Quinta, 07 Fevereiro 2019 17:14

DE QUANDO A MATEMÁTICA É UM ENGODO - Aldi Nestor de Souza

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Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Aldi Nestor de Souza*
 

Imagine um quintal cheio de coelhos e galinhas, todos vivos, vigorosos e soltos, com direito a fugirem e se esconderem sempre que alguém chegar perto.

Esse é um possível cenário, imagino, que possa motivar o seguinte exercício de matemática, exercício bem clássico, presente numa montanha de livros didáticos.

"Numa criação de coelhos e galinhas, contaram-se 400 pés. Quantas são as galinhas e quantos são os coelhos, sabendo-se que a diferença entre esses dois números é a menor possível? "

Pois bem, esse exercício está em uma das apostilas do PROFMAT, mestrado profissional em matemática, em rede nacional, destinado a professores de matemática do ensino básico e no qual dou aulas.

É um exercício bem irreal. Imagine o trabalho que dá, em vez de contar as cabeças, ou os animais como um todo, que é o usual, contar os pés das galinhas e dos coelhos. Ninguém faz isso. Imagine a canseira e o trabalho que dá contar os pés dos coelhos, que são animais ágeis, de pernas curtas, rentes ao chão, e que quando correm praticamente não vemos as pernas. Imagine dizer pra um sitiante, criador de galinhas e de coelhos, e acostumado a contar esses animais, que na escola, e até na universidade, existem situações em que tais animais são contados pelos pés.

Além disso, o exercício em si é desnecessário, uma vez que, evidentemente, a pessoa que contou os pés e sabe a diferença entre o número de coelhos e de galinhas, sabe a resposta do problema. Ou seja, é um exercício que não serve pra nada, exceto pra desafiar estudantes. É um exercício apenas de sala de aula. Eu, sendo aluno, me negaria a resolvê-lo.

Agora imagine quantos estudantes, ao longo da história,  pagaram um preço alto,  ficaram pra trás, tiveram que repetir de ano, traumatizaram-se e afastaram-se da matemática, por não dar conta de fazer um exercício tolo como esse. Imagine quantos, talvez a imensa maioria, sequer se deram conta de que estavam diante de uma imensa tolice, de um esforço em vão, de uma briga por nada.

Sim porque esse exercício é daqueles disfarçados de úteis, uma vez que vem vestido de um texto em português, sem linguagem matemática alguma e trata de coisas reais, que nos são muito próximas, quase familiares, como são galinhas, os coelhos e os quintais. Portanto, a estudantada dificilmente consegue parar pra perceber o blefe. E os livros didáticos, e seus autores, evidentemente, são cúmplices no jogo, pois incluem o exercício na seção de aplicações da matemática, que é o sonho de consumo de todo mundo. “pra quê serve?”.

É claro que a gente pode dar a desculpa de que estamos apenas treinando o modelo matemático, que resolve esse tipo de "problema", e portanto relativizar a crítica. Ainda assim, com tantos problemas de verdade que existem e com tanta coisa acontecendo no mundo, por que iríamos perder tempo com problemas falsos, com uma pseudo aplicação, com um engodo?

Matemática, só a título de lembrança, goza de um privilégio estupendo frente a sociedade, todo mundo confia cegamente nela,  quase ninguém ousa duvidar dos seus métodos,  e segue inabalável em todas as reformas de ensino: tudo pode cair, mudar, virar optativo. Matemática, não. Segue obrigatória e decisiva na formação das pessoas.

Como diz, Ole Skovsmose, em seu livro Educação crítica, ao concluir o ensino médio um estudante fez em média 10 000 exercícios de matemática, sem precisar pensar, apenas executou tarefas, seguiu modelos. O autor acredita, portanto, que matemática pode estar cumprindo uma função bem diferente daquela propagandeada aos quatro ventos, de ajudar a pensar, e a desenvolver o raciocínio lógico. Isto é, pode estar ajudando a preparar as pessoas pra, ao entrarem no mercado de trabalho, executarem funções repetitivas, adestradamente, sem questionamento. Mas isso já é uma outra história.

Voltando aos animais, a resposta é:

67 coelhos

66 galinhas

E o mundo vai continuar exatamente do mesmo tamanho.

 
*Aldi Nestor de Souza
Departamento de matemática da UFMT/Cuiabá
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