Quando os trabalhadores perderem a paciência
Não terá governo, nem direito sem justiça
Nem juízes, nem doutores em sapiência
Nem padres, nem excelências.
Mauro Iasi
Não é “conversa de corredor”: um conjunto de universidades públicas federais completou 120 dias em greve essa semana no país. Movimento, resultado de um processo democrático de consulta às bases, mediante assembleias realizadas em todas as sessões sindicais. Porque parece, na maioria das vezes, pelos “comentários de corredores”, que essa greve está literalmente comandada por meia dúzia de professores e professoras que não têm vocação para sacerdócio e que não sabem fazer pesquisa, por isso, fazem greve; e que só acontece na UFMT! Creio que a grande maioria precisa acreditar nisso para justificar sua omissão ou convicção em não fazer greve.
Aproveito a ocasião para registrar aqui alguns sentimentos e minhas convicções em participar de movimentos grevistas há quase 30 anos nesta universidade. Espero que não pareça discurso piegas ou arrogante, mas sinto necessidade de mais uma vez registrá-las, ainda que já tenha feito por diversas vezes em plenárias.
A mais importante, penso, trago da minha formação política: é a clareza que vivemos numa sociedade de contradições, de luta de classes e de que pertenço à classe trabalhadora. Isso eu aprendi ainda com o Partido dos Trabalhadores, quando defendia um projeto classista “rumo ao socialismo” ou o chamado Projeto Democrático e Popular, tantas vezes alardeado pelos timoneiros da razão instrumental. Se o PT me ensinou isso errado, problema dele que para mim perdeu a legitimidade enquanto partido de esquerda.
O professor Mauro Iasi avalia que o governo do PT tem aberto mão até mesmo de uma alternativa democrática e popular que com todas as suas limitações, poderia tensionar a ordem capitalista, aprofundando as lutas de classes e criando as condições para uma ruptura revolucionária. Contraditoriamente, a alternativa adotada desarma a classe, desmobilizando as suas organizações e fortalecendo a burguesia. É o controle e o apassivamento da classe trabalhadora; partido que se metamorfoseou de democracia de massas para democracia de cooptação. Eis sua tese. Eis o PT. (Iasi, 2006).
Para não ficar apenas no argumento de um professor comunista que, portanto, gosta de fazer greve, vou lançar mão da referencia inquestionável de um dos mais importantes ideólogos do PT, o professor Carlos Nelson Coutinho. Afirma ele: “Infelizmente, fui depois obrigado a constatar que o governo Lula, iniciado em 2003, longe de representar uma tal alternativa (refere-se à democracia de massas), tornou-se uma nova e radicalizada expressão do neoliberalismo; e o PT, em vez de se afirmar como o principal instrumento desta nova hegemonia, abandonou inteiramente seu velho programa e deixou-se envolver pelos piores vícios da politica brasileira”. É do conhecimento de grande parte dos intelectuais a defesa do professor Carlos Nelson da tão propalada democracia como valor universal e isso pressupunha para ele a presença de um sindicalismo forte e combativo. (Coutinho, 2006, p.53-54).
Tenho outra convicção que trago da minha formação acadêmica como assistente social e professora de Serviço Social (com mestrado e doutorado na área), cujo projeto ético-político é claramente comprometido com outra sociabilidade que imprima uma nova direção social anticapitalista: “esse projeto tem em seu núcleo o reconhecimento da liberdade como valor ético central – a liberdade concebida historicamente, como possibilidade de escolher entre alternativas concretas; daí um compromisso com a autonomia, a emancipação dos indivíduos sociais. Consequentemente, o projeto profissional vincula-se a um projeto societário que propõe a construção de uma nova ordem social, sem dominação e/ou exploração de classe, etnia e gênero” (NETTO, 1999). Nesse projeto eu tenho construído as minhas bases profissionais e políticas.
Também faço greve porque minha trajetória na UFMT foi de muita luta e conquista. Para entrar aqui tive que passar em 1º lugar, ou seja, me submeter a várias provas. Mas as conquistas se somam: uma carreira de 30 anos com mestrado e doutorado públicos, meus livros, meus (três) filhos/as formados nesta instituição. Sem contar no plano afetivo, os/as companheiros/as e companheiros de departamentos que convivi e a legião de alunos e alunas que estudam meu livro por esse país, quiçá no continente.
Quero dizer ainda que não faço greve por aumento salarial exclusivamente, pois 5% não muda o poder de compra do meu salário. Disse em assembleia: “entrei pobre e saio pobre da universidade”.
Retomando as “conversa de corredores”, soube de comentário provavelmente capitaneado por alguém sem leitura sociológica ou análise de conjuntura, dizendo que eu estava passando “atestado de pobreza”. Ora, nós professores/as que vivemos somente dos proventos da universidade, não ganhamos o que merecemos; nós formamos cotidianamente um conjunto de profissionais de todas as áreas do conhecimento desse país, produzimos pesquisa, realizamos projetos de extensão e sequer temos o reconhecimento de um delegado de polícia, porque esse provavelmente é mais funcional ao Estado penal.
Para quem não conhece os principais eixos de nossa luta são: defesa do caráter público da universidade, condições de trabalho, garantia de autonomia, reestruturação da carreira e valorização salarial de ativos e aposentados. Lutamos, sim, principalmente, pelo que resta de uma instituição pública que vem sendo sucateada desde a ditadura militar, para que possa servir a várias gerações de homens e mulheres que necessitarão de uma universidade pública, gratuita, com qualidade e socialmente referenciada.
Retomando o projeto da minha profissão faço uma analogia dizendo que, como é um projeto e não uma religião, nem todos/as os/as assistentes sociais necessariamente farão sua defesa ou pautarão seus valores teórico-prático e ético-político pelo mesmo. Justo por preconizar princípios como autonomia e liberdade de escolha entre alternativas concretas dirão alguns: escolhi não fazer greve. O que me assusta é quando grande número tem essa convicção. Mas, eu disse muitas vezes, também em plenária, que já passei da idade de fazer cobrança: cada um com suas convicções. Da minha parte, continuarei na luta!
Ivone Maria Ferreira da Silva
Professora do Departamento de Serviço Social/CHS/UFMT