Quinta, 16 Abril 2020 11:50

CORONA VÍRUS, AUTOCUIDADO E SAÚDE MENTAL : MANTER-SE SÃO É POLÍTICO, MAS É PRECISO PENSAR A POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL - Wescley Pinheiro

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Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Wescley Pinheiro

Professor do Departamento de Serviço Social - UFMT

Doutorando em Política Social - UnB

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  Com as incertezas e impossibilidades impostas pela pandemia da Covid-19, da necessidade de isolamento social e de todas as questões da política que potencializam o sofrimento, o debate sobre saúde mental  tem aparecido como algo essencial. 

       Essa discussão, no entanto, não pode se limitar em formulações simplistas quando boa parte da população brasileira não tem condições materiais de desenvolvê-las. Sem tergiversar: o seu yoga, as lives musicais, os filmes no streaming, a manutenção de uma rotina, a alimentação saudável, a terapia por skype e os exercícios mentais para ser positivo... tudo isso é importante, mas saúde mental é outra coisa.

Afinal, há morte lá fora. Aqui dentro de nós, angústia. Em casas apertadas e espíritos suprimidos assistimos a falta de assistência encurralando quem precisa sobreviver. Vamos intercalando entre o ímpeto dos escapes e a vontade de acompanhar tudo-ao-mesmo-tempo-agora, esperando os piores noticiários, numa luta constante para subviver. 

“Quase democrático” em seu contágio, mas muito seletivo na forma e meios de tratamentos, o Corona Vírus é um adversário invisível que joga em nossa cara todos os outros tão mais antigos e concretos. A doença que causa prejuízo econômico pode ser também a cura para as tarefas do “quase democrático” liberalismo. Se viver é meritocrático chegou a hora de aprofundar a necropolítica e com ela, além de não morrer, é muito difícil não enlouquecer.

    É tempo de golpes. De horizonte rebaixado, de profunda confusão. De um governo apostando no caos como combustível para a barbárie, de viver o desespero. Parece não haver alternativas fora do sofrimento quando não estamos presos somente em nossas casas, mas sim nunca sociedade que sequer permite o isolamento social para sobrevivermos numa pandemia. 

Compreender o tamanho do problema é fundamental. Nesse sentido, sofrer por isso também é saudável. No entanto, se a percepção desse fenômeno supera as condições individuais e subjetivas, o cuidado com a saúde mental toma contornos mais potentes, afinal, se manter são ou, ao menos, desenvolver formas de se fortalecer emocionalmente é, cada dia mais, uma questão política, afinal, será preciso não sucimbir, será necessário está bem, tanto por nossa dimensão individual, quanto para resistir ao genocídio em curso.

Além disso, quando transcendemosl, percebemos que autocuidado não é auto-ajuda, muito menos que saúde mental se limita ao seu próprio bem estar e, portanto, esse debate precisa superar as questões clínicas ou circunscritas nas escolhas cotidianas. É preciso sim pensar as estratégias subjetivas diante do isolamento, mas temos que anotar algo ainda mais grave: assim como toda a saúde pública, a política de saúde mental vem sofrendo ataques históricos e chega no quadro da pandemia profundamente debilitada. 

Não é pouca coisa ou um tema secundário. É preciso pensar no autocuidado, mas é fundante ir além. É imperativo pensar que saúde mental é mais que uma opção, um conjunto de alternativas, fórmulas, dicas ou tratamentos que o sujeito pode  ou não escolher. Saúde mental é um direito, mais ainda, enquanto política, a saúde mental é um dever coletivo. 

Nessa direção, o binômio desresponsabilização do Estado e privatização/refilantropização da saúde sustenta uma contínua contrarreforma na saúde mental ampliando desafios. Esta dualidade aparece nos retrocessos legais, no desmonte da política de saúde, na privatização do SUS, nos cortes de verbas e precarização dos espaços e condições de trabalho.

Pensar a saúde mental enquanto uma política social é elementar para superar caracterizações voluntaristas ou fatalistas diante da totalidade histórica. Perceber as disputas diante das mediações entre cotidiano, política e economia e o processo de produção e reprodução da vida são pontos cruciais para a reflexão diante da constituição da política de saúde, as particularidades brasileiras, as conquistas firmadas desde as lutas dos anos 1980 e os atuais retrocessos.

A construção de relações subjetivas numa sociedade repleta de cisões é elemento chave para a compreensão do adoecimento mental e daquilo que esta mesma sociedade compreende sobre que é saúde e suas formas de tratamento. As diversas expressões da questão social atravessam os sujeitos, demarcam seus limites e possibilidades, apresentam alternativas a partir de sua classe, cor, etnia, gênero, orientação sexual, origem e geração. Mais que questões somente físico-químicas, elementos genéticos e fisiológicos o aprofundamento de relações coisificadas e de uma lógica desumanizada mergulha a formação subjetiva nas intempéries do seu tempo histórico.

Esses elementos estabelecem condições peculiares para a saúde mental da classe trabalhadora, com o aumento da pauperização e da degradação cotidiana dos espaços de vida e trabalho, ampliando as condições de adoecimento. O crescimento de uma lógica conservadora e moralista patologiza sujeitos, culturas e grupos, além de fortalecer a lógica manicomial e de tratamento centrado na medicalização e na repressão.

No campo ideológico temos o avanço das novas roupagens conservadoras explicitando velhas práticas, fortalecendo valores comprometidos com a manutenção de estereótipos e exercendo parte da função punitiva historicamente construída como substrato cultural imputado à loucura. Essa lógica tanto individualiza os elementos fundamentais da saúde mental e, portanto, de sua política, estruturando intervenções com esse caráter, fortalece o conteúdo reacionário e todo o ranço manicomial e, por fim, aprofunda o abismo de classe para o direito ao tratamento.

Aos pobres o manicômio, a internação compulsória, os fármacos, a suposta caridade das comunidades terapêuticas ou simplesmente o nada. Para as camadas médias, a clínica particular, os consultórios fetichizados, tabelados por diferentes preços, com seus profissionais e diferentes abordagens. Para essa parcela também temos os fármacos, tabelados pela moda do momento, aliados às terapias alternativas, palestras, livros de auto-ajuda, além dos coach´s, “os treinadores da vida”. Aos ricos, tudo, absolutamente tudo, inclusive a espetacularização da saúde e da doença.

Remediada para dormir e para acordar, a sociedade naturaliza as substâncias lícitas, vendidas nas farmácias, tolera outras tantas, vendidas nos supermercados, convive com a ilicitude de drogas sintéticas próximas das elites, enquanto aprofunda a ideologia de “guerra às drogas” com a lógica proibicionista, bélica e de aprisionamento em relação às camadas populares e se centrando em substâncias específicas.

O autocuidado no capitalismo é um privilégio, seja em tempos de pandemia ou não. O encarceramento penal imputado ao povo negro, historicamente escravizado e também aprisionado nos manicômios, junto de mulheres e outras parcelas oprimidas e marginalizadas se revitaliza no tradicional metamorfoseado. O moralismo e o bom mocismo, seja fundamentalista religioso, seja da segurança pública ou ainda das terapias alternativas, vai esfarelando a política pública estruturada em rede, com controle social da população, buscando alternativas reais para tratamento e enfrentamento por vias estruturadas em resultados efetivos e humanizados.

As perdas são incontáveis. Da Emenda Constitucional 55, que congela o financiamento das políticas sociais por vinte anos, da contrarreforma trabalhista de 2016 ou, ainda, nas publicações específicas da saúde mental como as GM Nº 3.588 de 21 de dezembro de 2017 do Ministério da Saúde, a Portaria nº 679 de 20 de março de 2018 do Conselho Nacional de Álcool e Drogas (CONAD), a Portaria GM nº 2434 do Ministério da Saúde e, por último, da Nota Técnica Nº 11/2019 intitulada “Nova Saúde Mental”, publicada pela Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde temos um conjunto de ações que impactam diretamente na pressão, enxugamento e deteriorização da saúde mental. 

Essas ações atingem seus profissionais e os usuários, impactando as condições de trabalho, mas também aprofundando uma lógica que volta a ter o hospital psiquiátrico como referência da política de saúde mental. O processo contínuo de regressividade vai se naturalizando dentro do cotidiano profissional e, por vezes, consolidando o minimalismo como única possibilidade de atuação.

O desprezo do governo brasileiro não é apenas com a vida dos idosos e outras parcelas do grupo de risco de mortalidade sob a pandemia do corona vírus. A forma de tratamento no campo da saúde mental atravessa a história de modo a invisibilizar sujeitos sobrantes na lógica da economia. Nesse genocídio quem restará?

Em tempos de isolamento precisamos pensar na clausura de quem já sofria intensamente, estando diagnosticado ou não com psicopatologias. Em tempos de ampliação do sofrimento precisamos pensar qual estrutura temos para realizar acompanhamento psicológico das profissionais da rede de saúde, dos familiares dos enfermos, de todos nós.

Em tempos de barbárie precisamos pensar em que direção estão indo os equipamentos e políticas da saúde mental. Sob a desculpa do cuidado, com essa população e com toda a sociedade, para milhares de pessoas, a covid-19 será a porta de entrada para suas internações compulsórias, para o extermínio das pessoas que vivem em situação de rua, para o aprisionamento em comunidades terapêuticas. O aperto no peito que todos sentimos no isolamento social é apenas uma das características de como o Estado Brasileiro trata as pessoas em sofrimento mental intenso.

E não para por aí. Para milhões de pessoas a terapia é algo distante, desconhecido, impossível. Para quase todos nós da classe que vive do próprio trabalho, qualidade de vida é um fetiche, um não-lugar. Manter-se são é resistência, talvez sorte. 

Quando a crise do capital degrada a condição de vida das pessoas, o Estado busca tomar as rédeas para administrar a possibilidade das taxas de lucro, a moral aparece como instrumento mistificador da realidade, engabelando possíveis resistências frente às questões essenciais e dirigindo olhares para a superfície. 

Por isso, as relações subjetivas, os espaços cotidianos de trabalho, a família, os lugares coletivos onde buscamos fortalecer o espírito, as relações de amizade, entre outros afetos surgem com toda a violência possível, materializando em nossas vidas aquilo que se projeta, se propaga e se consolida na lógica do protofascismo contemporâneo.

Nesse tempo histórico, o autocuidado individual passa por reinventar coletivos com sentido. Na exacerbação da forma mais grave da sociabilidade capitalista a reprodução do protofascismo e o aprofundamento do sofrimento mental exigirá de nós respostas contundentes. Entre as estratégias e as táticas, entre sofrimentos, desapontamentos e desafetos, entre a necessária resistência e a vida cotidiana haverão ainda mais desafios. O exercício de diálogo, de enxergar as pessoas, de construir relações para visibilizar nossa humanidade nos outros será também rebeldia em tempos de cólera.

O desafio, mais que terapêutico, é o de compreender essa angústia individual dentro de um conjunto de contradições desenvolvidas coletivamente. Nesse difícil momento de isolamento social a dificuldade também passa por perceber que essa frustração impenitente pelo aprisionamento de nossos planos e suspensão de nosso cotidiano precisa se conectar à consciência de algo mais amplo que nunca tem se efetivado, a nossa emancipação enquanto humanidade. 

É fundamental se indignar, se desesperar, não. É fundamental que essa raiva persistente se transforme em ódio de classe. Falo aqui de sentimento, não de ressentimento, não de uma raiva requentada, mas de potencializar nossas experiências para destruir o que nos faz sofrer e, assim, construirmos o novo. 

Se é salutar não se deixar corroer por pensamentos e atitudes destrutivas, é tão urgente não deixar amortecer a necessidade de reação, a potencialidade de nossa insatisfação para nos fazer forte diante das tarefas que virão. Que cada lágrima impossível de não ser derramada não vire romantismo, mas  fermente a força coletiva. Que cada sorriso no meio do caos não seja escapismo vazio, mas exercício de rebeldia e esperança.

A partir do momento em que evidenciamos os limites e as possibilidades, que descortinando  os fundamentos de nossos sofrimentos para além da lógica em-si-mesmada, podemos exercitar individualmente meios para sobreviver à desumanização presente. E podemos mais. Podemos encontrar humanidade, esperança na prática e não nas esquivas, experienciar, ainda que isolados fisicamente, a construção do novo pela luta coletiva.

É muito saudável ter perspectiva e é possível tê-la! Quando sairmos de nossas cercas, se juntarmos os nossos medos e as nossas coragens e direcionarmos para o que nos estrutura. Não há tempo para se enganar. Nesse momento histórico há um inapelável chamado para enxergar a dureza das coisas, mas podemos fazer sem perder toda a ternura.

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