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O Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
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Texto enviado pelo Prof. Aldi Nestor de Souza*
17:00h. Quarta Feira, 16 de dezembro de 2020. Várzea Grande. Mato Grosso. Os assistentes e as assistentes sociais cerram a porta do ginásio de esportes, após um dia de cadastramento e vão pras suas casas. Do lado de dentro do ginásio, a mobília de mais de mil famílias, despejadas do residencial Colinas Douradas, de propriedade da caixa econômica, na manhã daquele dia. Do lado de fora, as famílias, alguns colchões espalhados pelo chão, uma barraquinha de plástico.
De pouco valeu a pergunta, feita ao funcionário da caixa, cuidadoso e conferindo cada colchonete, cada saco de roupas velhas, cada armário, cada gaveta espalhados no piso do ginásio, e ao pessoal da assistência social, em suas mesinhas ornadas de questionários:
o que vai ser feito com as pessoas que estão lá fora?
Pelo funcionário da caixa foi dada a seguinte resposta: A Caixa econômica, conforme decisão judicial, é responsável pela mobília. Ela ficará aqui no ginásio por um período de trinta dias. Sobre as pessoas, é o poder público que tem que se responsabilizar.
Certo, mas e se começar essa chuva que está a caminho, elas vão poder entrar e se proteger aqui na quadra?
Isso quem resolve é a prefeitura.
Pelos assistentes e pelas assistentes sociais foi dada a seguinte resposta: a prefeitura tem os abrigos, elas podem ir pra lá. Estamos fazendo um cadastro via CRASS, que consiste de saber o antigo endereço delas, de algum parente, para encaminhá-las. “porque com certeza elas tinham endereço, elas moravam em algum lugar antes da invasão, né?”, finalizou uma assistente social.
Lá fora, homens, mulheres e crianças, muitos ainda sem almoço naquele dia, olhar de desânimo, de cansaço, de tristeza, de revolta, relatavam o ocorrido, a violência da polícia e afirmavam precisar dormir ali na calçada por não ter pra onde ir. “sim, é claro que eu tenho parentes. Morávamos 12 pessoas, duas famílias, numa peça de dois cômodos”. “eu morava de aluguel, perdi o emprego na pandemia, fiquei sem ter como pagar e me juntei ao pessoal para ocupar o prédio desocupado da caixa”. “ eles retiraram uma mulher com covid lá do prédio, de nada adiantou ela mostrar os exames positivos, os remédios, a dor, a fragilidade. A polícia arrancou ela de lá .”
Uma assistente social ainda conseguiu dizer o seguinte: “mas eles tem até carro, apontando para uma saveiro, anos 90, estacionada perto”. Olha, respondi: um deles tem uma caminhonete novinha, de dois anos de uso, mas com mil famílias despejadas, por que te chamou a atenção apenas a pessoa da saveiro? Por que você não escolhe aquela senhora grávida, com três crianças pequenas enroscadas em suas pernas, uma das quais inclusive passou mal hoje devido a ter ingerido os biscoitos vencidos que a polícia deu na hora da reintegração de posse? Ou porque você não escolhe aquele cadeirante, que levou spray de pimenta na cara e teve que ser socorrido e retirado com urgência da frente do trator que avançava? Ou porque você não escolhe pensar que esse despejo se deu em plena pandemia, jogando na rua cerca de 6 mil pessoas? Ou por que você não escolhe as centenas que não tem pra onde ir, que não são daqui, não tem parentes, não tem carro, casa, nada? a assistente social deu de ombros.
A polícia doou biscoitos, com data de vencimento 06/11/2020, conforme os pacotes exibidos por vários moradores. As crianças comeram, algumas caíram em vômitos. Não é fácil entender a doação de biscoitos na hora de uma reintegração de posse. Menos ainda, de biscoitos vencidos. É como se a maldade e a indiferença, de mãos dadas, estivessem de conluio, prontas e dispostas à demolição.
Um homem disse: ” vou dormir aqui, amanhã de manhã vou pro meu serviço. Depois, não sei. “
Foi preciso calma pra ver a segurança e a tranquilidade com que o homem da Caixa econômica falava do cumprimento da lei, do que cabia à Caixa, de os moradores terem invadido uma propriedade privada, de a Caixa não ter nada a ver com isso, de que a lei é pra ser cumprida, de que a Caixa cuidaria dos pertences dos moradores e lhes asseguraria o tempo de um Mês para a retirada e ponto final.
Foi preciso paciência para aturar os assistentes e as assistentes sociais, seguros e seguras de seus questionários, alheios e alheias para com o desespero que se espalhava no meio da tarde, na calçada, no sol, no calor, na noite que se aproximava, daquelas famílias, ali a cinco metros de distância de suas mesinhas.
É preciso multiplicar a indignação, estourar os miolos da paciência com os serviçais e operadores da justiça, técnicos decoradores dos compêndios de leis, ignorantes da vida real e das relações escaldantes que tanto mutilam nosso povo, e que, em plena pandemia, são capazes de ordenar um despejo para agradar a um banco e que jogou ainda mais no flagelo milhares de miseráveis.
Eu imaginei, o que fez todo sentido, que aquele homem da caixa, aqueles assistentes e aquelas assistentes socias, esses operadores da justiça são produto dessa sociedade absolutamente doente, formada à base da lei do valor, que gera indivíduos medonhos, sem compaixão, sem amor, sem poemas, sem lirismo, sem afeto, insensíveis à dor ao lado.
Eu imaginei a profundidade dos pedaços do poema, O operário em construção, de Vinícius de Morais, quando este diz: de fato, como podia, um operário em construção, compreender por que que um tijolo valia mais do que um pão? Ou ainda “ que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário”.
*Aldi Nestor de Souza
Departamento de Matemática-UFMT-Cuiabá
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