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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP
Professor de Literatura; aposentado da UFMT
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Desde que, há poucos dias, o IBGE divulgou o resultado do Censo de 2022, diversos de seus dados me chamaram a atenção. Para este artigo, destaco aqueles acerca do número de estabelecimentos religiosos, expostos, por alguns veículos da mídia, em quadro comparativo com os números de escolas e de postos de saúde existentes no país.
Conforme o referido censo, no Brasil, há mais de 579 mil templos ou outros tipos de estabelecimentos religiosos, contra 264 mil de ensino e 247 mil de saúde; ou seja, os templos religiosos superam em mais de 68 mil a soma das edificações de escolas e de postos de saúde. Se nessa comparação fossem inseridos os teatros, que também são templos da cultura de um povo, a surra que as artes tomariam poderia ser ainda maior.
E é justamente por meio da arte que tentarei pensar um pouco o que pode ter nos levado à essa realidade. Começo resgatando o poema “O Padre Passa na Rua”, de Carlos Drummond, inserido no livro Boitempo, de 1968; aliás, esta não é a primeira vez que faço uso desse texto, posto tê-lo como um dos discursos artísticos basilares para nos auxiliar na compreensão da “alma” de nosso povo.
Eis abaixo o poema, paradoxalmente, tão curto quanto abrangente:
“Beijo a mão do padre// a mão de Deus// a mão do céu// beijo a mão do medo// de ir para o inferno// o perdão// de meus pecados passados e futuros// a garantia de salvação// quando o padre passa na rua// e meu destino passa com ele// negro// sinistro// irretratável// se eu não beijar a sua mão.”
Para contextualizar o poema, trago pelo menos duas informações: 1ª) na década dos anos 60, a Igreja Católica era quase um monopólio religioso em nosso país;2ª) os padres – via de regras, de batina escura –ainda visitavam as casas dos paroquianos; logo, beijar suas mãos era o mínimo que se fazia diante do auto proclamado “representante de Deus”, ali, tão perto dos mortais, induzidos, desde o nascimento a terem medo de arder no fogo do inferno por conta de seus pecados.Desse panorama, predominantemente católico, Drummond,como poucos, soube captar essa nossa captura mental exercida desde a chegada da primeira caravela nos idos de 1500.
Hoje, os padres – como também os religiosos de inúmeras outras inscrições, que quebraram o monopólio da fé católica –continuam entrando nas residências de seus fiéis, mas pela TV e redes sociais. Alguns entram como pop star; outros surgem como versões deprimentes de palhaços, usando chapéus, calças arrochadas e outras excentricidades. Seja como for, essas “visitas” virtuais são ainda mais constantes e contundentes; por elas, continua-se a pregar a mesma ladainha ancestral, qual seja, o medo de ir para o inferno. Alguns, pregam mais sutilmente; outros berram e fazem gestos teatrais inusitados. Tudo muito deprimente e oportunista, pois vivemos ladeados de seres que ainda acreditam que a Terra é plana.
A outra manifestação artística que me auxilia nessas reflexões é a canção “Guerra Santa” de Gilberto Gil (In: Quanta/1997), composta por conta daquele bispo que, em 1995, chutou a imagem de Nossa Sra. Aparecida durante um dos programas "Palavra da Vida", da Record. Claro que a “evolução” daquela criatura só poderia ter desaguado em um desses seres que, hoje,são proclamados ou se auto proclamam de “terrivelmente cristãos”, mas que, na verdade, têm a essência humana duvidável; por vezes, até irreconhecível como tal.
Pois bem. Aqui, vale dizer que a canção de Gil, de forma sutil, dialoga com o poema acima. Isso pode ser percebido melhor nos dois primeiros versos da primeira estrofe: “...Ele diz que tem como abrir o portão do céu// ele promete a salvação...”
Nos versos que completam essa mesma estrofe, é dito que “ele (o bispo) chuta a imagem da santa// fica louco-pinel// mas não rasga dinheiro, não”. Neste momento, Gil começa a pontuar que a fé popular tem sido usada para o enriquecimento de pessoas e grupos ditos religiosos, que vão das “pequenas igrejas, grandes negócios” aos impérios salomônicos e semelhantes propriamente ditos.
Nas duas estrofes finais da canção, Gil condena a intolerância religiosa, dizendo:
“Eu até compreendo os salvadores profissionais// sua feira de ilusões//
só que o bom barraqueiro que quer vender seu peixe em paz// deixa o outro vender limões// Um vende limões,//o outro vende o peixe que quer//
o nome de Deus pode ser Oxalá// Jeová, Tupã, Jesus, Maomé// Maomé, Jesus, Tupã, Jeová// Oxalá e tantos mais// sons diferentes, sim, para sonhos iguais”.
Corretíssimo o nosso poeta da MPB! Mas, como é dito em outro poema drummondiano, por mais pedras que possam ter no meio do caminho de nossas existências, é lamentável que a saída para tanta gente seja a busca daquela “feira de ilusões”, aludida acima por Gil. Quem sabe um dia ainda venhamos a ter mais escolas, postos de saúde e teatros do que tantas “feiras de ilusões”?!
Quem sabe?!