Terça, 05 Julho 2016 11:26

Gervásio Leite, o orador

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Benedito Pedro Dorileo 

Bem sabemos que os estetas têm dificuldade em definir o belo, todavia insistem contrapondo-se aos céticos que negam tal possibilidade. Os estudiosos veem dificuldade na conceituação, ainda que o belo seja um valor, o belo vale. Se a ânfora é azul não importa desdizê-la. É azul e a sua beleza lhe é ínsita como valor; e os valores na filosofia são estudados diferentemente – em suma, valem. Sucede com o belo o que se dava com o tempo para Santo Agostinho: todos o sentimos, porém não sabemos defini-lo. Um crepúsculo diante de todas as maravilhas será belo em todo o viver humano. Assim, quando um objeto nos provoca emoção estética mais elevada, chamamo-lo de belo.

A emoção estética supre a nossa alma e arrebata-nos para o sublime diante da música, especialmente a clássica, ou de uma pintura, ou de palavra culta e eloquente, ou de uma escultura. Ou de encantamentos outros perante o harmonioso, profundo e sábio que provoca emoção e modifica o estado interior.

Estudando a retórica desde cedo percebi sua ligação com a estética. A oratória, como arte de dizer, compõe-se de palavras harmoniosamente dispostas a imitar a nobreza do estilo; produz sons com sutil analogia com o rumor das ondas, o uivo da ventania, o murmúrio dos regatos, a cadência da música.

No Colégio Salesiano São Gonçalo, fazia o meu gosto dedicar 30 minutos por semana à noção de oratória e sentia o prazer estético dos estudantes. Foi a época da minha palavra fácil de que guardo o estímulo de Alencastro Maria Alves a intitular-me de Cícero cuiabano. Ficou no tempo sem jactância.

Até parte do século XX, no Brasil pontificava a bela palavra com o poder de argumento e de eloquência. Buscar nas antologias o eco da voz de grandes tribunos que deram brilho e colorido à vida nacional, nas praças, no parlamento, no júri, na cátedra, no púlpito. Na nascente República, o verbo de José Bonifácio, o Moço; Silveira Martins, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco. A sobriedade de João Carlos Machado ou a impetuosidade de Maurício Cardoso.

Verdade é que a eloquência floresce quando viceja a liberdade responsável e honesta, como bem supremo do povo, oxigênio da democracia legítima. Oratória não é arenga de tribuno demagogo ou corrupto. Ou é honesta ou o povo deve desdenhá-la do convívio democrático.

Conheci um orador completo: Gervásio Leite, na advocacia criminal e na política, na educação e na vivência acadêmica, no jornalismo e na magistratura. Figura esbelta e tez morena. A base estava na inteligência fulgurante e na profundidade da sua cultura. Dele ouvi a ponderação sábia: “ Não há oratória digna desse nome quando não há paixão pela liberdade. Já não temos associações patrióticas fundadas no civismo, mas sindicatos, ainda que necessários, a pregar lutas de classes”.

Sabia ele combinar, como lídimo profissional do Direito, o culto solene da palavra, infundindo inspiração, estímulo e persuasão, sem resvalar na demagogia – como o fazia no arrebatamento do Tribunal do Júri. Sóbrio ou incisivo, estabelecia a cadência a pontuar a cesura (ponto mais alto sonoro) no momento certo, coincidindo com o acento tônico e distinguindo os hemistíquios.

Basta citar aqui um exemplo do seu verbo: “ O triunfo da probidade e da inteligência, da honradez e da cultura, da vida modesta, mas enriquecida pelo saber haurido na existência afanosa e feliz que permite ascender à culminância em ser recebido como triunfador, não o egoístico, mas o nobre. O triunfo que fica, que engrandece, que glorifica a honra e a luminosidade de uma inteligência vigorosa” (como presidente da AML ao abrir a sessão solene de posse do acadêmico Demosthenes Martins, em 1974).

Se estabeleceu o contraste da conjunção coordenada adversativa, soube Gervásio, detentor dos segredos retóricos, construir o clímax na sucessão das ideias, a criar ordenação crescente e decrescente – e conquistava aplauso o mais emotivo. Gervásio Leite não foi a lamparina dos brejos, sobretudo foi a luzerna nos altiplanos. Hosanas ao seu centenário.  

Benedito Pedro Dorileo

é advogado e foi reitor da UFMT.

Ler 3385 vezes Última modificação em Terça, 05 Julho 2016 11:27