Terça, 20 Junho 2017 13:50

IMPRESSÕES DE UMA JOVEM [PROFESSORA] BUROCRATA - Vanessa Furtado

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Profa Vanessa C. Furtado

Departamento de Psicologia - UFMT

 

 

Quando vislumbrei a carreira acadêmica como possibilidade de atuação, muitos foram os estereótipos que permearam minha escolha: a possibilidade de realizar pesquisas que pudesse efetivamente trazer melhorias à sociedade; o trabalho em conjunto de ensino-aprendizagem enquanto processo dialético de produção de conhecimento; a integração da comunidade e universidade e a disseminação do conhecimento produzido pela universidade com a finalidade de dar acesso universal a essa produção. Hoje, cara a cara com a realidade, reconheço quão ambiciosos eram esses estereótipos que se tornaram planos de atuação quando fui convocada para assumir o cargo de professora.

 

Das condições materiais efetivas para o exercício de minha profissão dois me são ainda mais árduos   e   áridos:   a   falta   constante   de   recursos   e   profissionais   suficientes   em   meu departamento e a burocratização de meu trabalho. Um implica diretamente no outro, comecemos pela situação da falta de condições de trabalho, ou seja, de recursos. Logo em meu primeiro ano nesta universidade, participava de um curso de formação para professoras quando ouvi, da então reitora, que não deveríamos deixar de trabalhar pelo simples fato da universidade não nos dar as condições necessárias, se o problema fosse falta de data-show, então que o comprássemos com nossos excelentes salários. Na época, embora ainda engatinhando na profissão, achei a declaração absurda e me recuso terminantemente, até hoje, a comprar um data-show para dar aulas! No entanto, não me recuso a comprar livros dos quais a universidade não dispõe, não me recuso a buscar programas que escaneiam trechos de textos para disponibilizar para as turmas as quais dou aula e assim evitar que fiquem sem o material necessário, não me recuso a sair de casa com meu carro percorrer os campos de estágios (que são obrigatórios na grade curricular), às custas de parte do meu salário para abastecer o veículo, não me recuso de atravessar um prédio inteiro para utilizar os sanitários que vivem interditados por falta de água ou algum outro problema, não me recuso fazer orientações extra “PIA” para não deixar os/as discentes sem orientação, não me recuso a trabalhar três turnos e ainda finais de semana para dar conta das atividades que me são impostas. Enfim, nesta conta, o valor do data-show até que não me sairia tão mais caro!

 

Ah mas não só de sala de aula vive uma professora! Então, preciso integrar ensino-pesquisa- extensão (repetimos isso quase que como um mantra). E, para alguém como eu, que compreende a função social da universidade pública, congregar as teorias com as práticas de minha profissão e militância por uma sociedade mais justa é posto, também, como dever. Sem esquecer, é claro, que no mundo acadêmico tanto vale quanto maior for seu Lattes, portanto: PUBLIQUE! Assim, em algum momento entre todas as reuniões agendadas, aulas a serem preparadas e ministradas, trabalhos a serem avaliados, é preciso tempo para preencher os intermináveis formulários (e como se os já existentes não bastassem, criam mais um tal de REA),  que  devem  ser  “selado,  registrado,  carimbado  (protocolado)/Avaliado,  rotulado  se quiser voar”! Ou seja, TORNEI-ME UMA INEFICIENTE BUROCRATA! Alimentando os fantasmas da fiscalização do trabalho público, pois o mito da funcionária pública que não faz nada é tantas vezes propagado quanto se deseja acabar com essa espécie de serviço neste país.

 

E para que nos serve O burocratismo em uma universidade pública, onde tudo precisa de carimbos, etiquetas e protocolos? Respondo: para nos retirar do trabalho que nos é mais essencial nesta instituição: a produção de conhecimento (e aqui, leia-se: pesquisa, extensão e preparo de aulas). Quanto tempo dispomos do nosso dia-a-dia de trabalho para montar processos, carimbar folhas, levar ao local de registro, levar ao local de destino? Em meu caso, pelo menos, um turno do meu dia é ocupado por essa função, quando necessito montar um processo  para  legitimar  qualquer  ação  extra  sala  de  aula,  como  um  simples  projeto  de extensão que atenda as necessidades da comunidade matogrossense. Não são raras as vezes que eu penso em não realizar tais atividades, apenas para evitar todo esse ciclo de processos intermináveis. E não porque eu me ache incapaz de fazê-lo, mas por falta de tempo dentro daquela rotina já descrita acima.

 

Agora, o que mais me espanta e indigna é a naturalização desse processo burocrático, que atravanca os caminhos da produção e disseminação do conhecimento produzido em nossa universidade. Também não são raros os relatos de colegas que solicitam a estudantes que as auxilie nesse processo de preenchimento de formulários, usualmente atribui-se essa atividade a quem recebe bolsa, afinal precisa trabalhar. A naturalização dessa atividade é tamanha que, esquecemos que estudantes também recebem bolsa para pesquisar.

 

Para se ter ideia, apenas hoje, para correção de atividades em meu REA gastei cerca de 34 minutos (contados no relógio por pura birra) de um tempo que estava disponibilizando para preparar minhas aulas da semana. Ou seja, mais 34 minutos porque já havia gasto vários outros, em pleno feriado, preenchendo o tal do relatório com todas as atividades realizadas no semestre. E tome mais fiscalização! Como se não bastassem os imperativos do currículo lattes, do PIA, diário de classe, mais um REA. Pra meu espanto, só que não, as atividades registradas nesse  novo  relatório  ultrapassaram  as 40  horas  de trabalho  às  quais  deveria  me  dedicar exclusivamente.

 

Por um lado, achei ótimo ter uma forma de registro de atividades que chegam perto de demonstrar a realidade da atividade docente, por outro “que vantagem Maria leva?”. Estas horas-extras servirão para efeito de banco de horas ou adicional salarial? Não estranhem a pergunta,  pois  é  retórica,  contudo  necessária,  uma  vez  que,  são  estas  as  opções,  em instituições privadas, que se contrapõem ao conteúdo do e-mail que recebemos no início deste semestre, sob orientação da pró-reitoria de graduação, informando a necessidade de darmos aulas nos dias marcados, de justificarmos nossas faltas e planejarmos as reposições, caso contrário, nosso PONTO seria CORTADO! O que de fato não é um problema; entendo que faz parte de nossa obrigação enquanto funcionárias públicas, bem como, do compromisso que assumimos com discentes que necessitam das horas da disciplina para se formar. No entanto, estou tratando a questão por sua essência e não pela aparência, ou seja, muitos mecanismos se criam para regular e fiscalizar nossa atividade, porém, poucos para efetivarmos o trabalho que compreende ensino, pesquisa e extensão “aoommmmmmmm”

 

E desta forma, chegamos a meu último questionamento: a que se presta esse burocratismo fiscalizador? Qual a sua essência?

 

Pois bem, aprendi no movimento da luta anti-manicomial que, não adianta abrir as portas dos manicômios e sair das instituições manicomiais se o manicômio não sair de dentro da gente,

 

ou seja, a lógica que nos é ensinada de que a pessoa considerada “louca” é incapaz e deve ser tutelada e, de preferência, privada do convívio social se mantém. Enfrentamos, nesse âmbito, uma verdadeira resistência de se libertar da lógica manicomial “do passado” e assumir o novo modelo de  tratamento.  Transpondo essa  ideia para  nossa discussão  sobre  a  universidade pública, fizemos o contrário, paulatinamente estamos cedendo à nova lógica: a privatista, com resistências cada vez menores a cada nova leva de docentes que ingressam na universidade. O que vai deixando a “velha” lógica do trabalho docente de universidades públicas com ares de ultrapassada. Já sou capaz de vislumbrar as marchas para Brasília onde estaremos clamando por direitos tais quais os que tem os trabalhadores e trabalhadoras com regime de trabalho regido  pela  CLT  (e  sabe-se  lá  quanto  tempo esses direitos  durarão)  e  o  faremos  com as aspirações de que horas-extras e/ou banco de horas são grandes conquistas da luta para o funcionalismo público, para a carreira docente e venderemos alegre e servilmente nossa saúde ao   trabalho.   Quanto   mais   o   burocratismo   nos   retira   dos   espaços   de   produção   de conhecimento, mais privatizamos nossa sala de aula, nossa profissão e a universidade pública brasileira. “Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão” (Aldous Huxley).

 

E o que mais representa a lógica privatista do sistema se não a produção e metas? E o que mais representa essa lógica, hoje, na universidade pública do que a ilusão de que quanto mais se vale maior é o seu formulário de atividades docentes inócuas ao conhecimento, seja ele o Lattes, o REA ou quantos outros quisermos criarmos.

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