Por Roberto Boaventura
Dr. Jornalismo/USP; Prof. Literatura/UFMT
Hoje falo da expressão “gatos pingados”, que, geralmente, vem acompanhada de outra expressão: “meia dúzia”. Juntas, tem-se a duplicidade de uma carga semântica que aponta para um grau fabuloso da depreciação de um grupo de pessoas. Quando se quer desqualificar o trabalho coletivo exercido por poucos cidadãos, basta afirmar tratar-se de algo feito por “meia dúzia de gatos pingados”. Paradoxalmente, na história do Brasil, a força dos gatos pingados é constante, é vibrante.
Os estudiosos de nossa cultura não têm acordo sobre as origens da expressão. Por si, o termo “gato” traz uma gama de informações, dais quais destaco alguns tópicos. De chofre, lembro da suposta dificuldade que se diz ter para matar gatos, prática cruel entre diversos povos. Disso decorre a fama de que esses felinos têm sete vidas; logo, por natureza, são resistentes.
Resistente também é o couro de seus corpos. Daí que do couro dos gatos, faziam-se os tamborins e as cuícas que, juntos, na passagem do século XIX para o XX, ajudavam a dar os melhores sons de percussão entre os escravos recém libertos.
Já uma das acepções do verbo “pingar”, de onde vem o complemento da expressão, refere-se aos suplícios que pingos de líquidos ferventes, como a água e o óleo, causavam nos seres em que eram “pingados”. No Brasil, pingavam-se os escravos, os gatos e outros animais, a depender do sadismo do algoz.
Há algumas décadas, Henfil criou a personagem “Gato Pingado” para representar os pouquíssimos torcedores do América Futebol Clube.
Em agosto deste ano, um vereador de Jacarezinho-PR depreciou um grupo de moradores da cidade – chamando-os de “gatos pingados” – que se revoltaram com as mordomias dos políticos locais. Os gatos pingados procriaram-se e algumas das mordomias foram cortadas.
Mas por que estou falando disso?
Porque ajudo na construção de uma greve – que agora já se aproxima do término – de resistência contra a destruição das federais. E nossa greve tem sido conduzida por “meia dúzia de gatos pingados”, como dizem alguns colegas que sempre se opõem às lutas; por isso, nunca resistem a nada.
Mas como é possível um professor universitário se opor a uma greve necessária, num panorama de humilhação a uma das profissões mais importantes a uma nação?
Por vários motivos. Com a imersão do programa neoliberal nas universidades, elas vêm sendo privatizadas aos poucos. Esse processo só ganha espaço porque muitos docentes parecem ter mentes colonizadas. Com a abundância desse tipo de mentalidade, tem sido fácil aos governos imporem a lógica do mercado entre nós.
Logo, por bem pouco e sempre com algo circunstancial (bolsas de projetos de pesquisa, participação em cargos administrações etc), muita gente tem esquecido de olhar para o futuro.
Aliás, o olhar de muitos é turvo, politicamente falando. Há pouco dias, uma colega dizia sobre seu horror de estar em uma greve, coordenada por meia dúzia de gatos pingados, por mais de 120 dias.
De fato, uma greve longa é um horror, pois demonstra a falta de disposição do governo ao diálogo; no mais, os prejuízos são enormes, principalmente aos estudantes. Todavia, horror bem maior do que isso foi o anúncio do pacote de ajuste do governo, lançado no dia 14/09.
Portanto, é desse pacote, que corta orçamento para todas as políticas públicas, incluindo as verbas para as universidades, que todos os cidadãos deveriam ter horror. Perante os “ajustes fiscais”, tudo é fichinha em termos de tragédia coletiva, inclusive uma greve de resistência como a que estamos vivendo.