Terça, 12 Dezembro 2023 15:10

MILITANTE DOS SONHOS - Prof. José Domingues de Godoi Filho

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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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O texto, abaixo e em anexo, de autoria da ex-jornalista do Andes-SN e grande defensora dos povos indígenas. É uma homenagem a um dos mais aguerridos defensores dos povos indígenas, que faleceu no dia 07/12/2023 – Oswaldo Cid Nunes da Cunha, o “Oswaldão”. Lamentavelmente, a terra de Rondon ignora um dos mais brilhantes indigenista brasileiro nascido em Mato Grosso. A UFMT também tem que agradecer ao Oswaldão pelo apoio que deu à pesquisa científica e acadêmica, abrindo as portas de sua fazenda em Poconé para estudos sobre o Pantanal. Poucas semanas antes ele concedeu uma entrevista para a Adufmat que também merece ser divulgada. Uma perda irreparável e uma lacuna que dificilmente será preenchida. 

MILITANTE DOS SONHOS

Memélia Moreira     

 Há dias que, mesmo luminosos, são sombrios e mesmo num jardim com flores de colorido diverso, nada brilha porque o coração se recolhe na saudade.

Foi o que aconteceu hoje, Oswaldão. Antes mesmo do café da manhã a notícia da tua morte me jogou num redemoinho de lembranças. Lembranças das lutas, das gargalhadas, do whisky de qualidade duvidosa na beira de estradas que só trafegamos porque sempre apelamos para a licença poética de nossos viveres.

Histórias cruas e verdadeiras num mundo de realidades improváveis que são as terras dessa Amazônia que tanto amamos e que nos forjou e nos fez viver intensamente.

E então, logo depois da notícia, nossa lânguida amiga -preciso dizer de quem falo? - com aquela doce languidez ela me disse que vocês liam Bukowski juntos e, só por essa informação, me atrevi a escrever. Porque escrever sobre tua morte é exercício dificultoso, sofrido. 

 “Você tem de morrer algumas vezes antes que você possa realmente viver.”

 Tu reconheces a frase, Oswaldão. É de Bukowski, Ele escreveu muitas vezes sobre a morte.

Quantas vezes tivestes que morrer para aprender a viver? Tu que cruzastes o mundo na corda bamba dos conflitos impostos pela ambição, que correstes pela Amazônia para salvar nações inteiras, que exercias a Medicina não pela glória, não para ter conta polpuda no banco. Não pela vaidade de pregar no portão de casa uma placa em bronze, em letras esmaltadas, o título de “Dr. Oswaldo Cid da Cunha”. Não. Tu te dedicaste à profissão como se fosses um missionário. Não para salvar almas, mas para salvar vidas e dignidade dos povos com os quais convivestes. E foram muitos. Foram tantos. Tua Amazônia se estendeu bem além das fronteiras do nosso território. Correntes para a Nicarágua para levar socorro porque tu estavas sempre pronto a cumprir tua missão de defesa da soberania dos povos. E foram outros mundos porque teu amor era universal.

E, nesse momento, me lembro de quando nos encontramos no Xingu. O monomotor tinha acabado de pousar, e eu ainda estava tentando superar meu medo de voar quando ouvi gargalhadas em diversas línguas. Estavas rodeado por índios de diferentes nações, contando histórias. Passei devagarinho e sorrindo por aquela roda para não interromper um momento de alegria. Porque tua luta era alegre, sem ranços.

Outras lembranças que me chegam e essas se repetiram muitas vezes é a de quando tu e Xará - só para te lembrar que hoje faz 26 anos da morte dessa pessoa tão imprescindível quanto tu és, meu melhor amigo desde meus 14 anos- chegavam em minha casa, madrugada alta, com algumas latinhas de cerveja na mão perguntando se àquela hora podia sair um talharim ou mesmo um spaghetti. E íamos para a cozinha. Eu só não permitia que tomassem cerveja com qualquer massa. Sem protestos, abríamos uma garrafa de vinho e a conversa entrava pela manhã.

Como sinto falta desses momentos, em que conspirávamos, sonhávamos com a revolução que libertaria os povos e vocês iam dormir.

Ah, Oswaldão, dr. Oswaldo Cid da Cunha, tu fostes um militante dos sonhos. Talvez por isso gostavas de Bukowski que um dia escreveu “o que é terrível não é a morte, mas as vidas que as pessoas levam até à morte”.

E a vida que levastes até à morte foi construída em sonhos, em amores universais e em lutas pela emancipação de todos aqueles que cruzaram teu caminho.

Tenho certeza que, a essa hora, teu espírito já cruzou o Atlântico e o Mediterrâneo e estás ajudando teus colegas de profissão numa pequenina faixa de terra chamada Gaza, onde um povo, o povo palestino, precisa de todos nós.

Vai amigo, vai cruzar os mares da eternidade. 

Memélia Moreira, jornalista, jardineira, estudante de húngaro. Brasileira com nacionalidade tibetana. Ex-jornalista do Andes-SN 

Obrigado.

Prof. Domingues.

Ler 177 vezes Última modificação em Terça, 12 Dezembro 2023 15:13