Com nossos cordiais cumprimentos avisamos a comunidade acadêmica que está divulgada a lista de inscrições para o Cargo de Pró-reitor(a) de SINOP/MT que foram deferidas pela comissão de consulta informal do Câmpus de Sinop.
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ESPAÇO ABERTO
Debate de ideias – Informativo da Associação dos Docentes da UFMT - ADUFMAT - nº 03/2025.
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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Texto enviado pelo Prof. Danilo de Souza.
Substituir os combustíveis fósseis: um desafio economicamente complexo
A substituição dos combustíveis fósseis por fontes primárias de baixa emissão representa um dos maiores desafios do século XXI, principalmente sob perspectivas econômicas. No modo de produção capitalista, a reprodução do sistema econômico depende fundamentalmente da capacidade de reduzir os custos de produção, garantindo assim a ampliação da extração de trabalho excedente e a maximização do lucro. Essa dinâmica impulsiona a constante busca por inovações tecnológicas e pela exploração intensiva dos recursos naturais e da força de trabalho para aumentar os excedentes no final do circuito, em uma lógica que prioriza a eficiência produtiva acima de qualquer outro fator.
Nesse contexto, os recursos energéticos de baixo custo, como os combustíveis fósseis, ocupam um papel central, pois viabilizam uma produção em larga escala e preços competitivos, essenciais para a circulação ampliada de mercadorias no mercado global. Entretanto, essa estrutura, profundamente enraizada, enfrenta limites e contradições evidentes ao se deparar com a necessidade de uma transição energética que requer fontes de baixa emissão de carbono, hoje, significativamente mais caras, e um reajuste profundo das bases materiais sobre as quais o sistema opera. Essa situação demonstra as tensões intrínsecas entre a lógica da acumulação de riqueza e as demandas por sustentabilidade ambiental e social.
Uma das estratégias mais viáveis para reduzir emissões associadas ao uso de hidrocarbonetos líquidos, como o petróleo, é a substituição parcial ou total por biocombustíveis. Esses combustíveis renováveis apresentam a vantagem de requererem pouca adaptação nas tecnologias já existentes de queima (motores a combustão interna) e distribuição, uma vez que mantêm sua forma líquida e podem ser integrados de forma relativamente simples à infraestrutura atual. Essa característica minimiza os desafios logísticos e técnicos da transição, tornando os biocombustíveis candidatos preferenciais como substitutos dos combustíveis fósseis em curto prazo. Contudo, o fator econômico continua sendo um obstáculo significativo: os biocombustíveis apresentam custos de produção mais elevados quando comparados aos combustíveis fósseis convencionais, especialmente devido à necessidade de insumos agrícolas, tecnologia específica e processos industriais de conversão. Além disso, questões como a competição pelo uso da terra e a volatilidade dos mercados de commodities agrícolas também afetam sua viabilidade econômica.
Conforme demonstrado na figura, os custos de produção de petróleo e combustíveis variam amplamente dependendo do tipo de recurso, localização e tecnologia empregada. As reservas de petróleo convencional no Oriente Médio e no Norte da África possuem os menores custos de produção, variando entre 5 e 30 dólares por barril, devido à alta eficiência de extração e às condições geológicas favoráveis, o que garante um excedente econômico significativo (oscilando entre 30 e 100 US$/barril), mesmo em cenários de preços baixos no mercado.
Esses custos de produção são significativamente inferiores a outras tecnologias de extração que exigem maior complexidade técnica, e maior necessidade de investimentos e desafios ambientais. É o caso das tecnologias que recuperam as fontes de petróleo não convencional, como as tecnologias "Sem-CO₂-EOR" (recuperação avançada sem injeção de CO₂), "CO₂-EOR" (com injeção de CO₂), petróleo extrapesado e betume, águas ultraprofundas, regiões árticas e petróleo de querogênio. Incluem-se, também, as tecnologias de extração do óleo leve de folhelho (LTO), encontrado em formações de xisto, que possui custos intermediários, mas é conhecido por sua rápida produção inicial, seguida de um declínio acentuado, o que contrasta com a vida útil mais longa e estável de poços convencionais. Essa característica dos poços de LTO reduz seu horizonte de rentabilidade, exigindo ciclos de perfuração contínuos para manter os níveis de produção, enquanto os poços convencionais, especialmente em regiões como o Oriente Médio, podem manter fluxos constantes e economicamente viáveis por décadas.
Além das fontes fósseis, os combustíveis sintéticos e biocombustíveis possuem papel relevante. Combustíveis sintéticos, como GTL (conversão de gás para líquido) e CTL (conversão de carvão para líquido), apresentam custos elevados, em função dos processos químicos complexos necessários para sua produção. Já os biocombustíveis, como biodiesel convencional, biodiesel avançado, etanol celulósico e etanol convencional, destacam-se por serem fontes consideradas de baixo carbono com menor impacto ambiental em termos de emissões de gases de efeito estufa. Contudo, apresentam custos mais elevados, que podem ultrapassar 120 dólares por barril equivalente. Por exemplo, no Brasil, o biodiesel é produzido com custos médios entre 90 e 135 dólares por barril equivalente, beneficiando-se de tecnologias avançadas a partir da cana-de-açúcar e soja. Nos Estados Unidos, esses custos podem exceder 140 dólares por barril, devido ao uso intensivo de insumos agrícolas e a uma infraestrutura menos otimizada. A figura sintetiza esses custos e as estimativas de recursos tecnicamente recuperáveis, apresentando no lado esquerdo os custos relacionados às fontes de petróleo convencional e não convencional, e no lado direito, os combustíveis sintéticos e biocombustíveis.
A diferença nos custos de produção de energia, como os demonstrados na figura, tende a desencadear um efeito cascata sobre outros setores da economia, se os biocombustíveis fossem colocados como solução de “descarbonização” em substituição aos fósseis. Isso ocorre porque a energia é um insumo de baixíssima elasticidade, ou seja, sua demanda não varia de forma significativa em resposta a mudanças no preço. Esse conceito de elasticidade reflete a sensibilidade do consumo de um bem ou serviço a alterações em seu custo; no caso da energia, mesmo aumentos expressivos nos preços dificilmente reduzem a demanda, devido à sua importância essencial para a produção, transporte e serviços básicos. Como resultado, custos mais elevados de fontes de energia renováveis ou não convencionais são inevitavelmente repassados ao longo da cadeia produtiva, aumentando os preços de bens e serviços finais. Essa alta pode gerar impactos inflacionários e afetar a competitividade econômica, especialmente em setores intensivos em energia.
Vale citar que os avanços tecnológicos têm desempenhado um papel essencial na redução dos custos de produção, especialmente no setor de petróleo não convencional. Métodos como o fraturamento hidráulico e perfuração horizontal permitiram que fontes de xisto e gás natural se tornassem viáveis economicamente. Contudo, mesmo com esses avanços, os custos de produção de combustíveis não convencionais ainda são significativamente maiores do que os custos das fontes convencionais mais acessíveis, o que resulta em um menor excedente econômico da utilização dessas tecnologias alternativas.
A produção de biocombustíveis apresenta custos elevados em comparação com os combustíveis fósseis convencionais devido a diversos fatores estruturais e tecnológicos. Primeiramente, o cultivo de matéria-prima agrícola, como milho, cana-de-açúcar ou soja, exige grandes áreas de terra, altos investimentos em insumos agrícolas (fertilizantes, defensivos, água) e força de trabalho, além de estar sujeito à sazonalidade e à volatilidade climática. Em seguida, os processos de conversão biológica ou química dessas matérias-primas em combustíveis, como a fermentação ou transesterificação, demandam tecnologias avançadas e complexas, muitas vezes com baixa eficiência energética. Ou seja, toda uma cadeia produtiva extensa e dependente de diversos fatores externos. Por outro lado, a produção de petróleo, especialmente em fontes convencionais, beneficia-se de uma infraestrutura amplamente consolidada, técnicas de extração altamente otimizadas e custos marginais baixos nas regiões de maior produtividade, como no Oriente Médio.
A transformação do sistema energético global é um grande desafio, que ainda está longe de se concretizar. Demandaria um compromisso robusto de governos e setores empresariais que teriam de operar uma lógica diferente da que até o momento construiu o sistema produtivo. Medidas políticas, como a introdução de subsídios para tecnologias de baixo carbono, desincentivos fiscais para fósseis e o fortalecimento de regulamentações ambientais, estão longe de serem o suficiente para incentivar a transição, e em alguns casos podem até mesmo gerar mais assimetrias. Além disso, investimentos massivos em pesquisa e desenvolvimento são necessários para continuar a reduzir os custos das tecnologias de baixo carbono e melhorar sua eficiência.
O caminho para uma matriz energética de baixo carbono é complexo e exige esforços coordenados em várias frentes. Embora avanços tecnológicos estejam ajudando a reduzir custos e aumentar a viabilidade das energias renováveis, a dependência histórica de combustíveis fósseis, aliada às estruturas econômicas e geopolíticas existentes, ainda representa um obstáculo significativo. Portanto, uma transição energética efetiva ainda está longe de se consolidar, e exigiria transformações profundas e estratégicas, seja em tecnologias, seja nas estruturas econômicas, políticas e sociais.
OBS: Coluna publicada mensalmente na revista - "O Setor Elétrico".
Danilo de Souza é professor na FAET/UFMT e pesquisador no NIEPE/FE/UFMT e no Instituto de Energia e Ambiente IEE/USP.
Debate de ideias – Informativo da Associação dos Docentes da UFMT - ADUFMAT - nº 02/2025.
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Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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As Big Techs e os desafios para a política nacional de Saúde Mental Antimanicomial
Por Vanessa C Furtado
Profa. Dra. Departamento de Psicologia- UFMT
Para Fernando Freitas e
David V-E Tauro
Na última terça-feira assistimos ao anúncio de Zuckerberg sobre alterações relacionadas aos algoritmos das redes sociais que comanda, dentre essas mudanças, o CEO fez questão de anunciar a liberação de se associar questões de sexualidade a transtornos mentais. Uma mudança radical na postura das BigTech que vendiam a vibe “descoladas e moderninhas, abertas à diversidade”. O recuo ideológico aponta para nós, lutadoras e lutadores antimanicomiais um cenário complexo, de avanço da patologização, agora declaradamente apoiado pelas redes sociais, que exigirá organização da luta e resistência.
Em momentos de agudização da crise, o Capital não se furta em lançar mão de suas pautas fascistas e eugenista na garantia de manutenção do status quo. O duplo retrocesso nas redes sociais sobre a pauta LGBTQIA+ e da pauta da saúde mental é prova de que o avanço da extrema direita, de ideais nazifascistas não são ao acaso, mas é sim um projeto articulado pelas grandes potências econômicas mundiais.
Mas, o que isso impacta nossa política nacional de Saúde Mental e em nosso dia-a-dia?
É preciso retomar um pouco a história da psiquiatria para que possamos entender esses impactos. A psiquiatria denominada científica, como uma especialidade das ciências médicas, tem um marco importante no final do século XIX com Kraeplin e seu sistema nosológico.
Naquela ocasião, Kraepelin (1887/2005) discutia a crise da psiquiatria (1886) justamente por ela não conseguir responder, aos problemas aos quais se dedicava, com a mesma “eficácia” de outras especialidades médicas. A solução, para o autor, era a utilização dos métodos da Psicologia Experimental de Wundt como base das investigações psiquiátricas.
Seguindo esses passos, Kraepelin desenvolve um sistema nosológico que tem embasado a psiquiatria desde então. Principalmente, a partir da terceira edição do DSM. Muito embora, atualmente, apenas parte das ideias kraepelinianas ainda se encontram presentes nas formulações diagnósticas em saúde mental baseadas no DSM, há um elemento fundante que permanece na lógica de se fazer diagnóstico na psiquiatria hegemônica: o modelo biomédico, radicado em um ideal eugênico e higienista de saúde; como bem nos chama atenção o “SPK Fazer da doença uma arma” (movimento de paciente/usuárias/os alemães da década de 70 “Coletivo Solcialista de Pacientes de Heidelberg) em seu manifesto. De acordo com eles:
“Saúde é um conceito totalmente burguês. O capital como um todo estabelece uma norma média de exploração da mercadoria força de trabalho [ da mercadoria ser humana]. (…) Ser saudável significa ser explorável.” (SPK, 2024 p. 38).
A ideologia burguesa, pode-se dizer, constitui a base da psiquiatria hegemônica (e das ciências médicas e da saúde em geral) dando a tônica não apenas nos modos de se fazer diagnóstico em Saúde Mental, como também, nos modos de atenção às pessoas em sofrimento psíquico. Não à toa é o nome de Kraepelin que é tratado como “pai da psiquiatria”, um eugenista convicto, que junto com Wundt compôs um movimento de resistência ao processo democrático que se instaurava na Alemanha naquela época, pois acreditava que um líder escolhido pela maioria das população não seria alguém preparado para governar, pois os governantes aristocráticos haviam herdado essa capacidade de seus antepassados, herdando as melhores características de forma hereditária.
A ascensão de certas classes a posições confortáveis e importantes na vida deve ter dependido desde o início de que elas provassem sua coragem na luta por existência (Dasein Kampf). A luta garantiu-lhes uma posição superior em seu ambiente. Além disso, pode-se supor que seus traços positivos foram herdados e, portanto, que as gerações posteriores de uma antiga linhagem familiar que defendeu sua posição ao longo dos séculos manteve, até certo ponto, aquelas características que uma vez facilitaram sua existência Por outro lado, parece óbvio que os ancestrais daqueles pertencentes às classes mais baixas não possuíam, em geral, características que os equipassem para realizações extraordinárias e, portanto, não poderiam transmitir tais características. (Kraepelin, 1919 p. 181 apud Engstrom, 1991 p. 150).
Kraepelin entendia que a “degeneração”, a tendência à criminalidade e ao desenvolvimento de sofrimentos psíquicos era uma questão hereditária (a genética naquele momento era uma ciência incipiente).
A ciência, é importante lembrar, não é descolada de ideologias e de seu contexto histórico, político, social… a ideologia impregnada nas formulações diagnósticas de Kraepelin, a importação dessas ideias ao modelos diagnósticos atuais cumprem funções sociais que, de forma hegemônica, tem bases eugênicas e, portanto, higienistas.
Hobsbawm, um dos maiores historiadores de último século, anuncia as validações dos ideais eugênicos pela via do que hoje, como ciência mais desenvolvida do que na época de Kraepelin, denomina-se genética:
O que tornou a eugenia “científica” foi justamente o surgimento da genética após 1900, que parecia sugerir a exclusão total das influências ambientais na hereditariedade e a determinação, por um único gene, da maioria ou de todas as características; isto é, que o cruzamento seletivo dos seres humanos segundo o processo mendeliano era possível. (Hobsbawm, 2012 p. nd. - Versão para Apple Books - gritos nossos).
Contudo, no campo de estudos da genética mesmo, é sabido e largamente estudado a interação do organismo com o meio e como isso afeta os fenótipos, o que chamamos “epigenética”, aquilo que está sobre a genética. Para nós, seres humanos/os o meio social é a sociabilidade nos é imprescindível, somos seres sociais em essência, nosso organismo biológico é dotado de plasticidade (como a maioria dos organismos multicelulares) e nosso processo saúde e doença deve ser entendido a partir das determinações sociais-históricas e não apenas biológicas.
Isso quer dizer que, nossa herança genética, como afirmam Lewins e Levontin (1985), dá conta de características básicas como cor dos olhos, cabelos, estatura, etc. Mas as formas mais complexas de nosso comportamento, desenvolvimento, nossa consciência são produtos de nossas interações sociais, de nossa sociabilidade, ao longo da história de nossa vida. Então, é preciso entender que a nossa constituição enquanto seres humanas/os perpassa pelo contexto social, histórico e, consequentemente, político. Não somos indivíduos autogeridos, somos seres que dependemos do chão da história, expresso na sociabilidade constituída coletivamente/socialmente.
Como Marx (2011) já dizia: “Os homens [e mulheres] fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado.” (p. Nd. Versão para kindle).
O que temos diante de nós agora, os meios pelos quais deveremos conduzir nossa história, ante o explícito avanço do neoliberalismo e as expressões ultraconservadoras diante da iminente falência do modelo capitalista, será nossa luta e resistência nas trincheiras da luta antimanicomial, para não deixar que nossa política (e soberania nacional) sejam assoladas. O que não se construirá apenas a partir de nossa pauta, mas de organização coletiva.
A falência do capital, no sentido da impossibilidade de sua manutenção da forma como está, se expressará, para quem ainda não pôde construir seu bunker, pela barbárie, como já anunciavam alguns intelectuais franceses do grupo Socialismo ou Barbárie.
Eis o que se apresenta diante de nós: a barbárie! Que instrumentalizando as pautas da psiquiatria e da criminalidade (e a associação entre as duas), retoma seus fundamentos eugênicos sobre os quais se ergueu. Essa realidade já se expressa em na nossa política nacional, com a aprovação pela câmara dos deputados federais do PL 551/2024, inserido no PL 1637/2024 que altera a lei 10.216, e agora segue para o senado com grandes chances de aprovação, se não nos mobilizarmos.
E é aqui que a fala do dono da Meta nos implica como militantes da luta antimanicomial. Ao informar a retirada do filtro que associa questões LGBTQIA+ às questões de saúde mental, ele remonta aos princípios conservadores kraepelinianos.
Qual o interesse nisso?
Podemos citar dois interesses que de pronto nos levam às tentativas de manutenção e expansão do capital, baseado no aumento da exploração-opressão da “mais-valia”. Sim, isso mesmo, eis o fim posto desse sistema: manter e aumentar o lucro dos super ricos, enquanto esmagam até o suco, doutrinam, dopam, dominam e exploram a classe trabalhadora.
Na selva do capital, a arma ideológica do processo de exploração, compõe com as expressões das opressões uma unidade poderosa, para diminuir, discriminar e patologizar todas aquelas formas de comportamentos que fogem ao padrão do ethos burguês (do homem, branco, cis, patriarcal, hétero e dono dos meios de produção). O que serve para justificar uma política de maior expropriação das forças de trabalho quanto mais as pessoas se distanciam desse padrão.
O esgarçamento dos limites do capitalismo cada vez mais evidentes, convoca os super ricos a se reposicionarem também em pautas ideológicas, assistiremos as grandes marcas revogarem suas políticas de diversidade e se alinharem ao processo ultra-conservador que se desenha diante dos nossos olhos. Mas, a discriminação “do diferente”, a eliminação da diversidade humana e a redução ideológica que classifica como “humano” apenas aqueles que mais se aproximam “do padrão”, ao passo que desqualifica quem é diferente, encontra na psicopatologizacão dessa diferença está diretamente associada ao lucro, neste caso da indústria farmacêutica.
Para e ter noção da importância desse setor na economia mundial, o mercado dos medicamentos responde hoje pelo terceiro maior setor da economia norte-americana, correspondente à US$ 840 bilhões de receita (R$4,2 trilhões), sendo responsável pela maior parte da produção de medicamento no mundo:40% (De acordo com dados da ABRADILAN, 2024). Nessa esteira, os psicofármacos se tornam “queridinhos” das indústria e dos investimentos estatais, a importância do desenvolvimento de pesquisas sobre o cérebro e produtos que tenham como alvo o aumento do rendimento intelectual, emocional, enfim, da produtividade da classe trabalhadora, foi comparado por Barack Obama (2012) à corrida espacial. Com duas grandes potências econômicas nessa corrida: União Europeia e Estados Unidos.
Assim, não deve nos restar dúvidas sobre os interesses econômicos no processo de patologização da vida. E, como todo interesse econômico, este não está direcionado para o processo de cuidado de seres humanas e seres humanos, mas sim, em aumentar sua capacidade e necessidade de consumir e manter a máquina do lucro funcionando. O interesse, não nos enganemos, não é relacionado ao desenvolvimento humano, mas sim voltado para o desenvolvimento dos lucros e manutenção do capital.
As redes sociais, nesse ponto, têm assumido papel importante no impulsionamento da ind. farmacêutica, capturando os princípios dos movimentos identitários revolucionários, promovendo, no campo da saúde mental, um processo de identitarismo com os diagnósticos psicopatológicos. Substituindo, assim, a luta histórica de usuárias e usuários de não serem reduzidas aos seus diagnósticos, para a de sujeitos que se apresentam a partir de seu diagnóstico. Desta forma, onde havia uma condição passível de superação, agora se apresenta como uma identidade (como é o caso do TDAH, por exemplo), o que engendra a cronificação dos sofrimentos psíquicos e quase que “naturalmente” justifica a medicalização das condições socialmente fabricadas. Medicalização está que ganha eco em campanhas de entidades que buscan defender a lógica hegemônica, financiada pelas farmacéuticas, como as campanhas "Janeiro Branco" e "Setembro Amarelo" que propagam como ideal de saúde mental o estilo de vida burguês, e medicam "tratam" quem não consegue atingi-lo.
A conformação de identidades psicopatológicas ratificam as noções biomédicas, apoiadas pela hereditariedade com a autoridade do discurso médico da genética; reduz a complexidade do ser social ao biológico e incute um discurso fatalista e da impossibilidade de superação de determinadas condições. Ainda que diversos estudos, desde a década de 1930 (com a crítica de Vigotski (1931/2006) ao diagnóstico, por exemplo), demonstram o limite do biologicismo para se apreender os sofrimentos psíquicos. Estes estudos, cabe ressaltar, passam a ser invalidados, mesmo invisibilizados.
O conservadorismo avança a passos largos e tomará conta de todos os aspectos de nossas vidas, inclusive no campo da saúde, com auxílio das redes sociais, a manipulação das informações tomará contornos cada vez mais violentos, hostis e discriminatórios a todas aquelas e aqueles que não compõem “o padrão”. Serão tempos duros, que nos exigirá resistência e ainda mais força para lutar.
A defesa dos princípios antimanicomiais, despatologizantes e desmedicalizante exigirá de nós ainda mais capacidade de mobilização, para manter acesa a chama da luta pelo reconhecimento de nossa humanidade para além de nossos diagnósticos, para que sejamos pessoas de ativo enfrentamento ao contexto ideológico, para que não sejamos medicalizadas, exploradas e oprimidas. Urge, como Paulo Amarante e outros/as intelectuais tem apontado, de retomarmos de forma retumbante os princípios da luta. Uma sociedade livre dos manicômios é também uma sociedade que nos liberte da ,exploração-opressão de seres humanos/as por outros/as seres humanos/as. o Enfrentamento ( com “ E” maiúsculo) ao modelo eugenista biomédico é agora: Trabalhadoras, trabalhadores, usuárias, usuários e familiares da Saúde Mental uni-vos!
Referências Bibliográficas
AMARANTE, P. (2007) Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
FURTADO, V.C. (2024) Determinação Social da Esquizofrenia: Fundamentos Ontológicos para o Desvendamento do Desenvolvimento da Esquizofrenia. (Tese de Doutorado) UFRN.
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Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP
Docente aposentado da UFMT
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Exceto as criaturas miseráveis, “...pessoas de alma bem pequena”, do tipo das que são retratadas no “Blues da Piedade”, de Cazuza e Frejat, os demais brasileiros estão em estado de felicidade plena com o troféu Globo de Ouro, conquistado por Fernanda Torres, que superou algumas das mais importantes estrelas do cinema internacional. Para isso, nossa atriz interpretou Eunice Paiva, em “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens Paiva, deputado federal de 1963/64, pelo PTB/SP, assassinado pelos ditadores/torturadores de 64.
Para o desconforto, mesmo que in memoriam, de muitos dos que sustentaram aquele regime, bem como aos apequenados de alma que ainda flertam e se identificam com líderes autoritários, dispersos alhures, inclusive no Brasil, se Eunice, nos últimos anos de vida, perdera a memória por conta do alzheimer, paradoxalmente, hoje, cada um de nós está podendo recuperar um pouco da memória de um passado ainda tão próximo; passado, a bem da verdade, dolorido, tantas foram as suas crueldades, como a que se abatera à família Paiva, que teve de ver, em janeiro de 1971, Rubens ser retirado de sua casa, por agentes da ditadura militar, para um depoimento, do qual nunca mais voltou.
Mas se Rubens nunca mais pode voltar da forma como desejava sua família, hoje, ele está de volta; como de volta está Eunice. E ambos estão – por aqui – tendo um retorno retumbante, até pouco tempo inimaginável. Ambos estão nas telas dos cinemas do mundo inteiro! Quem diria?! A arte, de novo, driblou a censura; de seu jeito, aliás, delicado como foi tratada essa violência política no Brasil, pisoteou o autoritarismo, desnudando-o a quem quiser (re)ver uma parte de nossa triste realidade vivida por quase 25 anos do século passado.
De forma direta, das artes envolvidas, a literatura foi a primeira a contribuir com todo esse processo de resgate. Num misto dos gêneros biografia e memória, Marcelo escreveu a história de sua família, tendo sua mãe como personagem central, que nunca desistiu de lutar para que o Estado brasileiro desse uma resposta sobre o sequestro e o assassinato de Rubens.
Das páginas do livro, um roteiro já premiado na Itália – que hoje vive sob a égide de uma premiê de linhagem autoritária – foi elaborado para ser materializado nas telas dos cinemas e, posteriormente, acessado de outras formas.
Do excepcional roteiro, a força da arte dramática, literalmente, entrara em cena. Como nos geniais espaços em branco das páginas de “Un Coup de Dés” (Um Lance de Dados), de Mallarmé, Fernanda Torres atinge um nível de interpretação para a personagem Eunice em que o silêncio e os olhares falam mais alto/forte do que quaisquer palavras em diversos momentos da narrativa do filme. Aliás, esses dois elementos (os vazios e/ou os brancos) também se estendem a Fernanda Montenegro que, em poucos minutos, no epílogo, sem falar uma palavra sequer, diz tudo o que a personagem, já com o alzheimer avançado, poderia expressar: ápice das emoções de um filme por inteiro emocionante.
Emoção fílmica que teve ainda uma luxuosa trilha sonora. A música jamais poderia estar ausente. E música de gêneros e artistas tão diferentes entre si, como Erasmo e Roberto Carlos, Tim Maia, Gal Costa, Tom Zé, Os Mutantes, Serge Gainsbourg, Jucas Chaves, Nelson Sargento, Donny Hathaway, Caetano Veloso e Cesária Évora.
Assim, desse mosaico de manifestantes e manifestações artísticas, a cultura brasileira parece ter se vingado um pouco dos tantos ataques desferidos pelo ex-presidente da República. Das insanidades por ele verbalizadas, posto que o silêncio não lhe seja o forte, destaco sua homenagem ao coronel Brilhante Ustra, um dos mais cruéis torturadores de todos os torturadores do regime de exceção, quando da exposição de seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Todavia, BRILHANTE, de verdade, é o filme de Walter Salles. BRILHANTE é a oportunidade ser contemporâneo de famílias BRILHANTES, como a de Eunice e Rubens Paiva, de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, que, ao se juntarem no BRILHANTE palco do mundo das artes, estão nos presenteando com o BRILHANTE sentimento de brasilidade, que vai bem além, mas muito além do ato de fixar ou fincar uma bandeira na porta de uma casa, da varanda de um apartamento, no pórtico de um comércio ou na entrada de uma porteira qualquer, de uma estrada qualquer, de uma fazenda qualquer...
Como na história da criança e da bacia, salve nossa democracia!!! Suas imperfeições precisam ser denunciadas e combatidas, mas sua essência, preservada. Sempre. Aquela “vida de gado, de um povo marcado, povo feliz”, cantada por Zé Ramalho, não nos pertence. Em suma, ainda estamos todos aqui, juntos com Eunice, Rubens, Marcelo, Fernandas, Walter...
É com grande pesar que a Adufmat informa o falecimento do professor Tomás de Aquino Silveira Boaventura,
A Diretoria da Adufmat-Ssind, no uso de suas atribuições regimentais,
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EM NOME DA BÍBLIA
Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Ciências da Comunicação/USP
Professor de Literatura; aposentado da UFMT
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De matérias que li há alguns dias em Carta Capital, duas me motivaram a escrever este artigo: uma é do dia 16; a outra é do dia 18 deste mês, embora o Intercept Brasil tenha sido a fonte para as publicações da Carta.
Pela cronologia desses trabalhos, ficamos sabendo, primeiro, que o pastor estadunidense Douglas Wilson virá ao Brasil para o Congresso Evangélico Consciência Cristã, a ser realizado durante o feriado de carnaval em Campina Grande - PB; depois, que a organização do referido evento cancelou aquele convite, sob a justificativa de haver “riscos de ‘crimes de ódio’ contra os participantes e o palestrante convidado”.
Mas por quais motivos existiriam tais riscos?
Em resposta direta, o referido pastor é expoente da extrema direita nos EUA; ou seja, aquém tem noção do que isso significa, a informação se basta. Do contrário, nenhum argumento parece que poderia reverter a visão limitada de tantos seres contemporâneos. Seja como for, avalio ser necessário reproduzir o cerne do pensamento daquele “religioso”, para, depois, considerar sobre a centralidade de seu desconvite.
A bem dos créditos, as afirmações que aqui trago sobre o pastor Wilson são transcrições da denúncia de Ronilso Pacheco (teólogo e pesquisador do tema “religiões”) ao já menciona do Intercept Brasil (https://www.intercept.com.br/2024/01/18/pastor-evangelico-que-defende-a-escravidao-cancela-vinda-ao-brasil-apos-denuncia-do-intercept/), acerca da atuação político/religiosa de Douglas Wilson. Em suma, Pacheco afirma que Wilson “é defensor de grupos supremacistas”, como a KuKluxKlan; logo, não se constrange em usar a Bíblia para apoiar a escravidão em nome da absurda ideia de superioridade branca.
Ao saber disso, como cidadão, fui contemplado pelo desconvite que a organização do evento evangélicos e viu forçada a fazer, embora eu duvidasse de que qualquer tipo de “crime de ódio” pudesse ser materializado, caso o convite tivesse sido mantido.
Mas, independentemente de tudo, por mais incômodo que seja, saibamos que esse pastor não é o primeiro a usar a Bíblia para justificar barbáries, como a escravidão. Muita gente “boa” ainda faz isso. Por aqui, no período colonial, jesuítas trilharam por tortuosas e parecidas veredas.
Dada a relevância da questão, não é justo – e é limitador – que apenas poucos de nossos intelectuais façam o trabalho de relembrar tais posicionamentos ocorridos em nossa história. Em minha opinião, a pouca abrangência e/ou adesão do enfrentamento de tópicos que tocam questões religiosas (ou seus “legítimos” representantes), por mais absurdo que pareça, se dá muito por conta daquele “medo de ir para o inferno”, tão bem traduzido e sintetizado em versos do poema “O padre passa na rua” de Drummond.
Dos poucos intelectuais que até agora enfrentaram essa questão, com a elegância acadêmica que sempre lhe foi marca, cito o magistral trabalho Dialética da Colonização de Alfredo Bosi, em especial o capítulo “Vieira ou a Cruz da Desigualdade”.
Do Padre Antônio Vieira, muito se pode dizer; e o que dele for dito deve partir de tópicos de seu contexto histórico (séc. XVII), tão mercantil quanto escravocrata. A isso se devem juntar dados de sua biografia, como a de ter sido conselheiro de reis, confessor de rainhas, preceptor de príncipes, diplomata e defensor de cristãos-novos.
Essa “salada” de atividades sociais –nada compatível com o sacerdócio – tem reflexo direto em sua produção literária, com destaque aos seus sermões.
Por isso, mesmo não ignorando a crueldade da escravidão, aliás, com um pensamento que chegou a antecipar palavras deveras pertinentes de Marx sobre a crueza do trabalho escravo, Vieira, em uma de suas contradições, “reproduz”, no Sermão XXVII do Rosário, com base em Lucas 12: 37, que “Bem-aventurados (são)aqueles escravos a quem o Senhor no fim da vida achar que foram vigilantes em fazer a sua obrigação”.
Pior. Dessa transcrição, Bosi chama a atenção do leitor ao frisar que, no original bíblico, o versículo é encerrado na palavra “vigilantes”. Logo, de minha parte, pondero que o que vem após – “em fazer a sua obrigação” – pode estar revelando uma compreensão própria do orador católico dos setecentos; e essa manipulação no texto bíblico é desconcertante. Não seria isso um tipo de pecado mortal, na visão religiosa?
Outro desconcerto refere-se à escravidão dos indígenas. Se sobre a dos africanos, a Igreja Católica se silenciou, ou falou muito baixo, ela não se omitiu acercada servidão dos indígenas. Na Bula “Sublimis Deus”, emitida por Paulo III, em 1537, de amplo conhecimento do meio eclesiástico, a Igreja foi enfática em proibir aquela prática.
Dessa bula papal, resumo o que Bosi transcreveu no capítulo já citado:“...decretamos e declaramos com nossa autoridade apostólica que os referidos índios e os demais povos que daqui por diante venham ao conhecimento dos cristãos... são dotados de liberdade e não devem ser privados dela, nem do domínio de suas cousas... que podem usar, possuir e gozar livremente dessa liberdade e deste domínio, nem devem ser reduzidos à escravidão...”
Contudo, como lembra o mesmo professor Bosi, “esse ideal fora abandonado pelo compromisso político dos padres de ‘descer’ com os portugueses ao sertão, domesticar e reduzir os indígenas à obediência...”, fazendo-os “trabalharem a metade do ano nas roças dos colonos” de Belém do Pará e de São Luís do Maranhão.
Após essas considerações, que sequer levaram em conta o peso da escravidão do plano ideológico de africanos e indígenas, não sem lamentar por tudo, o fato é que a respeito do pastor Wilson se pode comprovar seu pensamento como o de um supremacista; contudo, jamais se poderá dizer o mesmo de Vieira. No limite, por mais comprometedoras (e constrangedoras) que sejam, resta-nos apontar as contradições internas em alguns de seus sermões, paradoxalmente, todos brilhantes. Desses apontamentos, outras e profundas reflexões/revisões históricas podem e devem ser feitas.
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JUACY DA SILVA*
“Cada dia é-nos oferecida uma nova oportunidade, uma etapa nova. Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam; seria infantil. Gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas. Hoje temos à nossa frente a grande ocasião de expressar o nosso ser irmãos, de ser outros bons samaritanos que tomam sobre si a dor dos fracassos, em vez de fomentar ódios e ressentimentos. Como o viandante ocasional da nossa história, é preciso apenas o desejo gratuito, puro e simples de ser povo, de ser constantes e incansáveis no compromisso de incluir, integrar, levantar quem está caído; embora muitas vezes nos vejamos imersos e condenados a repetir a lógica dos violentos, de quantos nutrem ambições só para si mesmos, espalhando confusão e mentira. Deixemos que outros continuem a pensar na política ou na economia para os seus jogos de poder. Alimentemos o que é bom, e coloquemo-nos ao serviço do bem. É possível começar por baixo e caso a caso, lutar pelo mais concreto e local, até ao último ângulo da pátria e do mundo, com o mesmo cuidado que o viandante da Samaria teve por cada chaga do ferido. Procuremos os outros e ocupemo-nos da realidade que nos compete, sem temer a dor nem a impotência, porque naquela está todo o bem que Deus semeou no coração do ser humano. As dificuldades que parecem enormes são a oportunidade para crescer, e não a desculpa para a tristeza inerte que favorece a sujeição. Mas não o façamos sozinhos, individualmente”. Papa Francisco, Encíclica Fratelli Tuttii (Somos todos irmãos), 03/10/2020
A história humana pode ser observada a partir de uma violência constante e de todas as formas, conflitos armados, guerras, terrorismo, violência urbana, violência doméstica, violência de gênero, violência racial, tráfico humano, escravidão, trabalho “análogo” `a escravidão e tantos atos que provocam dor, sofrimento e morte.
Ao lado desta violência contra as pessoas e grupos humanos e também contra a natureza, o meio ambiente, não podemos nos esquecer de outras formas de violência psicológica, financeira e patrimonial, bem como a violência provocada pela fome, pela miséria, pela pobreza, pela exclusão, pelas doenças, pelo abandono e pelas diferentes formas de desigualdades.
Inspirada tanto nesta Encíclica do Papa Francisco quanto na realidade brasileira e mundial, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, refletindo sobre as comemorações dos 60 anos da existência da Campanha da Fraternidade escolheu para 2024 exatamente o o Tema FRATERNIDADE E AMIZADE SOCIAL e o Lema “Vós sois todos irmãos e irmãs”, citação do Evangelho de São Mateus, 23:8. Esses foram o tema e o lema escolhidos pelo Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em novembro de 2022.
De acordo com o Pe. Jean Paul, coordenador do Setor de Campanhas da CNBB, desde 1964, portanto há 60 anos, a CF vem mobilizando todo o Brasil num verdadeiro mutirão de evangelização e de conversão e, em minha opinião, estimulando os fiéis a uma reflexão crítica e criadora sobre os principais desafios que nos afligem, que são os temas e lemas escolhidos para essas Campanhas anualmente.
A Campanha da Fraternidade, anualmente, desde 1964, escolhe um tema e um lema para serem objeto de uma reflexão mais profunda por parte tanto dos fiéis católicos e também a cada cinco anos de forma ecumênica quando Igrejas evangélicas participam dessas campanhas.
“De acordo com o bispo auxiliar da arquidiocese de Brasília e secretário-geral da CNBB, dom Ricardo Hoepers, o tema e o lema da Campanha da Fraternidade 2024 refletem a preocupação do episcopado brasileiro em aprofundar a fraternidade como contraponto ao processo de divisão, ódio, guerras e indiferença que tem marcado a sociedade brasileira e o mundo”, CNBB,Novembro, 2022.
Normalmente a Campanha da Fraternidade acontece durante o período da Quaresma, que é um tempo de arrependimento, de orações e de conversão e, também, de reflexão sobre a realidade brasileira, de cada Estado e de cada município/localidade ou seja, como resultado buscamos uma transformação profunda desta realidade cruel que nos cerca.
Neste ano de 2024 a referida Campanha terá início na quarta feira de cinzas, dia 14 de Fevereiro próximo e no dia 24 de Março de 2024, quando do encerramento da Campanha da Fraternidade ocorrerá uma coleta especial, destinada aos fundos diocesanos e também ao fundo nacional de solidariedade, administrado pela Cáritas Brasileira, para financiarem projetos de natureza sociotransformadora no Brasil inteiro.
O objetivo Geral da Campanha da Fraternidade é “despertar para o valor e a beleza da fraternidade humana, promovendo e fortalecendo os vínculos da amizade social, para que, em Jesus Cristo, a paz seja realidade entre todas as pessoas e povos”.
Importante também é destacar os nove Objetivos específicos da referida Campanha da Fraternidade deste ano: 1) Analisar as diversas formas de mentalidade de indiferença, divisão e confronto em nossos dias e suas consequências para toda a humanidade, inclusive na dimensão religiosa; 2) Compreender as principais causas da atual mentalidade de oposição e conflito, geradora da incapacidade de ver nas outras pessoas um irmão ou uma irmã; 3) Identificar iniciativas de comunhão, reconciliação e fraternidade, capazes de estimular a cultura do encontro; 4) Redescobrir, a partir da Palavra de Deus, a fraternidade, a amizade social e a comunhão como elementos constitutivos do ser humano; 5) Acolher o magistério da Igreja sobre a fraternidade universal, como ajuda ao discernimento nas inúmeras situações de conflito e divisão; 6) Aprofundar a compreensão da comunhão e da fraternidade como caminho para a realização pessoal e para a paz em todas as situações da vida; 7) Conscientizar sobre a necessidade de construir a unidade em meio à pluralidade, superando divisões e polarizações; 8) Estimular a espiritualidade, os processos, os hábitos e as estruturas de comunhão na Igreja e na sociedade; 9) Incentivar e promover iniciativas de reconciliação entre pessoas, famílias, comunidade, grupos e povos.
A realização da Campanha da Fraternidade tem uma Coordenação Nacional e Coordenações em todos os Regionais da CNBB, nos diversos Estados Brasileiros e, também, as Coordenações Arquidiocesanas, diocesanas e nas paróquias, `as quais promovem desde o final de 2023 e em 2024, nos meses de Janeiro e Fevereiro, cursos de formações de agentes da Campanha e da Cáritas, visando refletir e buscar uma unidade de entendimento e de ação, tendo como fundamentos os subsídios produzidos pela CNBB (Manual Básico, Documento Base, Documentos específicos voltados para os diversos públicos que se pretende atingir; o cartaz, o hino e a oração).
Em Mato Grosso, a Coordenação da Campanha da Fraternidade do Regional Oeste 2 da CNBB, já coordenou esta formação nas Dioceses de Sinop, Cáceres e está em curso também da Arquidiocese de Cuiabá e no período que antecede o lançamento da Campanha (início da Quaresma) todas as demais Dioceses e inúmeras paróquias terão oportunidade de promoverem esta formação.
Para finalizar, cabe ressaltar que todo este trabalho é realizado de forma totalmente voluntária, dentro do espírito da Cáritas Brasileiras, que sempre tem reafirmado a importância das diferentes formas de caridade: a Assistencial (dar o peixe/comida, agasalho a quem precisa de forma imediata); a Promocional (ensinar a pescar, oferecendo cursos de formação, estimulando iniciativas de economia solidária, cooperativismo, visando criar oportunidade para emprego e renda) e, finalmente, a CARIDADE LIBERTADORA (pescar juntos, promover a MOBILIZAÇÃO PROFÉTICA, tanto para denunciar as injustiças e outras formas de desrespeito `a dignidade das pessoas quanto, atuar junto aos poderes públicos para que definam e implementem políticas públicas visando enfrentar os desafios da realidade que nos cerca).
Esses são o sentido, o significado, o alcance, a dimensão, a finalidade e os objetivos da Campanha da Fraternidade, coerente com uma Igreja que faz a opção preferencial pelos pobres, Sinodal, Samaritana, em Saída e, também, PROFÉTICA, como tanto tem enfatizado e nos exortado o Papa Francisco!
Vale a pena participar desta cruzada evangelizadora e sociotransformadora!
*Juacy da Silva, professor fundador, titular e aposentado da universidade Federal de Mato Grosso, Sociólogo, Mestre em Sociologia, Ambientalista, Articulador da organização da Caritas Arquidiocesana de Cuiabá no final dos anos 90; Articulador da Pastoral da Ecologia Integral. Email O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
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O aumento no consumo individual de energia – Dos primitivos ao Sapiens 4.0
O agravamento do aquecimento global tornou-se pauta necessária para o estabelecimento de relações sociais e econômicas na atualidade. A geração de eletricidade para atender a nossa crescente demanda por energia e a do setor de transportes é o principal responsável por esse agravamento. Cerca de 80% da eletricidade gerada em todo o mundo se dá pela queima de combustíveis fósseis, enquanto no Brasil é de apenas 17%. Esse processo emite gases de efeito estufa (GEE), que são os principais causadores do aquecimento do globo. Mas, como chegamos até aqui e qual é a tendência para os próximos anos? Para responder a esta pergunta, faz-se necessária uma breve viagem no tempo.
A figura, que apresenta um indivíduo de classe média, representa vários estágios do apetite da espécie humana por energia, que ocorreram devido às mudanças no modo de produção e reprodução da vida material (da existência). Os recursos não são distribuídos uniformemente na biosfera, e a sua apropriação é ainda mais desigual que a distribuição.
Observa-se na figura a estimativa de alguns estágios de consumo energético do homo sapiens, em Giga Joules por pessoa por ano. Esse consumo representa a projeção da alimentação, responsável pelo funcionamento da máquina biológica, como também o consumo externo ao corpo, no transporte, e nos processos necessários para produzir os bens utilizados disponíveis aos homens na modernidade.
O homem primitivo, há um milhão de anos, era apenas um coletor de vegetais. Alimentava-se diariamente de vegetais produzidos a partir da luz solar, água e dióxido de carbono (CO2), liberando o oxigênio e a glicose fundamental para alimentação dos músculos humanos.
Há cem mil anos, continuávamos a usar a energia basicamente sob a forma de alimento. Como caçadora coletora, nossa espécie passou a consumir também energia armazenada nos tecidos dos animais e logo intensificou seu uso energético quando começou a fazer a cocção dos alimentamos. O domínio do fogo representou um processo extraordinário para os avanços da espécie.
Cerca de sete mil anos atrás: o terceiro estágio é representado pelos agricultores e pastores primitivos, na transição dos caçadores coletores, que não tinham uma moradia determinada, para a vida mais sedentária, na qual nossa espécie passou a realizar alterações mais intensas no espaço onde ocupou, começou a se aglomerar e desenvolver comunidades maiores, demandando, assim, uso energético mais intenso que nos estágios anteriores. A biomassa foi o recurso energético dominante desta era.
Há aproximadamente 600 anos, no quarto estágio, os homens aumentaram seu consumo por energia e o transporte surgiu como necessidade energética para levar produtos e pessoas até os centros de consumo. Nesse período já se realizava o aproveitamento da força do vento pelos moinhos, da força das águas pelas rodas d’agua. Também se começou a empregar o carvão mineral, sendo esta uma das primeiras migrações do homo sapiens da energia de fluxo para a utilização dos estoques energéticos.
Há mais ou menos 150 anos, o segundo estágio da grande revolução industrial estava em curso. Com a entrada da eletricidade nos processos produtivos, a iluminação artificial e o desenvolvimento do motor elétrico foram fundamentais para o aumento da produtividade e impulsionaram uma elevada demanda energética às atividades humanas. O consumo energético nas edificações também cresceu exponencialmente, proporcionando maior conforto ambiental. Mas o grande marcador desta era energética foi a apropriação do petróleo nos processos produtivos. Este recurso energético representou a saída do sapiens da dependência do fluxo para o controle dos estoques de energia.
Na metade do século passado o homem já se transportava em massa entre os países e continentes. A indústria experimentou ganhos de produtividade elevados devido à automação dos meios de transformação dos produtos. A alimentação tornou-se cada vez mais variada, sendo movimentada por quilômetros até seu uso final. O acesso ao gás e à água foi universalizado em muitas cidades e o uso energético praticamente triplicou quando comparado com a etapa anterior.
Alguns dizem que esta espécie já atingiu a denominada quarta revolução industrial, na qual processos de fabricação possuem uma menor interferência humana. A comunicação é cada vez maior, o que amplifica a necessidade de eletrônica embarcada em todos os equipamentos e processos. Todos possuem um Smartphone conectado à internet 24 horas por dia, com um imenso tráfego de informações alimentado por milhares de GWh/ano. As edificações estão cada vez mais tecnológicas e comunicativas, com o fornecimento do serviço de energia (eletricidade, gás, internet) sempre mais crítico para manter todo este processo. Nesse contexto, já foi anunciada a quarta etapa da revolução industrial, que pode ser denominada de Sapiens 4.0.
Assim, de forma individual, mas vivendo e atuando em comunidade/sociedade, o homem tecnológico depende de energia como em nenhum outro estágio da sua existência. Mas, analisando coletivamente, esta espécie passou por aumento populacional sem precedentes nos últimos anos. Em 1922 éramos dois bilhões de pessoas no mundo, com uma expectativa de vida média de 40 anos, e em 2023 somos aproximadamente oito bilhões, com uma perspectiva de vida média de 71 anos.
Considerando que o setor de energia é o principal contribuinte para o aumento do aquecimento global; que o número de pessoas está crescendo; e que a cada novo estágio do “desenvolvimento” as pessoas estão consumindo mais energia, então faz-se imperativo discutir cada vez mais as possibilidades do setor de energia, desde a produção, transporte e distribuição, até seu uso final, objetivando sua eficiência, otimização e racionalidade.
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Juacy da Silva*
O Dia do Controle da Poluição por Agrotóxicos foi instituído pelo Decreto Federal nº 98.816, de 11 de janeiro de 1990, (há 34 anos), contemplando a primeira regulamentação da Lei dos Agrotóxicos: Lei 7.802, de 11 de Julho de 1989, regulamentada 13 anos depois, pelo Decreto 4.074, de 04 de janeiro de 2002.
A data visa à elucidação dos riscos ocasionados pelo uso indiscriminado de substâncias agroquímicas, pesticidas e praguicidas. Com efeito, esses elementos podem comprometer o meio ambiente e a saúde, tanto daqueles que estão em contato direto com o solo quanto dos que consomem os produtos derivados da terra. Nesse sentido, o dia objetiva fomentar a conscientização acerca da necessidade do uso sustentável e ecológico desses defensivos químicos.
Em 28 de novembro do ano passado (2023) o Senado aprovou o projeto de Lei que estava tramitando no Congresso Nacional desde 1999, sobre os agrotóxicos no Brasil, tendo o mesmo sido sancionado pelo Presidente Lula em 28 de Dezembro último, com 14 vetos.
Vejamos a nota da Agência Brasil sobre o assunto: “Em tramitação desde 1999, o PL estabelece regras para controle, inspeção e fiscalização desses produtos, com potencial de prejudicar a saúde humana e animal, bem como o meio ambiente, mas largamente utilizados pelo setor agrícola com o intuito de proteger e aumentar suas produções. De acordo com o Planalto, a decisão pelo veto dos dispositivos foi motivada “pelo propósito de garantir a adequada integração entre necessidades produtivas, a tutela da saúde e o equilíbrio ambiental”. O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Entre 2019 e 2022, foram liberados 2.181 novos registros, o que corresponde a 545 por ano. Em 2023 (Governo Lula), o país aprovou 505 novos registros de pesticidas, segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento”.
De acordo com publicação da Embrapa, em 2022 o Brasil utilizou 2,5 milhões de toneladas de agrotóxicos, um aumento de 700% nos últimos 40 anos, cujas consequências tem sido o aumento da poluição, do ar, das águas, do solo, afetando a saúde dos trabalhadores, moradores das proximidades das áreas utilizadas para produção de alimentos, contaminação de 25% das frutas, legumes e verduras, e um aumento de doenças de pele, respiratórias, câncer e outras mais, decorrentes desses agrotóxicos, “O Brasil é campeão mundial no consumo de agrotóxicos e o Instituto Nacional de Câncer (INCA) alerta para o risco que os brasileiros correm. De acordo com relatório divulgado pelo INCA, o Brasil despeja mais de um milhão de toneladas de agrotóxicos nas lavouras por ano. O que daria, em média, cinco quilos de veneno agrícola por pessoa. O documento explica que pessoas que trabalham diretamente nas lavouras estão mais suscetíveis a intoxicações. Porém, a exposição a resíduos de agrotóxicos nos alimentos e no ambiente, geralmente em doses baixas, pode afetar toda a população. O INCA cita como potencias problemas: infertilidade, impotência, abortos, malformações, efeitos no sistema imunológico e câncer. Além disso, o INCA também critica a permissão do uso no Brasil de agrotóxicos já banidos em outros países. Como é o caso do glifosato, um dos herbicidas mais comuns nas lavouras brasileiras, classificado como provável causador de câncer”. Fonte: INCA, 20/12/2023
O Papa Francisco, fazendo coro com estudiosos, ambientalistas e cientistas, quando escreveu e publicou, em 24 de Maio de 2015 a Encíclica Laudato Si, antes mesmo de a ONU ter estabelecido os Objetivos Sustentáveis do Desenvolvimento e, também, antes do Protocolo/Acordo de Paris ter sido aprovado e firmado por quase duas centenas de países e territórios, destacou, além de tantas outras verdades, dois fatos que precisamos refletir mais profundamente.
Francisco ao publicar a citada Encíclica que passa a ser um marco significativo no pensamento social e ambiental da Igreja, afirmou categóricamente: a) na raiz dos problemas e desafios sócioambientais, incluindo a terrivel crise climática, estão as ações, nada racionais, mas sim altamente predatórias e egoistas dos seres humanos; b) o Planeta Terra, chamado pelo Papa Francisco de “nossa casa comum”, a nossa mãe terra, é um todo integrado, pessoas, biomas, biodiversidade, nações e ecossistemas não existem isoladamente; diante disso, “tudo está interligado, nesta casa comum”.
Isto significa que para os problemas socioambientais não vale a ideia de soberania nacional, de propriedade privada, de apenas uma geração, pois, afinal antes desta geração outras tiveram lugar e depois de nossa geração, muitas outras, por séculos e milênios no futuro a humanidade terá que conviver com a natureza.
Se depredarmos, degradarmos, destruirmos a natureza de uma forma irracional e gananciosa, visando apenas lucros imediatos e imediatistas, com certeza tanto as atuais quanto as futuras gerações sofrerão as consquências, ou seja, “pagarão o pato”. Como conclusão neste sentido, precisamos nos preocupar e respeitar o direito das futuras gerações e terem um meio ambiente saudável, sustentável e não um planeta doente e destruido, como tudo levar a crer que seja esta a herança que os atuais destruidores da natureza e do planeta irão deixar para seus filhos, netos, bisnetos ou tretanetos.
Quando Francisco fala que “tudo está interligado, nesta casa comum”, ele se refere a todas as nossas ações, nossos pecados ecológicos e nossos crimes ambientais, tanto no que concerne ao âmbito geográfico, ecossistemas e biomas, quanto setorialmente, como é o caso do uso e abuso em relação aos agrotóxicos que degradam a natureza: o solo, o subsolo, as águas, o ar, os alimentos e, em decorrência a saúde animal e saúde humana, aumentando as doenças, o sofrimento e a morte de milhões de pessoas ao redor do mundo em poucas décadas.
Em sua origem o surgimento dos agrotóxicos (pesticidas, herbicidas, fungicidas) foi saudado como um grande avanço nas práticas agrícolas e pecuária, no contexto da chamada revolução verde, ao lado de inúmeras outras tecnologias que facilitaram tanto o aumento da produção quanto da produtividade, aumentando inclusive as áreas a serem utilizadas para a produção de alimentos, áreas essas, como o cerrado brasileiro, que até então eram consideradas regiões não propícias `a agricultura.
No entanto, se de um lado ocorreram grandes progressos em relação ao volume de alimentos produzidos (grãos e proteínas animais), de outro lado, pouco se cuidou dos exageros ou das consequências que essas práticas poderiam ter para a natureza (animais e vegetais, biomas) e para os seres humanos, a curto, médio e longo prazos.
Este é o debate que está sendo travado no mundo todo, principalmente em países como os EUA, Brasil, Austrália, União Europeia, na África e na Ásia, onde estão os maiores produtores de alimentos/agropecuária do mundo.
No caso do Brasil, que, em termos globais está entre os quatro ou cinco maiores produtores de alimentos do planeta, ocupando o primeiro lugar em relação a alguns tipos/produtos como proteína animal, soja, milho e algodão, principalmente este debate tem sido acalorado.
De um lado alguns grupos industriais que produzem esses agrotóxicos e também sementes e outros insumos, que tem entre seus aliados boa parte do agronegócio que teima em defender que para “alimentar o mundo” vale tudo, incluindo o desmatamento e queimadas que estão destruindo todos os biomas brasileiros, principalmente os três “mais importantes”, tanto pela dimensão territorial quanto riqueza da biodiversidade: Pantanal, Cerrado e Amazônia, tendo como consequência direta a degradação e poluição do ar, dos solos, da água e dos alimentos pelo uso exagerado e, em certos casos, até criminoso, de agrotóxicos já banidos em diversos outros países e que deveriam também ser no Brasil.
Esta discussão está centrada em quatro aspectos: a) quantidade total de agrotóxicos usada, em que o Brasil é campeão entre os países e Mato Grosso é o campeão nacional, seguido de perto por outros Estados da Amazônia e do Centro Oeste; b) quantidade de agrotóxicos por área ocupada com lavouras, onde são produzidos grãos; e, c) quantidade de agrotóxico por tonelada de grãos produzidos e, d) quantidade de agrotóxico utilizado per capita.
Cientistas e ambientalistas insistem dizendo que mesmo que o Brasil tenha “avançado” na “redução” do uso de agrotóxicos em relação tanto à área ocupada (toneladas de agrotóxicos por ha plantado) ou em relação `a produção de grãos ( toneladas de agrotóxico por toneladas de produção), o que também não é verdade, `a medida que tem havido uma expansão meteórica tanto em termos de área ocupada, como a que tem acontecido na região conhecida por MATOPIBA e em outras regiões do cerrado e da Amazônia a consequência natural é cristalina, ano após ano a quantidade de agrotóxico utilizada vem aumentado, para euforia dos grandes grupos internacionais, vários dos quais tem suas unidades produtoras de agrotóxicos na Europa, nos Estados Unidos, na China e na Índia, cujos lucros, `as custas da contaminação/poluição continuam crescendo celeremente.
Em estudo, relativamente recente, do IPEA, em 2019, considerado um texto para discussão o pesquisador Rodrigo Fracalossi de Moraes, aponta que “Embora a aplicação de agrotóxicos aumente a produtividade agrícola, o seu uso intensivo frequentemente gera um conjunto de externalidades negativas, bastante documentadas na literatura especializada. Impactos sobre seres humanos vão desde simples náuseas, dores de cabeça e irritações na pele até problemas crônicos, como diabetes, malformações congênitas e vários tipos de câncer. Impactos ambientais também são vários, incluindo contaminação da água, plantas e solo, diminuição no número de organismos vivos e aumento da resistência de pestes”.
Dados desta publicação do IPEA, que é considerado como uma Instituição pública séria e que goza de grande credibilidade, demonstram que tanto em relação `a quantidade total de agrotóxicos usada no Brasil, quanto `a quantidade de por área (ha) cultivada e também quanto `a quantidade por habitante e do volume de produção, este crescimento tem sido bem acima da média mundial, considerando os 14 países que mais usam agrotóxico quanto produzem alimentos.
O período analisado é de 1991 até 2015, cabendo ressaltar que esta corrida louca em relação uso de agrotóxicos que se revela tanto nesses dados quanto na autorização pelas autoridades sanitárias animal, vegetal e humana tem sido realmente vertiginosa, inclusive nos governos petistas (Lula/Dilma) entre 2003 até 2016 quanto atual (terceiro mandato). Neste aspecto, existe uma grande polêmica, um grande debate em relação `a regulação quanto ao uso dos agrotóxicos, indicando a necessidade de uma maior participação tanto da comunidade científica quanto dos movimentos que representam a sociedade e os consumidores, evitando deixar apenas entre regulados (produtores e comercializadores dos agrotóxicos) e reguladores (organismos públicos que regulam e “controlam”), mas que sofrem pressões e ingerências da política, onde estão também presentes os grandes “lobbies” desses grandes grupos econômicos, incluindo a poderosa bancada do boi.
Em 1991 o Brasil ocupava a 11ª posição entre 14 países que mais utilizavam agrotóxicos no mundo, passado para a 6ª posição em 2015, saltando de 58 mil toneladas em 1991 para 375 mil ton em 2015, um aumento de 643%, enquanto a média mundial cresceu apenas 179% no mesmo período.
Em relação `a quantidade por área cultivada (toneladas de agrotóxico por ha), em 1991 o Brasil usava 1,0 ton/ha e em 2015 passou para 4,3 ton/ha, um aumento de 427%, enquanto o mundo passou de 1,5 ton/ha em 1991 para 2,6 ton/ha, um aumento de “apenas” 72% ou seja, praticamente seis vezes menos do que o Brasil no mesmo período. Em 1991 o Brasil ocupava a 12ª posição entre os 14 países que mais usavam e ainda usam agrotóxicos, passando a ocupar a 7ª posição em 2015 e, segundo algumas análises em 2023 deverá ocupar a quarta ou quinta posição, o que demonstrra a escalada vertiginosa do uso de agrotóxicos no Brasil.
Outro dado interessante é a questão da quantidade de agrotóxicos por habitantes ou como se diz, quanto cada brasileiro, inclusive recém nascidos consome de agrotóxicos (muitos afetados dentro do ventre materno), como o pesquisador da UFMT Dr. Wanderlei Antônio Pignati e associados encontraram em seus estudos recentemente, também confirmados pelo Atlas do Agrotóxico, publicação da FIOCRUZ em 05 de Dezembro último, que vale a pena e merece ser consultado, onde existem dados mais atualizados.
Em 1991 o Brasil utilizava 0,4kg de agrotóxico por habitante e em 2015 usava 1,8 kg per capita, um aumento de 475%; enquanto a média mundial por habitante era de 0,4 kg por habitante em 1911, passando para 0,6 kg por habitante em 2015, um aumento de apenas 37%.
Esses três parâmetros demonstram a velocidade e a volúpia no uso dos agrotóxicos no Brasil. Fica claro que esta prática e altamente lucrativa para produtores e grandes usuários do agrotóxico (agronegócio) enquanto os prejuízos são custeados pelos contribuintes (via políticas públicas e subsídios para diversos setores que participam desta cadeia) e os malefícios para a saúde, para a alimentação fica nas costas dos consumidores e da população em geral.
Vejamos, de forma breve o que o documento do IPEA nos diz sobre a questão da regulamentação do uso dos agrotóxicos e as principais sugestões do mesmo.
“Com base na literatura teórica e empírica, este texto propõe cinco medidas para equilibrar, ainda que parcialmente, a influência de regulados sobre o processo regulatório, prevenindo assim o problema da captura regulatória: i) manter a separação de poderes no registro de agrotóxicos, divididos desde 1989 entre as áreas de estímulo à agricultura, à saúde pública e ao meio ambiente, a fim de reduzir riscos de conluio entre regulados e reguladores; ii) enfraquecer o mecanismo conhecido como porta giratória; iii) ampliar a presença de grupos da sociedade civil e experts em discussões, comitês e processos decisórios, especialmente das áreas de direito do consumidor, meio ambiente, saúde pública e de trabalhadores rurais; iv) treinar agentes públicos nas áreas de relações com o setor privado, política da regulação e captura regulatória, a fim de identificarem situações de potencial captura e prevenir o que a literatura denomina de captura cognitiva ou cultural; e v) manter garantias para a liberdade de expressão, de forma que setores mais frágeis e a mídia possam apontar eventuais conluios entre regulados e reguladores”.
Para finalizar, vejamos o que nos diz a FIOCRUZ no lançamento da Publicação “ATLAS DOS AGROTÓXICOS”, em 05 de dezembro de 2023:“O Atlas faz um raio-x sobre a questão dos agrotóxicos no Brasil a partir de um conjunto de artigos - traduzidos e outros originais - e reforça que vestígios de agrotóxicos usados na agricultura estão sendo encontrados em frutas, nos vegetais, no leite materno, no ar e até mesmo nos solos de territórios protegidos. A morte massiva de abelhas causada por agrotóxicos à base de fipronil em diferentes partes do planeta e a contaminação de escolas por produtos aplicados via pulverização aérea são dois exemplos que ilustram os riscos do uso dessas substâncias. Todos os textos apresentam dados e fatos sobre o uso e o impacto dos agrotóxicos na agricultura e na saúde humana”.
Esses são apenas alguns dos aspectos e das razões que precisamos refletir neste 11 de Janeiro quando destacamos este como o DIA DO CONTROLE DA POLUIÇÃO POR AGROTÓXICO, no Brasil e no mundo. Ignorar este problema e suas consequências é uma forma de nos omitirmos sobre um grave desafio socioambiental em nosso país.
*Juacy da Silva, professor fundador, titular e aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso, sociólogo, mestre em sociologia, ambientalista, articulador da Pastoral da Ecologia Integral. Email O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. Instagram @profjuacy