Terça, 31 Julho 2018 11:30

INUTENSÍLIOS - Aldi Nestor de Souza

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Aldi Nestor de Souza
  
 

E graças à China, o ser humano poderá chegar ao ponto de não precisar mais apertar o tubo da pasta de dentes. É que os chineses lançaram no mercado o Kit Dispenser Automático, um aparelho que funciona como suporte pro creme dental e que possibilita, com apenas um toque feito com a escova, que a pasta caia direto nas cerdas, na medida certa e pronta pra escovação.
 
Quando soube disso pensei que fosse só uma brincadeira, uma invenção maluca como aquelas do guarda chuva pros pés ou da gravata com espelho. Que nada. Na loja Mercado Livre, na internet, por exemplo, encontrei um rebanho com mais de 100 modelos diferentes do aparelho. Várias cores, tamanhos, preços, etc. Um mar de opções, a perder de vista e a nos forçar a acreditar que a coisa só pode ser séria.
 
De onde será que veio a ideia pra essa criação? Quem terá sido o empreendedor dessa façanha? O que fará o ser humano com o tempo economizado com mais essa comodidade? Estaríamos nós, humanos, desenvolvendo mais um instinto natural: o de transformar tudo em mercadoria, a qualquer custo, por mais desnecessária que esta venha a ser? Estaríamos a caminho do fim, da condenação de sermos obrigados a não fazer nada, não pensar, não se mover, apenas parar?
 
A partir desse kit, é bem possível que, neste momento, algum empreendedor já esteja pensando em algo como: um aparelho pra escovar nossos próprios dentes e em um outro pra abrir a nossa boca e ficar segurando nossos queixos durante a escovação.
 
Seja como for, o que parece certo é que o Kit Dispenser Automático contribui com o PIB da China, o PIB que se assenhora dos economistas e governos do mundo todo e os faz render-lhe graças, copiá-lo, estudá-lo, endeusá-lo. O PIB que determina o que o mundo é, o que as pessoas devem ser, o que deve ser feito. O PIB que reduz as pessoas a meros números, que suplanta o nosso ser e que transforma a vida das pessoas num imenso vazio.
 
Esse kit me remeteu aquela produção científica universitária, feita como numa linha de montagem, com datas, metas, números e resultados previamente estabelecidos e implacáveis, a troco de pontos pra engordar o currículo lattes e fazer existir o pobre do pesquisador, num processo em que pesquisa e pesquisador não passam de meras mercadorias. Nessa produção viciada, segundo afirma Daniel Lettier, no artigo “Por que professores universitários estão escrevendo coisas que ninguém lê?”, 80% de toda a produção de artigos acadêmicos ninguém jamais vai ler e portanto, se isso for mesmo verdade, tal produção não vai conseguir sequer transformar-se num Kit Dispenser Automático.
 
O que diria, desse kit, o filósofo grego Sócrates? do qual se conta que costumava andar pelas ruas do comércio de Atenas a ressaltar pros seus discípulos, em meio às lojas abarrotadas de produtos: “Vejam só, meus jovens, de quanta coisa eu não preciso para viver!”
 
Pensei também no que diria minha saudosa mãe, uma nordestina forjada no solo seco do sertão, sem nenhuma escolaridade formal, mas que sabia extrair,da casca do tronco do juazeiro, o creme dental de nossa casa. Com uma faca peixeira, ela raspava a casca, punha no sol pra secar e, depois de seca, esfarelava, ou batia num pilão e extraía um pó fininho com o qual a gente escovava os dentes.
 
Pensei, por fim, que, nesse ritmo,  não há analgésico que nos seja suficiente e que é preciso muita tarja preta pra suportar a angústia de existir nesse mundo que nos condena a ser apenas inutensílios, mercadorias expostas numa prateleira pra nada.
 
Que graça tem o mundo se existe uma tecnologia até pra apertar o tubo da pasta de dente?
 
 
Aldi Nestor de Souza
Professor do departamento de matemática da UFMT/Cuiabá
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