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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP
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“Acabou nosso carnaval// Ninguém ouve cantar canções// Ninguém passa mais// Brincando feliz// E nos corações// Saudades e cinzas// Foi o que restou...”
Consoante o calendário cristão, eis a quaresma; logo, revisitemos a “Marcha de Quarta-Feira de Cinzas”, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, lançada em 1966, momento em que o Brasil já estava amordaçado pelo golpe de 64. Sendo assim, há de se atentar para o toque político da “Marcha”. Para isso, vale transcrever sua 2ª estrofe, uma vez que a 1ª abriu este artigo:
“Pelas ruas o que se vê// É uma gente que nem se vê// Que nem se sorri// Se beija e se abraça// E sai caminhando// Dançando e cantando// Cantigas de amor...”
O tom de ensimesmada melancolia da 2ª estrofe soma-se ao lamento da 1ª, onde “carnaval” serve como metáfora do termo “democracia”, que, na condição de bem social, havia sido roubada; por isso, o império da tristeza, pelo menos por parte dos que conseguiam ter a consciência política disso.
Todavia, logo após a 2ª estrofe, vem o refrão:
“E no entanto é preciso cantar// Mais que nunca é preciso cantar// É preciso cantar e alegrar a cidade...”.
No início do refrão, duas conjunções. A primeira é a aditiva “E”, que é insignificante perante a segunda. Na essência, o “E” empresta eventual força que pudesse ter para a locução coordenativa adversativa “no entanto”. Esta adversidade divide a “Marcha” em dois momentos distintos.
A partir do refrão, a tristeza deve ser deixada para trás; o eu-lírico passa a evocar (ou convocar) a necessidade da força popular, que deve resistir ao tempo vivido para atingir, num futuro, um estágio de alegria e de paz generalizada.
A evocação/convocação se dá por meio de um belo processo gradativo, consolidado pela necessidade de se cantar:
“...é preciso cantar// Mais que nunca é preciso cantar// É preciso cantar e alegrar a cidade...”
Poucas construções gradativas são mais fortes do que a desse refrão, pois a gradação passa a ter valor de ordem social a ser perseguida; isso em contraposição a artimanhas de um tempo de tantas perseguições políticas.
Na mesma perspectiva, o clamor do eu-lírico encontra-se consolidado nas certezas (ou em apostas de cunho positivo) inseridas no restante da “Marcha”:
“A tristeza que a gente tem// Qualquer dia vai se acabar// Todos vão sorrir// Voltou a esperança// É o povo que dança// Contente da vida// Feliz a cantar...”
Inesperadamente, o refrão, há pouco transcrito, não se repete, o que, em geral, é comum acontecer em textos poéticos. Ele se consubstancia em outras palavras, mas todas igualmente estão marcando a perspectiva de superação de um determinado estágio vivido:
“Porque são tantas coisas azuis// E há tão grandes promessas de luz// Tanto amor para amar de que a gente nem sabe...”
Na última estrofe, um pedido do eu-lírico:
“Quem me dera viver pra ver// E brincar outros carnavais// Com a beleza dos velhos carnavais// Que marchas tão lindas// E o povo cantando seu canto de paz...”
Se materializarmos o eu-lírico da “Marcha” pelos seus compositores, infelizmente, como sabemos, Vinícius não viveu para “ver e brincar outros carnavais”. Ele faleceu em 1980. A ditadura terminou cinco anos depois.
Carlos Lyra não só viu a redemocratização chegar em 85, como está vendo nossa democracia escorrer novamente pelas mãos, Bolsonaro encurta e aponta os limites de nossa democracia. Por isso, outra vez, “...é preciso cantar// Mais que nunca é preciso cantar// É preciso cantar e alegrar a cidade...”.
Cantemos, pois.
PS.: após fechar meu artigo, soube pela mídia que Bolsonaro compartilhou vídeo de manifestações contra o Congresso e STF. Estarrecedor.