Sexta, 17 Maio 2024 17:10

A CENA É LIVRE: O TEATRO DA UFMT COMO UM LABIRINTO VIVO - Wescley Pinheiro

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Wescley Pinheiro
Prof. da UFMT
Integrante e coordenador do Cena Livre

 
               Muitas pessoas conhecem o Cena Livre, coletivo extensionista que existe desde 2016 na UFMT e que passou por diversos departamentos e institutos produzindo estudos e formação em teatro, realizando festivais de esquetes como o Cenas Curtas e espetáculos em Mostras Cênicas, como o Contidas Nunca Mais, Gatos de Rua, entre outros. Muitas pessoas também conhecem o teatro da UFMT, prédio imponente, estruturado, com um palco italiano clássico perfeito, uma coxia gigante, boa iluminação, acústica, posicionamento de cadeiras na plateia com um planejamento estratégico, um foyer iluminado, um salão nos fundos e um trabalho técnico admirável.
               No entanto, quem teve a oportunidade de ir ao teatro da UFMT no domingo, 12/05/2024, teve também a oportunidade de conhecer aquele espaço em minúcias pouco vistas para quem não trabalha nos bastidores. Pode também reconhecer uma forma de realização teatral que vai, em forma e em conteúdo, além dos elementos tradicionais.
               Mal o crepúsculo anunciava o início da noite e o disparador ligava as luzes dos postes da área externa, as portas da área dos fundos do Teatro da UFMT se abriram para a II Mostra de Performances do Cena Livre.  Enquanto isso, na entrada principal, devidamente trancada, um cartaz enorme anunciava: "O curso de extensão de artes cênicas da UFMT, Cena Livre, ocupa a entrada principal, para que possamos, que, para se ter teatro, não basta somente ter o espaço, é preciso existir arte". Assim, iniciava o circuito, com as pessoas sendo desconvidadas a observarem o teatro como cimento e procurarem nele a concretude da arte.
               A partir daí, setas pelo chão guiavam até a porta da administração, enquanto nos flechavam com a pergunta: porque não há curso de graduação em artes cênicas na UFMT?".
               A pertinência do questionamento  levava até a parte inferior do Teatro onde, de frente, um jovem negro declamava em voz alta o sofrimento de um sujeito alvejado pelo racismo, enquanto um cartaz convidava a se sentar, colocar os fones de ouvir o sussurro dos dados de mortalidade dos jovens negros no Brasil, a história da chacina do Beco do Candieiro, além de tantas outras tragédias reais da nossa vivida herança colonial.
               Ao subir as escadas, antes do foyer, se podia operar uma máquina que fisgava sentimentos, adjetivos e rótulos. A máquina era uma mulher. Um corpo sendo etiquetado por tantas palavras, um rosto com uma máscara, a primeira de tantas por ali, uma engrenagem provocando as pessoas passantes que seguiam o fio vermelho pelo chão. Logo em frente, um homem de olhos vendados empilhava moedas e chamava para jogar a trama alienada do valor de troca. O fetiche da mercadoria dinheiro era ridicularizado numa relação onde não havia espectador, mas cúmplice.
               No centro do salão uma cadeira com um aparelho celular em cima, esperando ser tocado e preparando-se para tocar quem atendesse a ligação. Ao seu lado uma jovem costurava seus sonhos e suas dores, tecendo generosidade, enquanto coloriam em seu corpo os sonhos e as dores alheias, encontrando empatia e reciprocidade.
               Ainda no foyer, um jogo, numa ponta havia um sujeito com um óculos de realidade virtual e seus controles eletrônicos nas mãos atadas ao outro pólo onde as mãos de uma artista buscava realizar um quadro. Num balé entre o artifício tecnológico e o recurso artístico, duas pessoas duelando uma dança entre a miopia virtual e a transcendência dos pincéis que ousaram perceber a figura de uma mulher atada, vendada e cercada, mas que estava em um outro lugar, no centro da plateia, no interior do teatro.
               Os fios vermelhos que se entrelaçavam por todo o espaço guiavam as tramas como artérias de um teatro vivo e em cada esquina encontrávamos uma novidade: Um jovem que trocava um medo por um poema, outro que oferecia a escuta de uma história amarga em contrapeso de um doce, dois artistas desfilando seu olhar vivo e ao vivo, por via de uma câmera intrusiva sendo apresentada por todo o espaço, o que aprofundava aquela overdose metalinguística. Tudo isso ainda do lado de fora, do lado de baixo, do lado de cima, por todos os lados, o metabolismo da arte pulsando.
               Somente quando davam a mão para uma mulher de olhos vendados para que ela ultrapassasse seus receios (e todos os medos que foram nela depositados), os fios vermelhos levavam todos para dentro do teatro, uma plateia quase vazia, recheada somente com olhos e bocas assistiam aquela mulher no centro, atada, amordaçada, também vendada, com uma atmosfera temperada com um som delicado e terrível, a mesma figura que do lado de fora seria pintada na tela que teimava em ser colorida.
               A mulher e a pintura realizada por outra mulher eram uma só coisa, ou melhor, um só sujeito coisificado, e aquela unidade só era possível pela singularidade das artistas, algo muito singular de pessoas que se enxergam sem se olhar, próprio daquelas que sentem as amarras do heterocispatriarcado e precisam ultrapassar as paredes, as vendas e as correntes que insistem em não se deixar ser tudo que se pode ser.
               No palco, um vestido branco no primeiro plano chamava atenção diante da luz avermelhada. Um manequim imponente, atolado em soja e em cruzes com nomes de pessoas, nome de mulheres. Uma faixa com o brasão de Mato Grosso ostentava o título de maior produtor de feminicídio. Do seu lado esquerdo havia um púlpito, onde uma mulher viva bradava um manifesto diante da violência. Sua voz se misturava com a música que vinha do centro da plateia, seus olhos e seus lábios se misturavam com os que estavam vendados e amordaçados também por ali.
               Os fios seguiam nos convidando a subir naquele palco, atravessar a cortina e enxergar entre luzes pulsantes o teatro, aquele que antes parecia ser um labirinto, agora, era de fato um. Uma instalação de cortinas e caminhos distintos  para adentrar nos descaminhos da arte e do mundo trabalho, onde os passos entre a necessidade e o desejo tropeçavam em livros, figurinos e perguntas. Ao seu lado, os camarins, em um, máscaras e sons, libertando a realidade de suas amarras, afinal, "ninguém estava olhando", do outro, uma jovem nordestina se projeta, realiza e mostra seu sonho, sua história e seu caminhar.
               E no fim do caminho, o início de tudo, uma projeção indagava se o Cena Livre é tudo que pode ser. Cadeiras do teatro por trás do palco, na coxia, convidavam o espectador a buscar a sua resposta.
               Acho que sei. Após atravessar esse caminho e tantos outros nos últimos meses de oficinas, ao lado de tantas pessoas, de tantas artistas, de discentes, de egressas e demais integrantes que tanto aprendem e tanto me ensinam, após tentar colaborar com a produção dessa mostra, após testemunhar o empenho das/dos artistas, dos técnicos do teatro, do público que prestigiou... penso que posso ousar uma resposta. O Cena Livre, apesar de todos os percalços, apesar dos boicotes, apesar dos pesares, e das vendas, e das máscaras, e da soja, e das correntes, e das paredes de vidro, e dos degraus, e dos labirintos... O Cena Livre é potência e ato, é extensão de fato, é extensor da arte tensa e necessária.
               O Cena é livre, um coletivo preso ao aprendizado, à crítica e à rebeldia. A sagacidade enfrentando o silêncio institucional, os feudos simbólicos, os totens e os tabus. Um teatro se fazendo vivo diante das paredes e das pessoas desbotadas. E se, para alguns, a vida nunca couber de fato na universidade, restará ao Cena essa tarefa de alargar essas paredes, com suas cores e com os fios que tecem um teatro contra as exploração e contra a opressão, um teatro educativo para quem o faz e para quem o vive e, por tudo isso, um teatro que incomoda e que mostra como seria bom se a universidade fosse tudo o que ela pode ser, inclusive, com uma política cultural democrática e estruturada.
               O Cena Livre é coletivo. É muito mais do que deixam ser e será muito mais, pois é recheado de pessoas que enxergam vida e arte onde muitos só veem cimento. Que venha o Cenas Curtas. Evoé.


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Atenciosamente,
Paulo Wescley Maia Pinheiro*
Professor do Departamento de Serviço Social da UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso.
Dr. em Política Social - UnB
Presidente da Associação Buriti Nagô
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