Um dos maiores desafios de gestores públicos circunstanciais é não sucumbir aos apelos e vaidades dos ambientes institucionais, aderindo de forma acrítica à lógica administrativa-empresarial. Nessa condição passageira, muitos atuam contra a própria história e categoria profissional. Assim, seduzidos pelas ritualidades e poderes associados ao cargo, muitos parecem abdicar da capacidade crítica no mesmo instante em que assinam o documento de posse.
Amparados nos recorrentes apelos ao chamado “bom senso” (seja lá o que isso represente para quem diz, ouve ou e/sofre as consequências) e nas urgências sistêmicas de toda ordem, o desrespeito às regras do jogo democrático institucional vai assumindo a forma do cotidiano.
Nos últimos tempos, tem se consolidado na UFMT um conjunto de práticas condenáveis que esgarçam garantias institucionais e democráticas que compõem nossa história, assim como nossos instrumentos formais de convivência e deliberação coletiva. E, na medida em que as justificativas e a tolerância para com os atropelos às normas vão tornando-se recorrentes, a exceção vai transformando-se em nova regra (não escrita) do jogo.
A gestão do Prof. Dr. Evandro Soares da Silva, iniciada em outubro/2020, deita raízes nas experiências institucionais tanto como vice-reitor quanto como reitor frente à renúncia da Profa. Dra. Myriam Serra. Apresentando-se como defensor da Universidade Pública, reivindicando sua passagem pelo sindicato docente, e colocando-se como interlocutor afeito ao diálogo e à negociação, o atual Reitor tem, a cada dia, se afastado mais de qualquer identificação nesse sentido.
Não bastasse ter sido omisso com relação aos atropelos regimentais dos Conselhos Superiores pela ex-Reitora, passou a desenvolver um modus operandi particular, em perfeita sintonia não apenas em relação à sua antecessora, mas, também, ao primeiro mandatário nacional.
Eleito em um processo marcado pelo desrespeito à tradição democrática da UFMT, cujo amparo legal se fez à revelia da legitimidade eleitoral paritária, assim como pela condução não-democrática da reunião que definiu o processo eleitoral, conseguiu retirar das urnas o manto legal, mas do colégio eleitoral não obteve a legitimidade necessária.
Conivente com a truculência da mesa diretiva que aprovou o desprezo às práticas democráticas da UFMT e obsequioso com os recursos tecnológicos utilizados para impedir a livre manifestação dos críticos, o resultado da eleição representou mais do que o êxito nas urnas: representou a continuidade das práticas pouco afeitas às exigências democráticas, as quais demandam não apenas respeito à temporalidade necessária ao debate e à contribuição do coletivo, mas, também, a observação rigorosa das normas e procedimentos que amparam os processos democráticos.
Cada vez mais próximo de interlocutores defensores da privatização da universidade pública e mais distante daqueles que a defendem, o atual Reitor aproximou-se de parlamentares comprometidos com o perecimento da Universidade, com a precarização das relações de trabalho, com o desmonte do serviço público, com a defesa do agronegócio, com a Escola Sem Partido e com a perseguição política àqueles que ‘ousam’ pensar diferente. Destacam-se entre esses interlocutores, os deputados federais José Medeiros (PODEMOS/MT) e Nelson Barbudo (PL/MT), e deputados estaduais Janaina Riva (MDB/MT) e Gilberto Cattani (ex-PSL).
Se aos olhos de muitos (e da própria Gestão) essa interlocução demonstra um movimento salutar para obter recursos, ela desmonta quando observados os ensinamentos mais elementares que conformam as relações de poder: ao não firmar uma interlocução democrática e consistente com a comunidade acadêmica, a Gestão torna-se frágil e vulnerável para fazer a defesa da Universidade, do Serviço Público, da Ciência e do Conhecimento.
Ao dar continuidade e aprofundar o distanciamento para com a comunidade acadêmica, objetivamente, ao mesmo tempo em que fortalece os detratores da Universidade Pública, dos Servidores Públicos, do Conhecimento e da Ciência, vulnerabiliza técnicos, docentes e estudantes. E isso é uma escolha política de primeira ordem.
Aliás, como ensinava Maquiavel, o primeiro ato de sabedoria de um governante é saber escolher seus conselheiros político-administrativos. Como a escolha (consciente ou inconsciente) decorre de identidade ideológica/programática entre quem convida e quem é convidado, a atual Gestão demonstrou sua identidade desde o berço eleitoral. E, consequentemente, daí organizou seu staff. Não por acaso, a Vice-Reitora, Profa. Dra. Rosaline Rocha Lunardi, já tinha demonstrado afinidade com determinadas práticas, quando, em 2018, atuou como relatora de processo demandando providências em relação aos atropelos regimentais sob a Gestão de Myrian Serra. Na ocasião, a então Conselheira ‘ressignificou’ os fatos e atenuou suas consequências.
Na Gestão, a vice-reitora tem sido aquela que, a despeito do Contrato de Comodato assinado em 1991, no qual foi estabelecida a cessão do espaço até 2041, insiste em exigir a cobrança (retroativa e a preço de mercado) de aluguel da sede do Sindicato Docente. Vê-se, desta forma, uma comunhão ativa entre vários membros da Administração Superior. Especialmente quando se observa as ações dentro dos Conselhos Superiores, nos quais pró-reitores têm direito à voz e voto.
Assim tem sido em várias reuniões do Consepe e do Consuni, nas quais o atropelo tem sido a norma. Dentre os exemplos mais recentes, a tentativa de retirar do Conselho competente (Consepe) - de forma arbitrária e sem base legal - a discussão e deliberação sobre os encargos docentes (Resolução 158), passando-a para o Consuni. Irredutíveis e impermeáveis a qualquer apelo advindo da comunidade acadêmica, somente o recurso judicial reestabeleceu o respeito à norma legal.
Recentemente, na mesma toada, ante a aprovação do retorno às aulas presenciais, o Consuni deliberou pela exigência da apresentação do Comprovante Vacinal para toda a comunidade acadêmica. Derrotados dentro do Consuni, alguns docentes decidiram ingressar com pedido de liminar para suspender a exigência, reivindicando respeito aos direitos individuais. Beneficiados por liminar da Justiça Federal, mas em contradição com manifestação do STF sobre o assunto, inclusive quanto à autonomia universitária assegurada pela Constituição Federal, a PROEG encaminhou instruções para as unidades acadêmicas, desobrigando a exigência vacinal.
Mais uma vez, a decisão sobre questões até então pacíficas dentro da Instituição precisam ser resolvidas externamente. Lamentavelmente, expande-se dentro da UFMT, com a complacência e/ou protagonismo da Gestão, a “ressignificação” esvaziada da ciência, a supremacia dos direitos individuais sobre os direitos coletivos, a flexibilização das normas e o desprezo pelas exigências democráticas.
Assim, uma pseudo contradição entre o discurso e a prática por parte do Reitor não encontra respaldo em fatos, posto que seu discurso tem sido, sistematicamente, desidratado, para dar vigor às práticas mercadológicas que embaralham público e privado, como é o caso da inclusão do empreendedorismo como alternativa inovadora e socialmente resolutiva, assim como da abertura institucional a bancos e sistemas empresariais para ministrar palestras e cursos.
Não por acaso, a programação da Semana de Recepção aos Calouros da UFMT 2021/2 é um espelho dessa Gestão: dois anos de pandemia, mais de 662 mil mortos pela Covid no Brasil (dentre eles, muitos colegas, estudantes e técnicos), precarização do ensino, cortes orçamentários, adoecimento laboral, desemprego, inflação, exclusão social, ataques à ciência e negacionismo, crescimento da intolerância política e do neofascismo societal, eleições 2022, guerra na Europa etc. e a UFMT recepciona calouros e demais membros da comunidade acadêmica com uma programação, no mínimo, despropositada. Além da ausência absoluta de qualquer discussão relevante sobre o que se passa no Brasil e no mundo, especialmente em um período pós-pandêmico, oferece oficinas de “educação financeira”, em parceria com o SICRED.
De acordo com a Programação da UFMT deduz-se que o problema estudantil em particular, e dos trabalhadores em geral, é falta de educação financeira, e não a falta de bolsas compatíveis e de salários dignos. Aliás, nesse aspecto, faltou convidar a secretária estadual de Assistência Social e Cidadania de Mato Grosso, Rosamaria Carvalho, para palestrar, já que para ela, a população pobre precisa aprender a economizar melhor o auxílio de R$ 200,00.
Enfim, na prática, trata-se da renúncia da Universidade em cumprir com o fundamento das suas obrigações de ofício, que é estimular o contraditório, problematizar, refletir, analisar, provocar, inquietar. Consequentemente, não somente renuncia à sua responsabilidade, mas apresenta-se como apêndice institucional para atores mercantis venderem seus produtos.
Para finalizar é necessário, ainda, registrar que todo esse processo de desconstrução interna da UFMT é feito em sintonia com ações externas. Seja com a articulação de membros da Universidade com interlocutores externos mobilizados para seu desmonte - a exemplo de ações conjugadas entre docentes e um ex-ministro da Educação devotado em desqualificar professores e a Universidade pública -, seja pela eleição de determinados interlocutores anti-universidade pela atual Gestão.
Nessa caminhada, a expansão em direção ao interior do estado sofre dois movimentos desiguais e combinados: de um lado, age para criar a Universidade do Nortão, à revelia de qualquer discussão qualificada com a comunidade acadêmica quanto aos impactos, recursos e benefícios; de outro, promove uma espécie de rateio da Universidade, com a participação ativa do Reitor, para criação de novos campi em Lucas do Rio Verde e Nova Mutum.
Sem qualquer discussão com docentes, técnicos e estudantes, a Gestão move-se à revelia da comunidade acadêmica. E o faz, inclusive, sem qualquer consideração efetiva quanto aos cortes orçamentários e a precariedade dos campi. Nesse particular, cabe à Gestão informar como está o campus de Várzea Grande, cuja criação remonta a 2015 e, até hoje, estudantes e professores têm aulas no campus de Cuiabá.
À Gestão cabe recuperar a máxima política que ensina que o poder é relacional, e que a legitimidade não é assegurada pela legalidade. Ela precisa ser conquistada. Para isso, é preciso que essa Gestão assuma o papel que lhe cabe à frente de uma Universidade Pública, que goza de autonomia universitária, e que tem como base seus pares, estudantes e servidores públicos. Afinal, antes de serem gestores temporários, são professores e, como tais, servidores públicos!
Do nosso lado, seguiremos lutando para que a UFMT seja pública, democrática, laica, gratuita, de qualidade e socialmente comprometida!
ADUFMAT