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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Por Aldi Nestor de Souza*
Por exigências de um pneu, que cismou de amanhecer murcho na manhã do último domingo, precisei perambular pelas ruas da cidade em busca de uma borracharia. A que costumo frequentar, cujo borracheiro é meu vizinho e amigo, não abre nos domingos e feriados, e agora também nos sábados à tarde, nem por decreto. “Escolham outros dias pra murchar”, diz o borracheiro.
Sempre tive grande apreço pelas borracharias. Em parte pela singularidade de nunca ter me deparado, no rádio, na TV, na internet, nos jornais, nos carros de som, nos outdoors, em qualquer espaço de comunicação, com propaganda de nenhuma delas. As borracharias são discretas, vivem com certa desconfiança desse mundo regido e coagido pela troca de mercadorias. Nunca as vi fazendo qualquer tipo de promoção e parece bastante improvável que ocorra a algum borracheiro, ao final de um serviço, dizer algo do tipo: preencha nosso cupom e concorra a prêmios. Não, as borracharias parecem sugerir um “aqui, não, alto lá!
Uma outra característica das borracharias é o fato de a gente nunca saber direito a cor de suas paredes. Com o tempo, as marcas do trabalho é que dão cor e determinam a decoração do ambiente, nada de disfarce com tinta. As marcas do trabalho, por sinal, estampadas e à vista de todos, conferem uma certa originalidade, autoridade e dignidade ao local. Outro elemento importante é a improvisação de cadeiras pros visitantes: um resto de tronco de árvore, um cepo de madeira, um pneu deitado, um tamborete velho, uma cadeira qualquer são aonde as pessoas se sentam para jogar conversa fora e ou aguardar os consertos. Tais utensílios demonstram o apreço que as borracharias tem pelo valor de uso das coisas, ao mesmo tempo em que mostram toda a precaução que tem com a sedução e a ditadura imposta pelas mercadorias.
As borracharias são talvez o único lugar que permite o uso gratuito de seus equipamentos. É o caso do compressor de ar, que é usado livremente para a calibragem de pneus.
Após percorrer algumas ruas, me deparei com uma aberta. Parei. Comecei estranhando o fato de não ter aquele tradicional monte de pneus velhos na frente, apenas um nome bem escrito na fachada e um desenho, em destaque, de um pneu. Entrei. Um misto de agonia, decepção e medo me invadiu. Eram 11:30 da manhã. O borracheiro, com um sorriso de entusiasmo no rosto, óculos apropriados para a lida com pneus, macacão com o nome da empresa, fala e sotaque adquiridos em treinamento, me cumprimentou com o indigesto, abominável, corrosivo “Bom dia, senhor, seja bem vindo, no que posso ajudar?”
Lembrei de minha saudosa avó, que quando via algo parecido com uma assombração fazia o sinal da cruz e dizia “misericórdia!”
Olhei em volta. Nenhum pôster sagrado ou profano, nenhum time do coração, nenhum desenho obsceno, nenhum palavrão nas paredes, nada. Além de calçada, paredes, piso, teto, portas, todos sufocantemente limpos, haviam cadeiras acolchoadas, todas iguais, de mesma cor, para os clientes sentarem. Até uma bacia plástica, transparente, com água cristalina, havia tomado o lugar daquele tradicional recipiente meio sujo, cheio d`água, usado para identificar o furo dos pneus. “Nessa borracharia, os pneus velhos, que não prestam mais, são todos doados para a reciclagem, “afirmou o borracheiro, que acrescentou” temos que cuidar do meio ambiente”.
Um cartaz, pregado à altura dos olhos, feito de letras de computador, com os dizeres “pagamento em dinheiro, transferência bancária, pix ou cartão” ladeava um freezer vertical, de porta transparente, lotado de produtos à venda: coco verde, água de coco em garrafa, água mineral, refrigerantes, sucos, chocolates em barra. Eram os escombros do salto mortal das mercadorias indo até às últimas consequências.
Instrumentos que eu nunca tinha visto, tais como uma espécie de creme para rejuvenescer a cor do pneu, uma vassourinha específica para varrer o pneu por dentro, uma maquininha que faz uma espécie de massagem na roda se revezavam nas mãos do borracheiro que, com o cuidado de um cirurgião e modos de quem está acariciando a pessoa amada, preparava o terreno para o remendo.
Como disse no início, sempre nutri grande estima pelas borracharias e as entendia como espaços de muita resistência. Mas, após esse episódio, a sensação é a de vê-las, pela primeira vez, acuadas, sem luz própria, derrotadas e de joelhos diante da ordem social vigente. E sinceramente, até esse momento, eu acreditava que aquela tradicional frase “tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado”, que tanto ilustra quedas e transformações históricas, encontrava nas borracharias um contra exemplo, uma honrosa exceção.
Sinto que com a queda das borracharias o triunfo da ordem social capitalista se aprofunda, atingindo os mais altos graus de exploração e degradação da vida humana, submetendo trabalhadores à tarefa espúria de tratar bem os clientes, sorrir, demonstrar entusiasmo, felicidade e empenho no trabalho, em pleno domingo, bem na hora do almoço.
Ao final do serviço, depois de me agradecer e me desejar um bom almoço, o borracheiro me entregou de brinde o cartãozinho da borracharia, contendo o nome, o endereço físico, o número de telefone, o endereço de e-mail e mais a frase “atendemos também em domicílio, 24 horas por dia”.
“Misericórdia!”
*Aldi Nestor é professor no Departamento de Matemática da UFMT, Campus Cuiabá.