Sexta, 15 Junho 2018 10:48

ARTE OU RELATO DE VIDA? - Roberto Boaventura

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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP; prof. de Literatura/UFMT

 

A interrogação do título acima foi inspirada em “Paranoia ou mistificação?”, artigo escrito por Monteiro Lobato contra a exposição que Anita Malfatti realizou, em 1917, após ter voltado da Alemanha, berço do Expressionismo.
 
Impiedoso, Lobato desconsiderou a arte de Malfatti, embora reconhecesse seu “formoso talento”; inconformado com as inovações da exposição, disse:
 
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas... A outra dos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes...
 
Para Lobato, a segunda espécie cairia nas “trevas do esquecimento”.
 
Anita não caiu.
 
Mesmo ciente do erro lobatiano, correndo, pois, o mesmo risco seu, digo: grande parte da produção musical do que – hoje – se propõe a cantar a vez e “a voz do morro” não passa de relatos de vida.
 
Para reforçar a contundência dessa afirmação, tomo um “relato poético” de Drummond, que, no “Poema de Sete Faces”, enuncia sua trajetória existencial:
 
Quando nasci, um anjo torto// desses que vivem na sombra// disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida” (...)// Meu Deus, porque me abandonaste...// se sabia que eu era fraco (...)// Mundo mundo vasto mundo// se eu me chamasse Raimundo// seria uma rima, não seria uma solução...”
 
Mesmo na art engajé, há de se fugir da panfletagem. Até para denunciar a vida de miséria e violência das favelas, ou tratar do racismo, ou explicitar a condição social feminina e/ou do gay etc, há de se ter (e)labor(ação) poética(o), como nos versos drummondianos acima.
 
Ao artista, relatar não basta. Se – no plano da linguagem – não houver elaboração para a expressão artística, aquilo que se pretende/vende como arte não passa de denúncia de uma conjuntura social, econômica e política de exclusão e desigualdades.
 
O fato de relatos virem acompanhados por batidas envolventes, geralmente eletrônicas e repetitivas, por si, não é suficiente para elevar qualquer texto/discurso à condição de arte, por mais dorida e verdadeira que seja sua essência. Arte é suprarrealidade; não é a realidade em si.
 
Portanto, como relatos, respeito os discursos vendidos com registros musicais de inúmeros rapfunk... Como arte, não. Ao dizer isso, estou me afastando da hipocrisia e da visão populista de arte, mesmo quando me circunscrevo ao universo da arte popular.
 
Nessa perspectiva, exemplifico o que considero arte que pode dar voz a brasileiros das periferias, aos negros, a pobres, a mulheres, gays et alii.
 
No séc. 19, o romance que tem o olhar voltado aos da periferia é Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida. Já pelo processo de nominação das personagens, vê-se arte em suas páginas. Genial.
 
Muitos outros da arte-denúncia poderiam ser listados. Para este artigo, elejo Chico César: um negro, pobre, que nasceu em Catolé do Rocha (PB), driblou dificuldades para estudar em Caicó (RN) e depois em João Pessoa (PB). Um gênio. Na música autobiográfica “A prosa impúrpura do Caicó”, esbanja talento:
 
Ah! Caicó arcaico// Em meu peito catolaico// Tudo é descrença e fé// Meu cashcouer mallarmaico// Tudo rejeita e quer”.
 
Isso é relato, mas tão genialmente trabalhado que poucos chegam a compreendê-lo no cerne. Esses versos acionam referências repertoriais, tanto do universo cultural nordestino, quanto de Mallarmé, o poeta francês de Un coup de dés, que divide as águas da literatura ocidental.
 
Quando há talento, um relato vira arte maior. Do contrário, engana-se e viraliza enganos.
 
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PS.: por falar em arte, reforço meu convite já feito: domingo (17/06), às 20h, no Espaço Mosaico (Rua Floriano Peixoto, 512), realizarei uma experiência artística denominada “Só de Pérolas”, no qual cantarei, ao lado da cantora japonesa Akane Iizuka, um conjunto de músicas brasileiras poeticamente bem elaboradas. As músicas serão entremeadas por textos literários. Estão todos convidados. 

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