Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. Jornalismo/USP; Prof. Literatura/UFMT
Particularmente, gosto muito de ver as propagandas e as peças publicitárias que são veiculadas durante o carnaval. Desse último, destaco a peça “Onda”, que faz parte de uma série de filmes publicitários intitulada “Itaipava – Histórias de Verão”.
Antes, é bom lembrar: essa marca já foi obrigada em outros momentos a retirar do ar alguns comerciais. Motivo: sensualidade explícita. Agora, para driblar os cuidados do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), a Itaipava recorreu, na peça mencionada, a legítimos recursos da linguagem, como o interdiscurso e a intertextualidade.
Sempre que a arte necessita driblar limites, em geral, ela tende a ser rica. A riqueza da “Onda” já está na escolha de Gabriel, o Pensador, o protagonista-rapper que entrou para contracenar com Aline Riscado (a Verão).
Por trás dessa escolha esconde-se o recurso da “Autoridade do Discurso”. Resumidamente, traduz a capacidade de um enunciador (no caso, Gabriel) estabelecer o indiscutível em termos de exposição discursiva. Algo como: falou/cantou e disse.
Mas, afinal, o que há na centralidade do discurso que compõe o texto “Onda”, cantado/falado pelo pensador Gabriel?
Resposta: a presença de Leviatã, representado pelo Monstro do Lago Ness.
Essa presença carimba o registro de um belo intertexto. Explicando: “leviatã” pode receber vários significados. De qualquer forma, o primeiro e mais importante encontra-se no Antigo Testamento, mais precisamente em Jó, entre os capítulos 40-41. Ali, Leviatã é descrito como sendo uma criatura mitológica/simbológica.
Para a Igreja Católica, durante a Idade Média, ele simbolizou a Inveja. Foi visto como um dos sete príncipes infernais. Fisicamente, trata-se de um monstro aquático de grandes proporções, parecido com os crocodilos, mas que pode assumir outras formas, como dragão marinho, serpente e polvo.
Dentre suas “diabruras”, é dito que, quando se levanta, faz tremerem as ondas do mar. Ele pode mesmo mais que aespada, a lança, a azagaia e o dardo, que tentam lhe ferir de morte.
No comercial, Ness – “adotado pela galera” – vira “Nesinho”. Ao invés dos instrumentos mortíferos acima elencados, ele ganha de presente uma latinha de cerveja, lançada pela bela Verão. No momento em que ele emerge do mar, se for dado “pause” na imagem, ver-se-á um gigantesco falo no centro da cena. Aqui, há a presença de uma mensagem subliminar: um drible de mestre no Conar.
Mas mais importante do que o intertexto e o close subliminar é a crítica social feita pelo interdiscurso do momento político/econômico de perdas por que passa o país. Sustentado por boas metáforas (mar, tsunami, churrasco, Pirata da Perna de Pau), esse recurso surge já na abertura da peça:
“Todo mundo tá curtindo, o dia lindo,// mas o mar tá subindo, o tsunami tá vindo!// Deu pra salvar o churrasco, nada mal// Mas a onda trouxe o Pirata da Perna de Pau// Não era carnaval, mas até parecia...”
Aqui, o leviatã não é ainda o Monstro Ness; refere-se ao autoritarismo do governo federal. Nisso, reside o interdiscurso buscado no conjunto da obra Leviatã de Thomas Hobbes (1588-1679), precursor do pensamento liberal. Grosso modo, para esse pensador, “a guerra de todos contra todos” só pode ser superada por um governo central e autoritário. Esse tipo de governo seria uma espécie de monstro (o Leviatã), que sempre buscaria concentrar todo o poder possível em torno de si. Por consequência, ordenaria todas as decisões da sociedade.
Enfim, a onda mostrada por “Onda” é perigosa; alegoricamente, aponta a subtração de direitos.
Bela peça publicitária.