Segunda, 22 Outubro 2018 09:01

O OVO DA SERPENTE FOI CHOCADO: PROTOFASCISMO BRASILEIRO E NOVOS DESAFIOS FRENTE AO OBSCURANTISMO CONTEMPORÂNEO - Paulo Wescley Pinheiro

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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.

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Wescley Pinheiro
Professor do Departamento de Serviço Social da UFMT

 

É chegada a hora do eclipse da potência e do ato. O ovo foi chocado e a serpente está solta, sua pele não é mais a mesma e seu rastejar não precisa exatamente das estruturas corriqueiras. O veneno explode no cotidiano e se naturaliza na histórica repressão e no aprofundamento do estado penal-policial. Seu veneno vem de diversas formas, poderá ser mais forte a depender do sufrágio mas ele já é bebido por aí.

Ébrios de todo o ódio possível, o/a trabalhador/a objetifica a vida, coisifica relações, enxerga coisa em outro/a trabalhador/a, enxerga objeto no diferente, normaliza a desumanização e ataca a superfície diante da degradação da vida que somente sobrevive. Sem referências coletivas, sucumbido numa política que parou no moralismo e separou-se da realidade concreta ele perdeu a crença nos instrumentos de sua classe e a fé na sua própria humanidade, aposta tudo no nada, no discurso vazio de conteúdo, mas assertivo na forma. A cobra sabe gritar. A serpente sabe mentir, sabe acalentar desesperos e temperá-los com as desigualdades mais diversas que alimentamos por aí. A serpente se alimenta de medo.

O seu veneno e o seu rastejar perfuram pessoas, potencializam históricas opressões, dilapidam a racionalidade e cresce da inoperância da aparente oposição cibernética, performática, identitária. Enquanto o saudosismo reacionário romantiza os anos de chumbo, obscurece suas contradições, relativiza sua concretude, a abstração da maior parcela supostamente contra-hegemônica romantiza a resistência, fantasiando estratégias e táticas de um outro tempo ou mistificando sua política numa bolha culturalista, obscurecendo suas ações para um autoritarismo muito mais complexo! A cobra trocou de pele.
 
Para sabermos o que fazer é necessário saber onde estamos e para onde iremos nesse barco à deriva no mar de raiva e incoerência. Para sabermos o que fazer é importante entender como chegamos aqui, como alimentamos essa serpente e como seus ovos foram espalhados e chocados por aí. As difíceis perguntas respondidas com respostas simplistas tendem aos desvios. É fundamental questionarmos o óbvio: como uma importante parcela de nossa classe pode espontaneamente abrir mão da democracia e, pelo caminho “democrático”, defender a desestruturação das mínimas conquistas que atingiu?
 
É preciso nos perguntarmos mais: a conjuntura atual demonstra o esgotamento da emancipação política ou somente desvenda seus limites? Seria o Estado penal-policial o amadurecimento do estado capitalista? A violência que nos atinge e que parece nos perseguir em sua radicalização num futuro próximo se dará pelos mecanismos formais ou estamos pintando o inimigo olhando para o passado e não para o presente? Muitas perguntas e poucas respostas materiais. No entanto, há caminhos para entendermos tudo isso.
 
Compreendermos as raízes históricas do nosso país, sua modernização conservadora, seu processo de revolução burguesa pelo alto e o desenvolvimento dependente e combinado com o imperialismo é o primeiro passo. Refletirmos sobre nossa história recente e como reproduzimos nossa estrutura não sendo capazes de acertarmos as contas com a última ditadura que aqui se colocou, também é importante. Por fim, é fundamental perceber como potencializamos o avanço do conservadorismo ao perdermos a capacidade da disputa de hegemonia, fazendo algo que partisse da vida concreta dos sujeitos de nossa classe e que não caísse no pragmatismo do status quo.
 
Perpetua-se na imagem estereotipada do Brasil elementos curiosos de uma formação repleta de contradições. Seja em importantes episódios de sua história, na própria conjuntura atual ou mesmo nos valores culturais, a simbiose de diferentes setores sociais em suas negociações políticas, a permanência de pensamentos arcaicos sob roupagens modernas e, por fim, elementos do cotidiano de brasileiras e brasileiros explicitam o limiar de uma constituição social peculiar.
 
Os conhecidos sinais de cordialidade e alegria do povo brasileiro vêm acompanhados pela naturalização de contradições e incoerências: a propagada característica de um povo pacífico, oculta processos de autoritarismo das elites ante levantes populares, o famoso “jeitinho brasileiro” explicita estratégias de sobrevivência ante as desigualdades sociais e, ao mesmo tempo, a reprodução delas com a banalização do patrimonialismo e de tradições antidemocráticas.
 
O país do carnaval e da fé, do sagrado e do profano, do povo trabalhador e do mito da malandragem disfarça, em seus estereótipos, as cisões que se construíram a partir da processualidade histórica de uma nação formada como colônia de exploração, calcada na escravidão dos povos africanos, na matança dos povos originários, no desenvolvimento rural a partir da monocultura, na industrialização precária e atrasada, no desenvolvimento regional irregular e desproporcional, na construção da cultura com fortes elementos do patriarcado, do machismo e do racismo.
 
Essa estrutura fundamentará a questão social no Brasil perpetuando uma dimensão de classe muito mais complexa. É essa lógica que moralizará a questão social e irá patologizar comportamentos contra-hegemônicos, justificará o encarceramento e o extermínio de uma parcela da classe trabalhadora, objetificará corpos, naturalizará violências e mercantilizará tanto os sujeitos historicamente oprimidos como buscará capitular e mercantilizar suas resistências coletivas e individuais.
 
No entanto, o autoritarismo burguês não é somente uma particularidade brasileira ou latino-americana. Na crise estrutural do capital a tendência de universalização das práticas fascistizantes se asseveram. A ideia de uma característica antidemocrática como exceção da sociedade capitalista reproduz a visão dualista entre democracia x ditadura, coerção x consenso, quando, na verdade, dentro da história, o processo elástico da emancipação política conflui num processo de unidade de contrários, de continuidade na descontinuidade e no processo de pressão de classe que esbarra em limites estruturais desta sociedade. A dimensão autoritária da burguesia faz parte do seu amadurecimento político oriundo de sua consolidação com seus projeto de sociedade e sua hegemonia política.
 
O que se apresentou como novo imperialismo foi na verdade a manifestação atual dos mesmos fundamentos que determinaram o modelo imperialista de todo o modo capitalista enquanto totalidade, que não se furtou de abarcar as particularidades para explorar ainda mais parcelas da classe trabalhadora, a partir de questões de gênero, raça/etnia, cultural, política e geográfica arregimentando a acumulação dos países centrais e a possibilidade de reprodução do capital.
 
O fascismo clássico, radicalização do poder do estado burguês como alternativa violenta, explícita e evidente às crises do capital da época foi articulado por uma necessidade histórica que perdeu hegemonia frente ao keynesianismo-fordismo, mas que nunca morreu enquanto possibilidade, muito menos sufocou seus elementos ideológicos e, por fim, não impossibilitou que o autoritarismo e a agressividade com os oprimidos permanecesse nos países democráticos no pós-guerra.
 
O fascismo contemporâneo revela nuances importantes que manifestam a agudização do papel do estado para o capitalismo destrutivo, que consolida a minimização para os direitos e políticas sociais e a maximalização para a repressão à resistência coletiva e estruturação do lucro do capital, seja pelo financiamento direto com o fundo público, seja como base estruturada para ampliação da mais valia absoluta e relativa. Ovo da serpente multiplica formas clássicas, mas também convive com as novas características do capital.
 
Há outros elementos importantes. A diluição das práticas autoritárias vão para além da estrutura formal do Estado. O binômio força-consenso se faz presente no cotidiano. O veneno se espalha na violência autorizada contra a diferença e a divergência. Não precisamos de um golpe clássico para que ela ocorra. A trágica forma limitada da democracia representativa e as distorções potencializadas pela mídia, pelo fundamentalismo religioso e pelo mercado já carregam de bandeja uma consciência coletiva reificada que legitima o autoritarismo. As forças armadas não precisam de Ato Institucional, podem marchar por aí para combater o tráfico de drogas, o crime organizado e, sem quebrar a institucionalidade, fazer uso da lei anti-terrorismo que foi aprovada dentro dos trâmites do estado democrático de direito.
 
E fica pior. A serpente do fascismo não tem seu principal exército no estado, o para-militarismo é e será a tônica principal! O problema maior não é “o guarda da esquina”, mas o vizinho, o colega de trabalho, o desconhecido que te olha na rua. A autorização da violência potencializará milícias, autorizadas pelo clima construído, pela inoperância e permissividade dos homens de toga, pela potência incoerente, mas imponente da grande parcela dos pastores inescrupulosos e do sensacionalismo midiático com sede de dinheiro, poder e ódio.
 
O agravamento da repressão virá com o armamento desmedido da lógica obscura, abjeta e objetificada de uma elite historicamente autoritária, de uma classe média rancorosa, e, de modo informal ou ilícito, de uma parcela da classe trabalhadora despolitizada, que reproduz o desencanto com a coletividade e se encontra em coletivos alienantes e alienados, que servirão de ponta de lança do capital, do genocídio da juventude negra, do feminicídio, da LGBTfobia, da xenofobia interna e externa e da morte quem buscar defender as liberdades democráticas, falseada pelo moralismo como defesa do comunismo ou como exclusividade da esquerda.
 
Contra a serpente não há para onde correr. Não há exílio. O levante autoritário é internacional. A particularidade brasileira é perversa, no entanto, o crescimento da barbárie é evidente e incendeia na “guerra ao terror”, na tragédia dos refugiados, na potencialidade da xenofobia e na divisão despolitizada de uma classe trabalhadora que vê o capital mundializado, o alto desenvolvimento das forças produtivas, a constituição de novas formas de exploração, mas que naturaliza tudo isso e quando as coisas se agravam e, no seu cotidiano, só enxergam inimigos tão próximos quanto falsos.
 
Quando naturalizamos o possibilismo, quando fingimos que a saída eleitoral é a única possível, quando perpetuamos a lógica do fim da história, quando abandonamos o trabalho de base, deixamos de disputar os espaços da cultura do povo, quando apontando somente reparos e não uma lógica emancipatória, deixamos espaço para o fascismo tomar de conta, aparecer como o encanto da sua serpente dizendo que remediará os problemas da contradição capital-trabalho pela força.
 
Quando o reformismo tardio e requentado apontou sua institucionalização forjada nas regras do jogo das elites e saiu das periferias, voltando somente com as políticas sociais do Banco Mundial, consolidou um artifício que não se sustentaria por muito tempo diante da crise iminente. Quando a lógica da política pós-moderna abstraiu a vida das pessoas e ofereceu apenas o campeonato das opressões e a caricatura de disputas privilégios, sem pensar a lógica interseccional e consubstancializada, perdeu força diante da potência moralista de nossas raízes históricas. Quando os coletivos autônomos e classistas sucumbiram em pequenos focos de resistência, distantes também da vida cotidiana, dos aparelhos ideológicos, da cultura e das bases populares, deixamos lacunas ocupadas por aqueles que tem fórmulas mágicas, discurso fácil e o vazio que cabe toda forma de opressão.
 
Enquanto se jogava para debaixo do tapete às contradições do “pacto social”, da “conciliação”, da coalização com sujeitos individuais e coletivos representantes do capital, se abandonava a capacidade de organização, de formação e de aprofundamento de uma cultura contra-hegemônica nos setores populares e se caçava de forma cruel e efetiva qualquer crítica séria.
 
Achar que as diversas expressões conservadoras e protofascistas surgem do nada, voltam de modo anacrônico ou por meio de devaneios faz parte de uma lógica que quer continuar crendo no jogo marcado da estrutura social vigente. Não estamos voltando para a idade média, isso é capitalismo, isso é decadência ideológica da burguesia, isso é a reprodução social buscando saídas dentro de uma crise estrutural e as caricaturas expressas em Temer´s, Bolsonaros, Dórias e afins são assustadoramente do nosso tempo, o tempo da barbárie. Não nos esqueçamos que o combate aos golpistas, aos fascistas, aos autoritários que estão no poder ou que almejam o poder passará necessariamente por quebrar a lógica atual e isso não se fará com atalhos.
 
Quando potência e ato se unem na língua da serpente a violência se exacerba e as possibilidades mais irracionalistas se consolidam. Explicitar a responsabilidade de cada força política que age em nossa sociedade para que tenhamos chegado até esse ponto é importante, colocar nossos desafios, idem. Isso não se remete em sermos irresponsáveis, abrindo mão de uma unidade imediata com todos os setores democráticos do país, sejam eles liberais e/ou reformistas. Não há como se abster: na agudez do tempo histórico não podemos titubear na tarefa frente as eleições presidenciais. Barrar a legitimação do fascismo é fundamental e qualquer posição abstrata, seja ela sectária ou moralista é perder o chão da história.
 
No plano mediato precisaremos conquistar corações e mentes frente ao (desen)canto da serpente, nos posicionando nos nossos espaços coletivos, ampliando as estratégias e táticas de autocuidado, endurecendo sem perder a ternura, cultivando lucidez frente a barbárie e reaprendendo à disputa de consciências.
 
A serpente está viva. Para além da tragédia das urnas ela continuará rastejando e o que temos pela frente serão anos de ascensão da violência. Enquanto transformam os instrumentos de luta da classe trabalhadora (sindicatos, partidos, etc) em palanques para promoções privadas, espalha-se ainda mais o seu veneno: o recrudescimento do conservadorismo e os riscos da instauração de um governo autoritário militarizado e também paramilitar.
 
Precisamos frear o fascismo nas urnas e esgotá-lo nas ruas. A regressão de direitos exige dos sujeitos coletivos comprometidos com a emancipação humana uma visão certeira, madura e estrategicamente firme dos limites da emancipação política, sem reducionismos e sectarismos, mas sem cair na condescendência minimalista e naturalizadora da reprodução do binômio exploração-opressão.
 
A serpente rastejará por dentro e por fora do estado. O veneno será bebido por todos os lugares. Aquilo que já era regra contra a classe trabalhadora empobrecida, negra, moradora da periferia e que também se expressava publicamente contra os setores autônomos, combativos e organizados contra o desmonte dos direitos hoje galopa de modo evidente, mais profundo, violento e apressado para dilapidar tudo e todos.
Qualquer alternativa que não busque o difícil, tortuoso, complexo e fundamental caminho para uma ruptura com a essência disso tudo será apenas a perpetuação do mesmo. Um dia chega o vendaval e a poeira sob o tapete vem para os nossos olhos. A serpente tem medo da verdade e seus ovos apodrecem com a força coletiva, por isso não há outro caminho que não seja o da luta emancipatória.

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