Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. Jornalismo/USP; Prof. Literatura/UFMT
De seu nascedouro até este instante, o Brasil produziu poucos intelectuais. Pior: vivemos um tempo de perdas dos últimos que ainda resistem ao tempo. Em breve, só teremos acadêmicos, que, por mais pós-graduados que sejam, não são necessariamente intelectuais.
Nesse cenário de indigência do intelecto, perdemos o crítico literário, sociólogo e militante Antônio Candido. É menos um a nos ajudar na difícil trajetória de pensar, sentir e viver como seres humanos.
Para quem ainda não o conhecia, o Jornal Nacional (12/05) o apresentou. No limite, a matéria de Graziela Azevedo sobre a morte de Candido foi bem produzida.
De início, foi exibida uma antiga gravação. Nela, o ex-aluno e professor da USP caminha nas imediações da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Sobre sua atividade intelectual, em certo momento, Candido dissera:
“Nós acabamos não sendo nem sociólogos nem filósofos. Nós utilizamos a sociologia e a filosofia para pensar a vida cotidiana. Eu dizia: é preciso vocês pensarem sobre os seus amores, sobre a fita de cinema que veem, sobre os acontecimentos do dia, sobre pintura. Isso que é filosofia: entender a vida”.
Dentre os que puderam participar de seu velório, destaco a fala de Marisa Lajolo, uma das referências no ensino da leitura em nosso país:
“O que me marca muito na figura de Candido é a generosidade com que ele acolhia alunos, como eu, sem nenhum background maior cultural, mas que ele acolheu com muito carinho”.
Logo depois, a repórter registra o hábito de leitura que Candido tinha, e fala de sua trajetória de vida. Durante várias décadas do século XX, diz Graziela, Candido ensinou, escreveu e lutou “nas trincheiras da democracia, da justiça social e da igualdade. Chegou ao século XXI e não gostou do que viu. Antônio Candido estava triste com o Brasil e com o mundo”.
E ele tinha motivos. Candido foi um dos intelectuais da USP que ajudaram a fundar o PT, que se opunha à ditadura. Naquele instante, aquela luta – também dos intelectuais militantes – era dever cívico dos “anjos tortos”.
Do registro da tristeza de Cândido na entrada deste século 21, sua filha Marina de Mello e Souza diz que gostaria de que o pai fosse lembrado como o símbolo do contrário do que acontece hoje:
“A morte de um homem feito Antônio Candido é um símbolo que representa, primeiro, um mundo que acabou, de esperança, de sonho, de crença na igualdade, que não aconteceu”.
Na sequência, para atenuar essa fala pesada de Marina, a repórter diz que “Candido era otimista e gentil. Foi assim com a vida, mesmo no nosso estranho século, e com a literatura brasileira, que estudou e amou”.
Correto. De nossa literatura, Candido era ciente de suas limitações. Todavia, dizia ser “é ela, não outra, que nos exprime”.Por isso, precisava ser amada.
Já com a vida, sua tristeza poderia ser resumida e compreendida apenas na própria edição do telejornal que anunciara seu falecimento. Ali, nos inteiramos dos ataques cibernéticos em quase cem países do planeta, da corrupção também no BNDES, do casal de publicitários delatando crimes de dois ex-presidentes da República, ambos petistas; do petista Antônio Palocci se preparando para delatar a corrupção de seu partido, de Trump demitindo e ameaçando ex-diretor do FBI para não fazer vazamento de gravações que comprovem seu envolvimentos com autoridades russas...
No dia anterior à sua morte, o maior líder do PT, Lula, prestara depoimento no primeiro dos cinco processos dos quais é réu.
Convenhamos. O “requiescat in pace” é mesmo muito difícil.