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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Por Danilo de Souza*
Se o fogo foi a primeira grande conquista energética dos Sapiens, permitindo cozinhar, iluminar e proteger, e a fotossíntese domesticada pela agricultura foi a segunda, construindo as bases para civilizações sedentárias, e se a terceira veio com a domesticação da força animal, que multiplicou a capacidade de trabalho dos Sapiens, a quarta revolução energética pode ser entendida como o domínio dos fluxos naturais. Refiro-me aqui sobretudo aos fluxos do vento e da água, que passaram a ser apropriados de modo sistemático para gerar movimento, trabalho mecânico e, em última instância, para ampliar a produtividade e transformar a organização social.
O vento, que por milênios foi apenas uma manifestação climática associada a fenômenos naturais e religiosos, tornou-se força útil quando os Sapiens aprenderam a dominá-lo e a convertê-lo em trabalho. Um dos marcos dessa conquista foi a navegação à vela, que permitiu explorar mares e rios de maneira mais eficiente. As embarcações movidas pelo vento conectaram territórios, ampliaram o comércio, permitiram expedições de exploração e guerra, e criaram um novo horizonte de mobilidade. A navegação, além de unir comunidades distantes, também consolidou impérios, transformou economias e abriu caminho para a globalização incipiente. O vento, ao encher as velas, moveu exércitos, mercadores e aventureiros, alterando o curso dos Sapiens (Casson, 1959).
Paralelamente, em terra firme, os moinhos de vento começaram a desempenhar um papel fundamental na conversão da energia cinética dos ventos em movimento rotativo. Esses moinhos, inicialmente simples, foram aperfeiçoados em diferentes regiões do mundo, assumindo formas e técnicas variadas, mas todos voltados à mesma finalidade: substituir o esforço humano ou animal pela força da natureza. O moinho de vento, seja para moer grãos, bombear água ou serrar madeira, representou uma libertação parcial do peso do trabalho físico cotidiano. Ele também significou a possibilidade de acumular excedentes, de aumentar a produção de alimentos, de reduzir o tempo despendido em tarefas básicas e, assim, de abrir espaço para outras atividades econômicas e culturais (Langdon, 2004).
Enquanto o vento se tornava motor de barcos e moinhos, a água se convertia em uma das mais poderosas fontes de energia mecânica. O princípio da roda d’água, que transforma a energia potencial e cinética dos rios em movimento rotativo, foi um divisor de águas na história tecnológica. Estima-se que uma roda d’água vertical pudesse gerar entre 2 e 5 kW, equivalentes ao trabalho contínuo de 40 a 100 homens (Smil, 2017). Da mesma forma, um moinho de vento bem projetado podia substituir a força de 30 a 50 trabalhadores em tarefas como moagem de grãos e bombeamento de água (Gies; Gies, 1994). No mar, as velas multiplicaram ainda mais essa capacidade, permitindo que embarcações do período moderno deslocassem centenas de toneladas de carga apenas com o aproveitamento da energia eólica (Cipolla, 1965). Essa constância e escala permitiram estabelecer oficinas e centros de produção em torno das correntes de água, criando núcleos de atividade econômica que, em muitos casos, foram embriões de cidades industriais.
Nesse cenário, a importância da energia hidráulica não se limitava à produção material. O controle das águas tinha também dimensão política e simbólica. Povos e reinos que dominavam as margens de rios caudalosos, além de possibilitar o cultivo de alimentos e o desenvolvimento do transporte, também disponibilizada de produzir trabalho mecânico, a partir da energia cinética e potencial dos rios. Assim como os ventos impulsionavam caravanas marítimas, as águas moviam moinhos e ferrarias, transformando paisagens e fortalecendo as relações de dependência entre a natureza e a sociedade, que estão acopladas.
A quarta revolução energética, portanto, ampliou a capacidade humana de gerar trabalho mecânico sem depender exclusivamente da força muscular, seja de homens ou animais. Esse avanço, embora técnico em sua essência, teve profundas implicações sociais. Com mais energia disponível, a produtividade aumentou. O tempo antes destinado a tarefas repetitivas pôde ser redirecionado para o artesanato, o comércio, a ciência, a arte e a guerra. As sociedades tornaram-se mais complexas, com maior especialização de funções e maior diferenciação social.
Esse domínio dos fluxos também introduziu uma nova mentalidade. Ao perceber que o vento e a água podiam ser domesticados e colocados a serviço da produção, os Sapiens desenvolveram uma visão mais instrumentalizada da natureza. Se no início o fogo parecia dom da divindade e a agricultura dependia de rituais para garantir fertilidade, agora os fluxos eram interpretados como recursos que podiam ser explorados de forma racional, com técnicas e cálculos.
Ao mesmo tempo, os limites dessa revolução eram claros. Nem todos os lugares dispunham de ventos constantes ou de rios caudalosos. A distribuição geográfica da energia natural criava desigualdades entre regiões. Locais com abundância de ventos ou cursos d’água tinham vantagens comparativas, podiam produzir mais e com menor esforço, enquanto outros permaneciam dependentes da força animal e do trabalho humano. Isso explica, em parte, a concentração de atividades econômicas e a formação de polos de desenvolvimento em determinadas regiões.
Na Antiguidade, os romanos exploraram rodas d’água em larga escala no complexo de Barbegal, próximo a Arles, no sul da Gália, enquanto na China o uso de rodas hidráulicas se difundiu ao longo do rio Amarelo. Na Idade Média, entre os séculos XI e XIV, cidades como Londres, Paris e Milão prosperaram com moinhos d’água, enquanto Amsterdã e outras regiões dos Países Baixos se destacaram pelos moinhos de vento usados no bombeamento e na produção agrícola. No Mediterrâneo, Veneza e Gênova ampliaram seu poderio com a navegação à vela, e, a partir do século XV, a energia renovável dos ventos nas velas impulsionou a expansão marítima principalmente de portugueses, espanhóis e ingleses por todo o mundo.
Assim, apesar das limitações, a quarta revolução energética teve impacto duradouro. Ela inaugurou a lógica que se manteria nas revoluções seguintes: a busca por converter forças naturais em trabalho útil, armazenável e aplicável em larga escala. O vento e a água, transformados em movimento por moinhos e rodas, foram precursores diretos das turbinas modernas. As turbinas eólicas e hidrelétricas que hoje geram grande parte da eletricidade mundial são descendentes diretas desses primeiros dispositivos. O que antes movia pedras de moer hoje alimenta redes elétricas inteiras.
É significativo notar também o aspecto simbólico dessa etapa. O vento, invisível, mas palpável em sua força, sempre esteve associado a divindades e mitos de liberdade, movimento e transformação. Esse domínio dos fluxos pode ser visto como um elo entre as primeiras formas de energia controlada e a era industrial. Sem moinhos e rodas d’água, dificilmente os Sapiens alcançariam a mecanização em grande escala. Eles representaram uma etapa intermediária, desde antes da Idade Média, até uma pré-industrialização, em que a energia natural começava a ser convertida em trabalho de forma cada vez mais sistemática.
A quarta revolução energética, portanto, pode ser entendida como a etapa em que os Sapiens aprenderam a dominar os principais fluxos da natureza para transformar o movimento invisível do ar e o curso incessante da água em trabalho produtivo. Essa conquista aumentou a capacidade de gerar excedentes e consolidar sociedades mais complexas, e lançou as bases para a modernidade energética.
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CASSON, Lionel. The Ancient Mariners: Seafarers and Sea Fighters of the Mediterranean in Ancient Times. Londres: Victor Gollancz, 1959.
CIPOLLA, Carlo M. Guns, Sails and Empires: Technological Innovation and the Early Phases of European Expansion, 1400–1700. New York: Pantheon, 1965.
GIES, Frances; GIES, Joseph. Cathedral, Forge, and Waterwheel: Technology and Invention in the Middle Ages. New York: HarperCollins, 1994.
LANGDON, John L. Mills in the Medieval Economy: England 1300–1540. Oxford: Oxford University Press, 2004.
SMIL, Vaclav. Energy and Civilization: A History. Cambridge, MA: MIT Press, 2017.
VAN RUISDAEL, Jacob. The Windmill at Wijk bij Duurstede. c. 1670. Óleo sobre tela. Rijksmuseum, Amsterdã. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/collection/SK-C-211. Acesso em: 7 set. 2025.
VAN RUISDAEL, Jacob. Water mill near a farm [Landscape with a watermill and men cutting reed]. c. 1653. Óleo sobre madeira de carvalho, 37,6 × 44 cm. Museum Boijmans Van Beuningen, Roterdã. Disponível em: https://collectie.boijmans.nl/en/object/2520OK. Acesso em: 7 set. 2025.
Coluna publicada mensalmente na revista - "O Setor Elétrico".
*Danilo de Souza é professor na FAET/UFMT e pesquisador no NIEPE/FE/UFMT e no Instituto de Energia e Ambiente IEE/USP.