Quinta, 09 Janeiro 2025 14:43

As Big Techs e os desafios para a política nacional de Saúde Mental Antimanicomial

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ESPAÇO ABERTO                                                 
Debate de ideias – Informativo da Associação dos Docentes da UFMT   - ADUFMAT - nº 02/2025. 
 
 
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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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As Big Techs e os desafios para a política nacional de Saúde Mental Antimanicomial 
 

Por Vanessa C Furtado

Profa. Dra. Departamento de Psicologia- UFMT

Para Fernando Freitas e

 David V-E Tauro 

Na última terça-feira assistimos ao anúncio de Zuckerberg sobre alterações relacionadas aos algoritmos das redes sociais que comanda, dentre essas mudanças, o CEO fez questão de anunciar a liberação de se associar questões de sexualidade a transtornos mentais. Uma mudança radical na postura das BigTech que vendiam a vibe “descoladas e moderninhas, abertas à diversidade”. O recuo ideológico aponta para nós, lutadoras e lutadores antimanicomiais um cenário complexo,  de avanço da patologização, agora declaradamente apoiado pelas redes sociais, que exigirá organização da luta e resistência.

Em momentos de agudização da crise, o Capital não se furta em lançar mão de suas pautas fascistas e eugenista na garantia de manutenção do status quo. O duplo retrocesso nas redes sociais sobre a pauta LGBTQIA+ e da pauta da saúde mental é prova de que o avanço da extrema direita, de ideais nazifascistas não são ao acaso, mas é sim um projeto articulado pelas grandes potências econômicas mundiais. 

Mas, o que isso impacta nossa política nacional de Saúde Mental e em nosso dia-a-dia?  

É preciso retomar um pouco a história da psiquiatria para que possamos entender esses impactos. A psiquiatria denominada científica, como uma especialidade das ciências médicas, tem um marco importante no final do século XIX com Kraeplin e seu sistema nosológico. 

Naquela ocasião, Kraepelin (1887/2005) discutia a crise da psiquiatria (1886) justamente por ela não conseguir responder, aos problemas aos quais se dedicava, com a mesma “eficácia” de outras especialidades médicas. A solução, para o autor, era a utilização dos métodos da Psicologia Experimental de Wundt como base das investigações psiquiátricas. 

Seguindo esses passos, Kraepelin desenvolve um sistema nosológico que tem embasado a psiquiatria desde então. Principalmente, a partir da terceira edição do DSM. Muito embora, atualmente, apenas parte das ideias kraepelinianas ainda se encontram presentes nas formulações diagnósticas em saúde mental baseadas no DSM, há um elemento fundante que permanece na  lógica de se fazer diagnóstico na psiquiatria hegemônica: o modelo biomédico, radicado em um ideal eugênico e higienista de saúde; como bem nos chama atenção o “SPK Fazer da doença uma arma” (movimento de paciente/usuárias/os alemães da década de 70 “Coletivo Solcialista de Pacientes de Heidelberg) em seu manifesto. De acordo com eles: 

“Saúde é um conceito totalmente burguês. O capital como um todo estabelece uma norma média de exploração da mercadoria força de trabalho [ da mercadoria ser humana]. (…) Ser saudável significa ser explorável.” (SPK, 2024 p. 38).

A ideologia burguesa, pode-se dizer, constitui a base da psiquiatria hegemônica (e das ciências médicas e da saúde em geral) dando a tônica não apenas nos modos de se fazer diagnóstico em Saúde Mental, como também, nos modos de atenção às pessoas em sofrimento psíquico. Não à toa é o nome de Kraepelin que é tratado como “pai da psiquiatria”, um eugenista convicto, que junto com Wundt compôs um movimento de resistência ao processo democrático que se instaurava na Alemanha naquela época, pois acreditava que um líder escolhido pela maioria das população não seria alguém preparado para governar, pois os governantes aristocráticos haviam herdado essa capacidade de seus antepassados, herdando as melhores características de forma hereditária. 

A ascensão de certas classes a posições confortáveis e importantes na vida deve ter dependido desde o início de que elas provassem sua coragem na luta por existência (Dasein Kampf). A luta garantiu-lhes uma posição superior em seu ambiente. Além disso, pode-se supor que seus traços positivos foram herdados e, portanto, que as gerações posteriores de uma antiga linhagem familiar que defendeu sua posição ao longo dos séculos manteve, até certo ponto, aquelas características que uma vez facilitaram sua existência Por outro lado, parece óbvio que os ancestrais daqueles pertencentes às classes mais baixas não possuíam, em geral, características que os equipassem para realizações extraordinárias e, portanto, não poderiam transmitir tais características.  (Kraepelin, 1919 p. 181 apud Engstrom, 1991 p. 150). 

Kraepelin entendia que a “degeneração”, a tendência à criminalidade e ao desenvolvimento de sofrimentos psíquicos era uma questão hereditária (a genética naquele momento era uma ciência incipiente). 

A ciência, é importante lembrar, não é descolada de ideologias e de seu contexto histórico, político, social… a ideologia impregnada nas formulações diagnósticas de Kraepelin, a importação dessas ideias ao modelos diagnósticos atuais cumprem funções sociais que, de forma hegemônica, tem bases eugênicas e, portanto, higienistas. 

Hobsbawm, um dos maiores historiadores de último século, anuncia as validações dos ideais eugênicos pela via do que hoje, como ciência mais desenvolvida do que na época de Kraepelin, denomina-se genética:  

O que tornou a eugenia “científica” foi justamente o surgimento da genética após 1900, que parecia sugerir a exclusão total das influências ambientais na hereditariedade e a determinação, por um único gene, da maioria ou de todas as características; isto é, que o cruzamento seletivo dos seres humanos segundo o processo mendeliano era possível. (Hobsbawm, 2012 p. nd. - Versão para Apple Books - gritos nossos). 

Contudo, no campo de estudos da genética mesmo, é sabido e largamente estudado a interação do organismo com o meio e como isso afeta os fenótipos, o que chamamos “epigenética”, aquilo que está sobre a genética. Para nós, seres humanos/os o meio social é a sociabilidade nos é imprescindível, somos seres sociais em essência, nosso organismo biológico é dotado de plasticidade (como a maioria dos organismos multicelulares) e nosso processo saúde e doença deve ser entendido a partir das determinações sociais-históricas e não apenas biológicas. 

Isso quer dizer que, nossa herança genética, como afirmam Lewins e Levontin (1985), dá conta de características básicas como cor dos olhos, cabelos, estatura, etc. Mas as formas mais complexas de nosso comportamento, desenvolvimento, nossa consciência são produtos de nossas interações sociais, de nossa sociabilidade, ao longo da história de nossa vida. Então, é preciso entender que a nossa constituição enquanto seres humanas/os perpassa pelo contexto social, histórico e, consequentemente, político. Não somos indivíduos autogeridos, somos seres que dependemos do chão da história, expresso na sociabilidade constituída coletivamente/socialmente. 

Como Marx (2011) já dizia: “Os homens [e mulheres] fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado.” (p. Nd. Versão para kindle).

O que temos diante de nós agora, os meios pelos quais deveremos conduzir nossa história, ante o explícito avanço do neoliberalismo e as expressões ultraconservadoras diante da iminente falência do modelo capitalista, será nossa luta e resistência nas trincheiras da luta antimanicomial, para não deixar que nossa política (e soberania nacional) sejam assoladas. O que não se construirá apenas a partir de nossa pauta, mas de organização coletiva.

A falência do capital, no sentido da impossibilidade de sua manutenção da forma como está, se expressará, para quem ainda não pôde construir seu bunker, pela barbárie, como já anunciavam alguns intelectuais franceses do grupo Socialismo ou Barbárie.

Eis o que se apresenta diante de nós: a barbárie! Que instrumentalizando as pautas da psiquiatria e da criminalidade (e a associação entre as duas), retoma seus fundamentos eugênicos sobre os quais se ergueu. Essa realidade já se expressa em na nossa política nacional, com a aprovação pela câmara dos deputados federais do PL 551/2024, inserido no PL 1637/2024 que altera a lei 10.216, e agora segue para o senado com grandes chances de aprovação, se não nos mobilizarmos. 

E é aqui que a fala do dono da Meta nos implica como militantes da luta antimanicomial. Ao informar a retirada do filtro que associa questões LGBTQIA+ às questões de saúde mental, ele remonta aos princípios conservadores kraepelinianos.  

Qual o interesse nisso? 

Podemos citar dois interesses que de pronto nos levam às tentativas de manutenção e expansão do capital, baseado no aumento da exploração-opressão da “mais-valia”. Sim, isso mesmo, eis o fim posto desse sistema: manter e aumentar o lucro dos super ricos, enquanto esmagam até o suco, doutrinam, dopam, dominam e exploram a classe trabalhadora.

Na selva do capital, a arma ideológica do processo de exploração, compõe com as expressões das opressões uma unidade poderosa, para diminuir, discriminar e patologizar todas aquelas formas de comportamentos que fogem ao padrão do ethos burguês (do homem, branco, cis, patriarcal, hétero e dono dos meios de produção). O que serve para justificar uma política de maior expropriação das forças de trabalho quanto mais as pessoas se distanciam desse padrão. 

O esgarçamento dos limites do capitalismo cada vez mais evidentes, convoca os super ricos a se reposicionarem também em pautas ideológicas, assistiremos as grandes marcas revogarem suas políticas de diversidade e se alinharem ao processo ultra-conservador que se desenha diante dos nossos olhos. Mas, a discriminação “do diferente”, a eliminação da diversidade humana e a redução ideológica que classifica como “humano” apenas aqueles que mais se aproximam “do padrão”, ao passo que desqualifica quem é diferente, encontra na psicopatologizacão dessa diferença está diretamente associada ao lucro, neste caso da indústria farmacêutica.

Para e ter noção da importância desse setor na economia mundial, o mercado dos medicamentos responde hoje pelo terceiro maior setor da economia norte-americana, correspondente à US$ 840 bilhões de receita (R$4,2 trilhões), sendo responsável pela maior parte da produção de medicamento no mundo:40% (De acordo com dados da ABRADILAN, 2024). Nessa esteira, os psicofármacos se tornam “queridinhos” das indústria e dos investimentos estatais,  a importância do desenvolvimento de pesquisas sobre o cérebro e produtos que tenham como alvo o aumento do rendimento intelectual, emocional, enfim, da produtividade da classe trabalhadora, foi comparado por Barack Obama (2012) à corrida espacial. Com duas grandes potências econômicas nessa corrida: União Europeia e Estados Unidos. 

Assim, não deve nos restar dúvidas sobre os interesses econômicos no processo de patologização da vida. E, como todo interesse econômico, este não está direcionado para o processo de cuidado de seres humanas e seres humanos, mas sim, em aumentar sua capacidade  e necessidade de consumir e manter a máquina do lucro funcionando. O interesse, não nos enganemos, não é relacionado ao desenvolvimento humano, mas sim voltado para o desenvolvimento dos lucros e manutenção do capital. 

As redes sociais, nesse ponto, têm assumido papel importante no impulsionamento da ind. farmacêutica, capturando os princípios dos movimentos identitários revolucionários, promovendo, no campo da saúde mental, um processo de identitarismo com os diagnósticos psicopatológicos. Substituindo, assim, a luta histórica de usuárias e usuários de não serem reduzidas aos seus diagnósticos, para  a de sujeitos que se apresentam a partir de seu diagnóstico. Desta forma, onde havia uma condição passível de superação, agora se apresenta como uma identidade (como é o caso do TDAH, por exemplo), o que engendra a cronificação dos sofrimentos psíquicos e quase que “naturalmente” justifica a medicalização das condições socialmente fabricadas. Medicalização está que ganha eco em campanhas de entidades que buscan defender a lógica hegemônica, financiada pelas farmacéuticas, como as campanhas "Janeiro Branco" e "Setembro Amarelo" que propagam como ideal de saúde mental o estilo de vida burguês, e medicam "tratam" quem não consegue atingi-lo.

A conformação de identidades psicopatológicas ratificam as noções biomédicas, apoiadas pela hereditariedade com a autoridade do discurso médico da genética; reduz a complexidade do ser social ao biológico e incute um discurso fatalista e da impossibilidade de superação de determinadas condições. Ainda que diversos estudos, desde a década de 1930 (com a crítica de Vigotski (1931/2006)  ao diagnóstico, por exemplo), demonstram o limite do biologicismo para se apreender os sofrimentos psíquicos. Estes estudos, cabe ressaltar, passam a ser invalidados, mesmo invisibilizados. 

O conservadorismo avança a passos largos e tomará conta de todos os aspectos de nossas vidas, inclusive no campo da saúde, com auxílio das redes sociais, a manipulação das informações tomará contornos cada vez mais violentos, hostis e discriminatórios a todas aquelas e aqueles que não compõem “o padrão”. Serão tempos duros, que nos exigirá resistência e ainda mais força para lutar.

A defesa dos princípios antimanicomiais, despatologizantes e desmedicalizante exigirá de nós ainda mais capacidade de mobilização, para manter acesa a chama da luta pelo reconhecimento de nossa humanidade para além de nossos diagnósticos, para que sejamos pessoas de ativo enfrentamento ao contexto ideológico, para que não sejamos medicalizadas, exploradas e oprimidas. Urge, como Paulo Amarante e outros/as  intelectuais tem apontado, de retomarmos de forma retumbante os princípios da luta. Uma sociedade livre dos manicômios é também uma sociedade que nos liberte da ,exploração-opressão de seres humanos/as por outros/as seres humanos/as. o Enfrentamento ( com “ E” maiúsculo) ao modelo eugenista biomédico é agora: Trabalhadoras, trabalhadores, usuárias, usuários e familiares da Saúde Mental uni-vos! 

Referências Bibliográficas  

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FURTADO, V.C. (2024) Determinação Social da Esquizofrenia: Fundamentos Ontológicos para o Desvendamento do Desenvolvimento da Esquizofrenia. (Tese de Doutorado) UFRN. 

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