Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. Jornalismo/USP; Prof. Literatura/UFMT
Quem nunca ouviu dizer que “saudade” é termo peculiar da língua portuguesa, aliás, em avançadíssimo estágio de assassinato? E cá entre nós, essa peculiaridade já rendeu coisas interessantes. Algumas – frutos de aprendizados escolares – fazem parte, ao menos até o momento, de nossa memória afetiva.
Nesse sentido, mesmo sabendo da existência de outras, resgato duas pérolas do nosso Romantismo e uma aproveitada por MPB. Todas continuam nos ajudando (ou atrapalhando) na consolidação como seres saudosos que somos.
A primeira refere-se ao poema “Meus oito anos” de Cassimiro de Abreu. Quem não se lembra daquele “Oh! Que saudades que eu tenho// Da aurora da minha vida// Da minha infância querida// Que os anos não trazem mais”?
O segundo resgate não contém a palavra “saudade” uma vez sequer. Contudo, paradoxalmente, não me lembro de outro texto de nossa literatura que possa exprimir esse sentimento de forma tão intensa, pelo menos no âmbito de uma coletividade. Estou falando da “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias.
Aquele poeta – movido pela necessidade de seu tempo, ou seja, enaltecer sua pátria, por mais complexa que já fosse – soube traduzir, como poucos, o sentimento saudade. Para comprovar, transcrevo a primeira de suas cinco estrofes:
“Minha terra tem palmeiras// Onde canta o sabiá// As aves, que aqui gorjeiam// não gorjeiam como”.
Ufanisticamente falando, em relação ao referido “cá” (Portugal), tudo o que fosse e/ou pudesse lembrar o seu “lá” (Brasil) era melhor. Daí a força, naquela canção, de sua segunda estrofe:
“Nosso céu tem mais estrela// Nossas várzeas têm mais flores// Nossos bosques têm mais vida// Nossa vida mais amores”.
Agora, no âmbito da MPB, dorida ao extremo é a versão de “Meu primeiro amor”, de Hermínio Gimenez, feita por José Fortuna e Pinheirinho Jr.
Em plano de dor existencial, portanto, no espaço da individualidade, a palavra em pauta é a que abre a referida versão:
“Saudade’, palavra triste quando se perde um grande amor// Na estrada longa da vida, eu vou chorando a minha dor...”.
Pois bem. Se sobre essas “saudades”, as lembranças podem ser saudáveis, nem todas as nossas saudades resgatadas cotidianamente os são.
Para tratar disso, saio do foco das artes conhecidas como tais e vou para o campo da política. Nela, pelos espaços reais e/ou virtuais, muitos dos discursos saudosistas são repugnantes.
Das repugnâncias que tenho visto, destaco duas intoleráveis, cada qual por suas especificidades: a) saudades dos tempos da ditadura militar; b) saudades dos tempos dos desgovernos petistas.
Em recente debate de que participei, presenciei docentes universitários compartilhando, ao vivo e em cores, saudades tais. Fiquei estarrecido com ambos os casos, pois não tenho o menor apreço a nenhum desses entes passados. Aliás, de nossa história, de quantas páginas poderíamos sentir saudades? De quantas, a saudade seria digna?
Sobre a ditadura, crueldade, nunca mais. Simples assim.
A respeito da outra saudade política, deveria ser inconcebível admitir o retorno ao espaço de poder de um agrupamento político-partidário que se esmerou em ludibriar os trabalhadores com políticas focalizadas, que acirrou divisões entre brasileiros da mesma classe social, que se enlameou com empresários corruptos e que estabeleceu uma organização criminosa com tentáculos até mesmo em países alhures. Portanto, nem pensar nesse tipo de retrocesso.
Enfim, é mister que sejamos seletivos, pelo menos em nossas saudades. Isso só nos fará bem, expondo-nos menos ao próprio ridículo.