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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Paulo Wescley M. Pinheiro
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Qualis A
Meu relatório tem papers
Onde canta o Qualis A
O cão que aqui me lattes
Vê caravana passar
Preparo com precisão
A coisa pra publicar
Tô cansado de ouvir não
Eu tenho que já ser tão
Eu venho da revisão
E posso lhe agradar
Vou-me embora pra Pesquisa
Lá vou babar a Rainha
Com a coleta da pós
Ranqueada e bem sozinha
Seu dotô me dê licença
Pra minha história contar
Sou bolsista de programa
Meu prazo vai estourar
Ê laiá
Êêstudar
Êêêê Capestrela
Vou artigar
3.1. Trabalho docente, desvalorização e adoecimento: o/a professor/a entre a reprodução de uma lógica e o afogamento nela
A construção de uma cultura que joga nas mãos dos/das docentes todos os problemas da universidade absorve uma tradição de instituições que sempre foram voltadas para a esfera do ensino, deixando frágeis os outros pilares da universidade, além de compreender essa esfera como apenas a sala de aula, sem desenvolver um conjunto de atividades e intervenções inter e multidisciplinares que envolvem diversos profissionais.
A ultrarresponsabilização docente se aprofunda dentro da lógica gerencial a partir do neoliberalismo. Na esteira do modelo produtivo flexível e de “qualidade total”, vamos assumindo o caráter de colaboradores, com a ideologia da proatividade assimilando a concepção histórica da docência como sacerdócio. O/a professor/a não tem horário de trabalho, os trabalhos administrativos são feitos em seu computador particular, direto de sua casa, o horário para estudo fica para a madrugada, intercalado como o momento que responde dúvidas dos/das alunos/as em seu celular, via redes sociais e tenta, em vão, viver seu tempo livre.
Por compromisso com a educação, docentes vão tapando buracos, assumindo disciplinas a mais, realizando tarefas que não lhes cabe, costurando saídas reativas e imediatistas. Na falta de concurso para um quadro de técnico-administrativos especializados, os/as docentes bacharéis das áreas são cobrados para emendarem a instituição nas diversas questões que se impõem no cotidiano.
Não é uma parceria, mas um processo contínuo e antipedagógico de relações tóxicas que, ora joga com um viés individualista, ora deturpa o trabalho docente para assumir todas as demandas existentes no espaço. Com a bravata de suposto comprometimento ético com a formação as performances vão se multiplicando em práticas que desresponsabilizam o Estado de assumir uma estrutura adequada de trabalho e estudo para a comunidade acadêmica.
Não é de surpreender que temos nos conformado em lutar por formas de registrar nosso sobre-trabalho no Sistema de Gerenciamento de Encargos, ao invés de reivindicarmos o direito de exercer nossas tarefas dentro da carga horária estabelecida e termos um corpo docente quantitativamente capaz de suprir todas as demandas sem ultrapassar o tempo de trabalho. Não é surpreendente também que tenhamos aprendido a achar normal que, para pontuarmos e subirmos de nível em nossa carteira, tenhamos que participar de uma série de atividades acadêmicas e vivenciar experiências importantes, mas sem que a universidade ofereça orçamento e estrutura suficiente para efetivar tais processos.
Aliás, não nos é jocoso refletir que, para termos o aumento salarial que nos é de direito, tenhamos que investir nosso salário e nosso tempo livre para cumprir questões profissionais. Nem nos parece esquisito que, para que possamos ter direito de adoecer, tenhamos que pensar como repor o conteúdo após a licença médica. Por fim, não é de estranhar que nem mencionemos o fato de que professoras que exercem seu direito de licença maternidade precisem sobrepor sua produção nos outros semestres para garantir pontuação adequada no interstício da carreira. Temos nos acostumado a normalizar nossa precarização.
Diante de tantas questões e responsabilização individual, num tempo histórico onde enfiam o trabalho docente no olho do furacão, sendo cotidianamente execrado por autoridades, por parte da mídia e da opinião pública, em meio aos problemas que se aprofundam, chegamos a questionar nossa função. Afinal, o que é ser professor universitário? O viés ultraliberal tem nos deixado com muita dificuldade de responder essa indagação.
A difícil conjuntura que vivemos faz com que caiamos em diversas armadilhas para lidarmos com os desafios de nossa vida cotidiana. O profundo desrespeito dos governos brasileiros com a categoria docente nos coloca em impasses que acabamos por enfrentar de modos bastante distintos. Diante do descaso há quem busque saídas individuais, alguns clamam resiliência, outros, resignação. Pensando aquilo que nos adoece é preciso suspeitar de que precisamos ir mais além.
Há alguns anos um famoso texto circula pelas redes sociais demonstrando como o trabalho docente é desvirtuado no Brasil. Buscando aprofundar sobre o que de fato é/seria/deveria ser nossa função, o texto do professor Marco de Melo, da UFMG, intitulado “O que é um professor universitário?” é um bom ponto de partida e demonstra uma série de elementos do quanto o trabalho docente e a universidade sofrem com a desvalorização e desconhecimento de sua importância em nossa sociedade.
Em seu artigo de opinião o autor derrama uma gama de informações e argumentos da especificidade da docência nas universidades internacionais, trazendo aspectos relevantes sobre a importância da pesquisa, o respeito ao esforço intelectual inerente a essa atividade e o vácuo cada vez maior do nosso país referente ao tema.
É inegável como atualmente há uma construção de linchamento cultural contra os/as professores/as universitários/as no Brasil. Há ainda um cotidiano de pressões, prazos e práticas de desrespeito nos espaços de trabalho. Todo esse aparato vai causando formas de adoecimento na categoria docente, mas também potencializa práticas adoecedoras .
O trato do/da docente como mero instrumento da mercadoria educação, o aulismo como modus operandi, a pesquisa sob os ditames das “parcerias” com o mercado, a precarização da carreira e das condições de trabalho e a multiplicação de uma concepção de formação profissional distante da formação humana fazem parte da retroalimentação desse triste e desgastante jogo de desvalorização.
Nesse sentido, é preciso ainda considerar outros elementos para além do texto em questão. Pois do lado cá há também muito o que avançar em concepções e práticas mais profundas. Ainda que concorde com os problemas colocados sobre como o professor universitário é visto na sociedade brasileira, dentro dessa cultura que desvaloriza a atividade docente, o outro lado da mesma moeda revela uma histórica reprodução do elitismo, do pedantismo e dos jogos de poder que o saber universitário permite em seus espaços.
É inegável a dificuldade que temos de nos reconhecermos dentro da gama de seres humanos que vendem sua força de trabalho, daqueles que sofrem com a precarização e a exploração e que, por isso, tanto nossa atividade profissional, como a urgente e necessária organização política devem ser fortalecida para desvendar os limites de onde trabalhamos e as possibilidades que devemos construir. Envoltos nos contos que as camadas médias da sociabilidade de classes nos permitem nos acolhemos no mito da temperança, da imparcialidade e do individualismo.
Nesses espaços e processos há também boa vontade, focos de resistência, coletivos organizados, iniciativas importantes e gente que compreende esses desafios. Mas tem havido como muito mais força a contradição e a incoerência no cotidiano de nossas batalhas, dificultando, desde a aglutinação de aliados, até mesmo a necessária referência que as/os discentes procuram nas brechas de um belo discurso do/da professor/a que, eventualmente, pode permanecer absolutamente descolado de suas atitudes dentro e fora da sala de aula.
O vácuo entre a mera abstração de um projeto profissional ou de elucubrações teóricas aliadas às ações que reivindicam o autoritarismo, a reprodução do poder pelos títulos acadêmicos, as pesquisas, ora deslocadas dos interesses concretos dos sujeitos, ora simplesmente apresentando e representando a superficialidade tecnicista hegemônica da avaliação da aparência, tudo isso reflete mais do que elementos isolados dos nossos dramas cotidianos.
Obviamente, nesse emaranhado de questões, os elementos subjetivos também se fazem presentes. As balizas que nos saltam aos olhos fazem com que muitos se peguem no pragmatismo, no preconceito intelectual e na frustração com sua prática profissional. Isso permite a multiplicação de sensações e análises que individualizam causas e consequências, seja na própria culpabilização, seja no dedo em riste para seus pares e/ou para as/os discentes.
As cisões encontradas em sala de aula diante dessa lógica historicamente reproduzida e consubstanciada com o desmantelamento da educação básica (parte desse mesmo processo), por vezes, são “enfrentadas” ou com voluntarismo condescendente, com o rebaixamento da qualidade, ou com o suposto outro polo de personalismo e culpabilização dos indivíduos por suas limitações. É aí teremos a reprodução das caricaturas e o jogo imediatista descrito pelos discentes: os/as “docentes bonzinhos” e os/as “docentes tiranos” como partes aparentes de uma diferença que só se estabelece na lamentável lógica de unidade.
Enquanto dilapidam nossa profissão nós corremos atrás do próprio rabo. Disputa de espaço, verbas de pesquisa, jogatinas políticas ou negação da política se estabelecem como únicas saídas: produtivismo ou desinteresse, pedantismo ou superficialidade, tecnicismo ou abstrações, irresponsabilidade ou sacerdócio. Falsas polêmicas, falsas alternativas que se materializam em nossos espaços e escondem as verdadeiras disputas de projetos de universidade.
Na perversidade da contradição, quando menos percebemos somos caricaturas: o professor-pesquisador-empreendedor que detesta a sala de aula e encontra seu escape nas parcerias com as empresas privadas; ou o professor “aulista” que tem a pesquisa e a extensão como obstáculos de seu trabalho; ou professor-autoridade que quer, como pressuposto, ser adorado pelos seus títulos e produções; o bem intencionado professor-tecnicista que acha que a universidade é ensino-pesquisa-extensão, mas que esquece o quarto pilar, a organização política e a reprodução de uma determinada lógica; ou, por último, o professor frustrado com a reprodução dessa cultura, que está insatisfeito (e com justiça) por suas limitadas condições de trabalho, mas que não consegue se organizar coletivamente e desconta seus dramas nos sujeitos que estão em seu cotidiano. Essas personas aparecem em todos nós, ora reproduzimos, ora são atribuídas por outros e, muitas vezes, um mesmo indivíduo manifesta vários papéis.
Não somos essas caricaturas. Não podemos ser. Somos trabalhadores/as assalariados de uma mesma categoria. A reprodução da concorrência e os estereótipos são a cortina de fumaça diante de nossa própria desumanização, de nossas práticas desumanizadoras e da falência da universidade. Na disputa de personagens vamos permanecendo estéreis do exercício pedagógico de demonstrar capacidade de reação e proposição diante do desmantelamento da educação superior.
Há desafios enormes dentro e fora dos muros da academia. Há batalhas do plano cotidiano que estão estreitamente ligadas à nossa concepção e para onde queremos ir. É urgente o fortalecimento da organização política por outro modelo de universidade. Nesse sentido, a luta por melhores condições de trabalho e pela nossa valorização na sociedade perpassa um mesmo caminho.
Dessa forma, reivindicar o respeito ao título “professor universitário” é tão importante e necessário quanto reivindicar esse mesmo respeito ao estudante, ao técnico-administrativo, assim como o respeito para os seres humanos independentemente de sua ocupação. Para além de nos embrenharmos na lama das regras da meritocracia e do produtivismo, a fim de termos a excelência que nos exigem aqueles que ditam os modelos de universidade, é necessário que tenhamos força para exigirmos condições para muito mais.
É preciso construir conhecimento e materializar ações que determinem em sua essência que o/a trabalhador/a, que todo/a trabalhador/a, seja plenamente respeitado/a, que isso se construa quebrando os muros da universidade, com todas/os podendo entrar e sair dela, que nós docentes façamos também esses caminhos para as ruasl e que quebremos também os nossos muros individuais.
Essa batalha é contra o espectro da distância teoria-prática, o abismo entre forma e conteúdo e as vendas nos olhos que escondem os interesses de classe em nossas atitudes e nesse projeto de precarização e privatização das universidades brasileiras que todos nós sentimos na pele, mas que muitos ousam esconder, seja por estarem assoberbados pela lógica produtivista, seja por pura consciência de assumir um projeto de poder que referenda o fim dos direitos dos/das trabalhadores/as.
A dilapidação desses direitos, inclusive da possibilidade de produzir conhecimento com sentido, é o que amplia nosso adoecimento, que empobrece nossos espaços de trabalho e tensiona nossas relações.
As primeiras partes dessa reflexão estão no Espaço Aberto n.41/2019 e no Espaço Aberto n.43/2019: