Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. Jornalismo/USP; Prof. Literatura/UFMT
Em tempos da ditadura do consenso, ler um texto corajoso causa êxtase a quem o procura sempre. De antemão, informo: o título acima não saiu de minha mente, infelizmente.
Na leitura que fiz da edição de domingo (14/06) da Folha de São Paulo, vi algumas excelentes reflexões ali.
A primeira encontra-se já no editorial daquela edição. Sob o título “Submissão”, cunhado do “...polêmico livro de Michel Houellebecq...”, o editor da Folha afirma essencialmente que “O legítimo debate entre progressistas e conservadores não combina com o atual ritmo da Câmara Federal (e seguido pelo Senado), movida pela intimidação ideológica”.
A “intimidação ideológica” de que trata o editorial, na verdade, toca o dedo em uma ferida exposta, que já tem tudo para se transformar em câncer social.
Partindo do pressuposto de que, no Brasil, há “Um espírito crescente de fundamentalismo (religioso)...”, o editor afirma que, “como nunca, o Congresso Nacional parece empenhado a refleti-lo, intensificá-lo e instrumentalizá-lo com fins demagógicos e de promoção pessoal”.
Em termos concretos, o editor aponta que tem sido “rotineiro, nos debates do Congresso, que este ou aquele parlamentar invoque razões bíblicas para decisões que cumpre tratar com racionalidade e informação”.
Para além de que tais “razões bíblicas... pouco têm a contribuir para a coexistência entre indivíduos numa sociedade civilizada e plural”, esconde-se o pior de tudo: um ranço conservador de doer na alma, pois esse tipo de conservadorismo é pouco inteligente e muito desumano.
No bojo dessa parca inteligência e dessa farta desumanidade, vemos parlamentares – com o apoio da maioria de nosso povo – defender, dentre outras, a pena de morte e a redução da maioridade penal.
Para o editor da Folha, “Nos tempos de Eduardo Cunha, mais do que nunca a bancada evangélica se associa à bancada da bala para impor um modelo de sociedade mais repressivo, mais intolerante, mais preconceituoso do que tem sido a tradição constitucional brasileira”. Perfeita observação!
Na página seguinte desse editorial, li o belíssimo artigo “Justiça ou vingança?”, assinado pela psicanalista Maria Rita Kehl, que essencialmente se propõe a responder a seguinte questão: “Alguém realmente acredita que reduzir a maioridade penal há de amenizar a violência social de que somos todos, sem exceção, vítimas?”.
No meio de seu artigo, Kehl nos lembra de que os legisladores que defendem a redução da maioridade “...estão pensando em colocar na cadeia... somente ‘os filhos dos outros”.
Nesse sentido, a autora indaga: “Quem acredita que o filho de um deputado, evangélico ou não, homofóbico ou não, será julgado e encarcerado aos 16 anos por ter queimado um índio adormecido, espancado prostitutas ou fugido depois de atropelar e matar um ciclista?”.
A redução da maioridade tem alvo certo: preferencialmente, jovens pobres e/ou negros; ou seja, os filhos da mesma população que há 500 foram se amontoando nos morros e periferias de nossas cidades; que há 500 anos encontram-se excluídos do básico para uma vida digna, acima de tudo, da educação e da cultura de qualidade.
Conhecedores desses cenários de exclusão, esparramados pelo país afora, não podemos permitir, conforme se pede no editorial da Folha, que prevaleça a submissão aos inquisidores da irmandade evangélica e aos demagogos da bala e da tortura, tão atuantes no Congresso.
Por fim, não podemos permitir essa submissão, pois a atuação desses congressistas ditos religiosos, na essência, atira contra a democracia.