissional.

Os técnicos-administrativos também vivem semelhante sentimento. Numa condição de trabalho distinta dentro do espaço de saber, vivenciam a desvalorização do seu trabalho, diante de uma imagem historicamente constituída de sobreposição do trabalho intelectual, presenciam o processo paulatino de substituição de sua função, imbuída cada vez mais aos docentes, por via da tecnologia, imposta aos estudantes empobrecidos pela tática de pseudo-estágios, de uma pseudo-assistência estudantil, que coloca a condição de recebimento de bolsa diante de horas de trabalho administrativo. Para os assalariados da universidade, docentes e técnicos, o assédio moral vira uma prática tão recorrente quanto naturalizada.

Aos discentes essa condição também se reverbera e com muito mais força. Sem identidade com os/as professores/as, concorrendo com os/as colegas, sem encontrar sentido no que estudam e nas perspectivas profissionais, a formação vira um peso sem sentido, uma via crucis a ser ultrapassada sem saber porquê. O/a professor/a adoecido/a, assoberbado de encargos, realizando trabalhos fora do horário de expediente e expressando os processos de ataques a sua carreira é um anti-clímax para o alunado que espera uma imagem do profissional idealizado como modelo da sua profissão.  

Com os trabalhos, provas, seminários, listas de presença e tantos outros medidores o foco permanece na nota que será registrada. O espaço de aprendizado se torna um momento do dia a ser superado e não aproveitado. Estudantes disputam, comparam, cobram, fiscalizam dentro da competição naturalizada no espaço do saber. Dentro da própria categoria haverá a seletividade constante. Desde o sistema de entrada da universidade, passando pela disputa das bolsas de iniciação científica, extensão e monitoria, o fomento de uma cultura egoísta é sempre potencializada.

Na política de assistência estudantil, o viés focalista reproduz a disputa para provar quem é mais pobre. Cada vez mais o caráter universal vai perdendo força para uma percepção residual.  Isso contamina, inclusive, os coletivos políticos que afirmam lutar contra essa lógica

Nessa equação, existe ainda o conjunto de trabalhadores/as terceirizados/as, invisíveis, silenciados e cada dia mais precarizados em seus processos de trabalho, temperando o pesado ar da academia, que busca atalhos cruéis diante de seu processo de desmantelamento.

Assim, a “alienação intelectual” torna a experiência universitária um processo autofágico. Todos praguejam a falta de condições como algo universal, mas buscam saídas particulares. O individualismo é a primeira expressão, porém, além dele, o corporativismo também se fortalece. Cada setor, grupo, curso, departamento, instituto, categoria luta pelo seu pirão primeiro diante da pouca farinha que é garantida.

Na parte que nos cabe nesse latifúndio vamos cultivando um processo educativo anti-emancipatório. Partindo da questão discente é impossível não lembrar daquele conhecido conto de Rubem Alves onde Pinóquio entra humano na escola e vai virando um boneco de madeira ao longo da formação. A paródia que demonstra o avesso do processo de humanização é pertinente.

Diante de tudo isso, já podemos notar que não há como generalizar uma categoria e culpabilizar apenas um sujeito diante de questões tão complexas. Pensar a lógica da universidade e porque ela tem se perpetuado num cotidiano de disputas, lamentações e sofrimento mental é descortinar o cabo de guerra entre diferentes sujeitos que, tendo papéis distintos, sofrem de modo peculiar as expressões de uma estrutura problemática.

Isso significa pensar a totalidade, realizar uma crítica estrutural, cobrar responsabilidade institucional, mas também pensarmos criticamente como catalisamos esse processo, como contraditoriamente todos os sujeitos acabam por reproduzir essa lógica.

 

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