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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Wescley Pinheiro
Professor do Departamento de Serviço Social da UFMT
Junho de 2020 se inicia incendiário no Brasil desgovernado por Jair Bolsonaro. Se o mês anterior começou com um primeiro de maio marcado por protestos virtuais, posição necessária diante da pandemia e da política genocida do Estado Brasileiro, coube ao último dia do mês anunciar um novo momento para a luta política diante do protofascismo em curso.
Manifestantes foram às ruas fazer frente ao discurso autoritário. Enfrentando as contradições e o dilema ético-político diante da necessidade de isolamento social e não efetivação dos mesmos pelos governantes, pelos empregadores oriundos do grande capital e pelos médios do protofascismo (acostumados às carreatas e passeatas violentas repletas de caricaturas e discursos negacionistas nesses últimos meses), membros de várias Torcidas Organizadas(TOs) foram de forma expressiva barrar manifestações antidemocráticas , enquanto, no Rio de Janeiro, esses e outros setores populares, sobretudo do movimento negro, fortaleciam manifestações contra a política de extermínio racista historicamente promovida. A morte como política se impôs a vida das pessoas e encurralou sujeitos coletivos, o contra-ataque veio.
Para além da discussão rasa, moralista e de pseudoneutralidade da mídia, a aparente surpresa por essas manifestações parte de pessoas que pouco conhecem as disputas e contradições dentro dos mais diversos coletivos da classe trabalhadora. Por mais que as lentes da burocracia, do academicismo ou das performances cibernéticas dos conteúdos pós-modernos não percebam é onde a vida acontece que a política se expressa, se disputa e se renova. Religião, arte, cultura, esporte... tudo que envolve o cotidiano manifesta o limite da hegemonia e as possibilidades da práxis resistente.
Há algumas semanas membros da Gaviões da Fiel já haviam saído do isolamento para barrar fascistas em São Paulo. Torcedores do Fortaleza fizeram o mesmo na capital cearense. Tantos outros coletivos começaram a se manifestar diante do posicionamento reacionário dos clubes e seus cartolas comprometidos com a política vigente. No Espaço Aberto de 23 de Maio de 2019, num texto intitulado de "AS RUAS E AS ARQUIBANCADAS EM TEMPOS REACIONÁRIOS: FUTEBOL, DIVERSIDADE E AS TORCIDAS ANTIFASCISTAS", busquei falar panoramicamente das potencialidades que vinham sendo cultivadas no espaço marcadamente tido como reprodutor das opressões e amortecedor da consciência de classe. Falamos das torcidas antifas, mas também dos grupos LGBTs, da tradição histórica desde a Democracia Corintiana até pensarmos a pedagogia da luta diante do impacto cotidiano dos opressões, suas naturalizações e cultura aristocrata nos clubes de futebol.
No dia 27 de maio de 2020, junto de outros movimentos, a estudante e torcedora do Fortaleza Maria Izabel (Mabel), representando a Torcida Antifascista Resistência Tricolor, participou do episódio do Miolo de Pod, podcast que realizo semanalmente nas principais plataformas da área cujo, o tema foi Solidariedade de Classe. Em sua fala ela nos demonstrou que as ações da campanha "Quarentena Sem Fome" não são um conjunto de iniciativas estruturadas numa lógica meramente caritativa, mas sim, de demarcação de uma ação coletiva pela sobrevivência da classe trabalhadora.
Mabel falou também da organicidade da ação, de sujeitos que aprendem e compartilham experiências e disputam as arquibancadas dos estádios, as ruas e a vida cotidiana por uma sociedade sem exploração e opressão de qualquer ordem. Ela nos contou dos riscos e das alegrias da resistência onde não chegam as vídeo-chamadas dos nichos acadêmicos e o nexo da cultura de autoconstrução organizativa.
Veja como uma travesti, negra, periférica, nordestina representando uma torcida organizada de futebol e falando de solidariedade de classe é uma síntese emblemática que foge de muitas das polêmicas rasas existentes no campo das esquerdas. Como os atos, esse exemplo é uma fresta de materialidade e esperança entre ações imediatas e leitura profunda de realidade, de base concreta com o real e construção de um mundo novo, de perspectiva classista, sem abstração que desconecte ou sucumba a necessidade de pensar raça/etnia, gênero/sexo e tantas outras questões.
Assim, a discussão de comunicação e educação popular, de solidariedade e consciência de classe está no ponto essencial da disputa política, pujante e potente, que se expressa criativamente, com direção radical, para além dos debates em-si-mesmados e, com o perdão da trocadilho, com tom clubista muito comum nos coletivos militantes..
A semana que se inicia após os levantes antirrascistas nos Estados Unidos da América e a repercussão das atos em São Paulo no último domingo, rememorando a famosa Revoada das Galinhas Verdes na Praça da Sé, quando em 07 de abril de 1934 grupos operários botaram os integralistas para correr, é algo traz que renova esperança e possibilidades reação. O sangue nos olhos e o ar de perspectiva foram revitalizados por setores marginais, contraditórios e longe da perfeição, enquanto muitas organizações ainda pensavam o que fazer.
No entanto, como nada pode ser tão simples, o fenômeno antifascista que toma de conta das redes sociais já revela uma disputa de direção e, para não errar novamente, quem de fato quer transformar o estado de coisas atual precisará aprender com essa realidade.
O subtítulo desse texto é um verso da música Pedrada, do compositor e cantor Chico César que, antes de muitos compreenderem a gravidade do problema que vivenciamos, já cantava afinado e afiado sobre o que nos atinge com a palavra certa: fascismo. E não se responde fascismo com flores. Chico soube denominar o governo, é preciso que não tenhamos vergonha de também saber adjetivá-lo.
Em poucas horas que a bola incendiária que já estava no ar se tornou mais evidente, arquibancadas e barricadas, nas ruas e nos espaços virtuais, ficaram em polvorosa. Uma onda de manifestações se espalhou com conteúdo antifascista num volume a muito não visto. Nesse sentido, o momento atual demonstra que a lógica bolsonarista e suas ações vai perdendo força e o processo de apropriação das coisas e dos corpos explorados e oprimidos vai tornando a forma de governo insustentável.
No entanto, nem os levantes de ontem e nem a onda de hoje nos tiram das contradições, disputas e do tempo de confusão. É notório que as narrativas e direções são diversas no processo de apropriação do conteúdo antifascista. Fora a reação autoritária e a marcadamente liberal, em poucas horas já foram construídas análises de toda sorte sobre as manifestações e os próximos passos dentro dos chamados setores progressistas.
A primeira delas defende a tese de que as manifestações aconteceram sem a presença da esquerda. Esse pensamento não é inédito. Surge sempre em busca da novidade, promovendo formulações em defesa do espontaneísmo e de idealizações que não se concretizam. Poderíamos falar de vários exemplos onde o discurso das "novas formas de luta" deu com os burros n'água ou em neoliberais e/ou reformistas na presidência.
No entanto, o principal é que, inclusive nesse caso, essa é uma afirmação falsa. Uma coisa é falar — acertadamente — que partidos, centrais sindicais, sindicatos e outros movimentos não conseguiram dar respostas efetivas e que as ações das TOs foram substanciais nessa conjuntura, capitulando o sentimento coletivo de indignação diante da paralisia atual. Outra é desconhecer ou esconder que dentro das próprias Torcidas há muita gente da esquerda disputando esse espaço, inclusive de partidos, e que isso é um elemento fundamental para os setores que não reproduzem a reacionarismo dentro dessas agremiações. Por fim, é não perceber que esses movimentos são também frutos de um acúmulo coletivo produzido historicamente.
Apagar a esquerda da rua é um artifício liberal e conservador que também não é novo. Em junho de 2013, quando não mais conseguiu apenas criminalizar os movimentos de rua, que iniciaram as manifestações por pautas concretas, o processo de abstração moralista (e tentativa de expulsão) das organizações foi crucial para encaminhar os atos para um inchaço sem crescimento qualitativo, promovendo o sufocamento de possibilidades emancipatórias esterilizando a capacidade das manifestações.
O coquetel trágico entre décadas de ausência de formação de base, distanciamento dos movimentos sociais, partidos e instrumentos de luta do cotidiano, mais o aparato repressivo do Estado, o apogeu midiático conservador, a interferência imperialista e a tradição da formação sócio-autoritária, golpista, racista, machista e elitista é algo até hoje pouco compreendido e mal explicado sobre os atos daquele mês e que , por consequência, fazem com as manifestações sejam frequentemente reduzidas à suposta causa de termos chegado ao tempo histórico bolsonarista.
Nesse debate muito se fala sobre o que junho de 2013 supostamente criou e pouco se pensa sobre o que criou junho de 2013. De lá até aqui, passando pelo golpe de 2016 e as eleições de 2018, setores progressistas e de direita reproduzem uma narrativa de polarização, que, agora, deve ganhar força novamente, embora tenha a profundidade de um pires. A ideia do país dividido em torcedores de siglas, mitos e nomes vilipendia o país dividido, na verdade, entre burguesia e classe trabalhadora, artificialmente constituído por um cisão importante, mas parcial, produzida na política formal e na opinião pública. Nesse sentido dos dois times que reproduzem essa táticas estão interessados em jogar na retranca.
Daquele junho até hoje a massa da classe trabalhadora ainda não foi às ruas com substancial efetivo para qualquer tipo de bandeira. A nossa classe, desmobilizada, materializa seu cotidiano a partir do distanciamento dos instrumentos de luta e permanece vivenciando a precarização da vida e o extermínio dela sem grande construção de reação organizada.
Voltando ao junho de 2020. Uma segunda característica após os contra-atos do último domingo de maio na Avenida Paulista, vem como afobação voluntarista e distante da realidade. Uma defesa impulsiva, tal e qual fogo no palheiro, desconsidera a complexidade do momento atual e sobre como, quando e com quais cuidados as ruas precisarão ser ocupadas. A cautela que, por vezes, traz lentidão, é importante para que toda a indignação não se transforme apenas em combustível para o extermínio, pela Pandemia e, principalmente, pelo braço armado do Estado. Como próximas manifestações serão ainda mais arriscadas é preciso apontar que isso não é ficção: há um governo protofascista aí fora.
Essa forma de defesa muito promovida nas redes sociais e evidenciadas por pessoas que desconhecem os riscos, como formas de enfrentamento e a necessidade de organização tática em ações diretas, precisa ser respondida com absorção de indignação, mas em unidade com cuidado e maturidade militante dos sujeitos coletivos que sabem quais os corpos sofrerão primeiro e, principalmente, com as balas, com o vírus e com as grades.
Nessa tarefa precisamos de muitos e, sobretudo, de muitos organizados nas ações, pois não poderemos mais responder com tão pouco quando um homem negro for preso por portar pinho sol ou quando uma vereadora negra for assassinada por vizinhos e amigos dos poderosos.
Por fim, nesse campo complexo, há a terceira característica pós atos. A enxurrada de memes antifascistas nas redes evidenciam que precisamos apontar a diferença profunda entre popularização e massificação da luta antifascista da mera propagação superficial dos símbolos dessa luta para uma indignação diversa e distintamente diferente entre tantos setores que hoje se opõem ao governo Bolsonaro.
É muito bom que as pessoas estejam propagando e se afirmando antifascistas. É um momento privilegiado de agitação e de necessidade de diálogo. É também a hora de não reduzirmos o significado disso. De possibilitar unidade tática em pautas possíveis com os divergentes setores democráticos sem deixar com que liberais e sua parcela mais inescrupulosa pode esvaziar a luta antifascista de sentido para aproveitar e se desresponsabilizar pela atual conjuntura.
Nem todo mundo que hoje é anti-bolsonaro é antifascista. Há um leque de setores aí buscando fisgar o momento e reconstruir o projeto autoritário com um rosto mais palatável. Há uma clara disputa para transformar o antifascismo num fetiche. O problema não é a ampliação do uso dos símbolos, ao contrário, isso é um efeito fundamental. A grande dificuldade é não deixar que o processo de indignação seja cooptado por peles democráticas e espírito da coalizão ultraliberal e protofascista.
Para a esquerda articular a paciência histórica e o diálogo pedagógico com as ações efetivas e o não amortecimento dos princípios e direções é um desafio no meio de tantos outros que permanecem e crescem como a violência policial, a criminalização da luta, a dificuldade de organização, a dificuldade de unidade frente as divergências estratégicas, além dos vícios hegemonistas da autoconstrução.
É fundamental que a luta antifascista aglutine de forma orgânica, profunda, para além das notas e dos memes. É preciso que saiba apreender esse momento para crescimento efetivo e não mero inchaço. A onda é encantadora, mas passageira. Difícil e necessário é conquistar o oceano.
Por ora, também é preciso cumprir a tarefa antipática de demonstrar que as coisas são mais complexas do que desejamos e que o otimismo da vontade sozinho não resolve as questões da realidade. Os aparentes atalhos são caminhos para a frustração política e ela, já sabemos, é combustível do irracionalismo e da barbárie.
Para nossa classe só restou a luta, para uma grande parcela da nossa classe essa questão é imediata, urgente, posto que as outras alternativas estão todas em formas diferentes de morrer. As tarefas atuais nos provocam para encontrar formas de superarmos a subvivência, resistirmos, sobrevivermos e construirmos uma nova vida e não um novo normal.
O novo virá de nossa capacidade coletiva, historicamente determinada, promovida pelos coletivos organizados capazes de enxergar na realidade, na diversidade e na criatividade de nossos pares o processo de ampliação da consciência de classe. Por tudo que vivemos e presenciamos, suspeito que as saídas estão nos sujeitos coletivos que, além de disputar a direção dos instrumentos de luta, além de promoverem debates importantes e visibilizar os seus quadros, estão por aí realizando, construindo ações organicamente, alicerçando alternativas, abrindo caminhos.
Antifascismo sem projeto de sociedade antagônica é voluntarismo abstrato. Que todas as pessoas que hoje se chocam com o fascismo descubram que, como disse Brecht, "não há nada mais parecido com um fascista que um burguês assustado". A derrota do fascismo só ocorrerá na vitória e construção de uma sociedade sem classes. A bola incendiária está no ar. Treino é treino e o jogo é o lugar onde não há empate e onde a torcida é protagonista. Vencer é a única opção de sobrevivência.