Sexta, 19 Julho 2019 11:03

 

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Roberto de Barros Freire*
 

Que saudade da esquerda.... dela nada se ouve, pouco se sabe e se espera. Quais são suas propostas para a triste situação nacional? Que projeto defendem? Quando muito se sabe o que atacam, de forma fraca, inconsistente e quase sem repercutir pela sociedade.


Não! Não desejo a volta do PT ao poder, mas sinto falta daquele discurso defendendo escola, saúde e emprego, aquela luta pelo fim da desigualdade, aquela ideia utópica de igualdade de todos. Ainda que em grande parte possa ser tudo uma bobagem, acho importante que as diversas vozes sejam manifestadas, mesmo vozes equivocadas, pois a multiplicidade dos dizeres, tornam a fala de todos mais interessante. Hoje só se fala de previdência.....


E não vejo problema em haver vozes majoritárias, mas há problemas quando há apenas um discurso frequentando a praça. Há problemas quando pessoas se movimentam para impedir que outras pessoas se manifestem e que outras pessoas possam compartilhar dessa manifestação.


Naturalmente, a direita vitoriosa e sentindo a fraqueza da esquerda, se aproveita do momento e ocupa os espaços públicos, se não calando, inibindo bastante as antigas vozes esquerdistas. No entanto, ainda que possa haver uma pressão forte da direita para calar a esquerda, o fato é que a esquerda se calou, pois que falava até na ditadura, quando aí sim havia um forte motivo para se calar.


Parece não ter proposta, nem projeto, nem fins, nem princípios. Não deveria ter iniciado um movimento contra a perseguição de ideia ocorrida na FLIP ou agora em Santa Catarina? Não deveria encabeçar uma luta pela liberdade de ideias, afirmando o princípio da dignidade humana de poder manifestar sua opinião? Ora, uma coisa é ser contra uma ideia, outra muito diferente é tentar impedir que a pessoa se manifeste e impedir que outras pessoas queiram compartilhar dessa opinião.


Suas vozes hoje sussurradas parecem envelhecidas, esgarçadas. Defendem algo antigo que parece não caber mais num mundo onde as relações de trabalho e as formas de participação política já não correspondem mais aos seus tipos ideais. Ou ainda, combatem uma economia imoral quando ela é antes amoral, cria inimigos imaginários e não percebem seus reais adversários, enfim, vivem e agem como se ainda estivessem no século XX, quando o século XXI está a exigir pessoas com atitudes, mais do que engajadas em partidos políticos.


A imprensa pouco fala dos partidos de oposição, cada vez mais suas falas, suas percepções e sua opinião é menos consultada. Pouco ou quase nada podem fazer no Congresso, onde se tem propostas, elas não aparecem. Sem força política, também não tem competência para criar fatos ou motivar obstruções as posições majoritárias.


Temo que os partidos de esquerda se reduzirão ao ponto de se tornarem insignificantes. Sem falarem com os demais, voltados apenas para seus militantes e área de influência, não conseguem ultrapassar seus redutos, nem convencer os não convencidos, como fez a direita oportunamente sobre a triste repetição de antigas ladainhas da esquerda.
 

*Roberto de Barros Freire
Professor o Departamento de Filosofia/UFMT
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Quarta, 10 Julho 2019 11:31

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá

Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP

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Nos últimos anos, a “esquerda” brasileira (leia-se PT/PCdoB) tanto aprontou – com mensalões, petrolões, além da aposta errada nas eleições/2018 – que ajudou a alavancar a direita até dentro das universidades.

Conforme noticiado pela Folha de São Paulo (03/07/2019 – B7), “Professores de direita querem se unir em associação”. Para tanto, entre os dias 03 e 04 pp., reuniram-se em quinze cidades.

Na matéria mencionada, é dito que “...sempre houve um ônus ao se posicionar contra a esquerda na universidade. Docentes da direita e que apoiam o atual governo relatam que são alvos de piadas, fofocas e críticas”.

Embora as verdades sejam outras, reconheço o direito desses colegas formarem seus grupos. Assim, não sem lamentar e, acima de tudo, me opor às suas ideias e práticas, esse reconhecimento vai no mesmo sentido de quando professores de uma (mal)dita “esquerda”, já identificada acima, fizeram algo semelhante, mas durante os governos Lula e Dilma.

Logo após o PT ter assumido a presidência, iniciou-se a cooptação da CUT, MST e UNE, além da subjugação das reitorias das federais aos programas dos governos petistas, que distribuíam benesses aos colegas acessíveis. Estes atuavam como agentes partidários, empunhando bandeiras de grupos sociais, mas com roupagem, muitas vezes, de verniz acadêmico, fosse por dissertações, fosse por teses; consequentemente, contrariou-se a noção mais ampla de classe social, defendida pela esquerda de origem.

A “intervenção petista” nas federais se dava a partir do MEC, capitaneado, de início, por Tarso Genro. Naquele momento, colegas de “esquerda” abraçaram o neoliberalismo absorvido pela cúpula do lula-petismo, e formaram o PROIFES, uma aglomeração de pelegos, que passou a se opor ao Sindicato Nacional dos Docentes (ANDES-SN).

Muitos desses colegas, quando em momentos de greves nos governos do PT, uniram-se aos docentes endireitados desde o berço e a pia batismal para a desestabilização do Movimento Docente e manutenção do conforto de seus presidentes-ícones.

A troco de interesses pessoais, mas tudo discursivamente articulado para aparentar agenda positiva por “políticas de inclusão”, que as lutas fragmentadas por grupos sociais tão bem favorecem, diversos colegas da dita esquerda, sem pudor e temor do futuro, nadaram de braçada.

Esse passado recente ajudou a despertar colegas da direita. Agora, inspirados no belicoso Bolsonaro, docentes desse campo ideológico já se articulam para dominar as federais, seja do jeito que for.

Mas por que me oponho a esses colegas da direita?

Por conta da concepção de universidade que têm. Eles não defendem a universidade pública, gratuita, laica e socialmente referenciada, como fazem os sindicalizados ao ANDES-SN; ademais, como os medievos e os falsos moralistas, ainda são patrulhas de comportamento social.

Tais professores, de mentes privatizadas desde o nascedouro, são, há décadas, agentes da agenda neoliberal dentre nós, pois apostam no império da lógica de mercado, em detrimento das demandas sociais; também não se opõem a pagamentos de mensalidades nas federais.

Mesmo assim, reconheço o direito de disputarem espaços. Contudo, não aceito que em uma foto de lançamento político desse grupo, em Cuiabá, dos vinte e dois em cena, cinco posassem com o gesto característico de empunhar armas.

Aí não! Esse gesto – feito repetidas vezes por Jair, que exala ódio até em seu sorriso travado – os iguala a delinquentes do crime organizado; também por tais comportamentos, o futuro das federais poderá entrar em completa instabilidade.

 

Segunda, 17 Junho 2019 10:15

 

 

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JUACY DA SILVA*

 
O futuro não é fruto do acaso ou de forcas divinas ou diabólicas, mas sim, de nossas ações no dia-a-dia ou de nossas omissões e comodismo ante os desafios que nos cercam ou seja da falta de compromisso de cada pessoa perante as mazelas que afligem milhões ou bilhões de pessoas ao redor do mundo.


Não deseje aquilo que não lhe pertence. Não queria enriquecer, ter a glória e status às custas das outras pessoas. Não explore e nem pisoteia sobre os mais humildes e excluídos, eles também são filhos e filhas de Deus, da mesma forma que você que goza de privilégios, os humildes, os excluídos, os injustiçados também merecem respeito e dignidade.


Tudo o que é seu, por direito divino ou temporal, lhe há de chegar às suas mãos, no momento certo e na hora oportuna, nem mais cedo, nem mais tarde, desde que você respeito a dinâmica social e da na mãe natureza, não tente  apressar o tempo, ele tem seu curso natural desde a origem do universo. Na hora exata voce receberá o que almeja ou espera receber por merecimento.


Portanto, trabalhe, ame a Deus, ame o próximo como a ti mesmo e confie no Pai, pois, conforme as Escrituras Sagradas (Bíblia) não cai um fio de cabelos de sua cabeça, sem a vontade d’Ele.


Nossas vidas estão fundadas no pilar: FÉ, Esperança e Caridade, dessas três, a última (a caridade/fraternidade) é a mais importante. Sempre que puder procure fazer o bem, não importa a quem, procure tornar a vida das pessoas em sua volta ou com as quais você mantém relações pessoais ou virtuais a melhor possível.


Respeite a natureza, não destrua a biodiversidade, não contribua para que a degradação ambiental e as mudanças climáticas coloquem em risco a vida no planeta e a sobrevivência da humanidade. Não desperdice, respeite os ecossistemas, seja ambientalmente mais responsável.


Só assim, viveremos em PAZ E ALEGRIA VERDADEIRAS, bases para construirmos a civilização do amor e a SOCIEDADE DO BEM VIVER, onde o egoísmo, o desperdício, a injustiça, a CORRUPÇÃO, o sofrimento, a violência e a ganância não irão florescer jamais!


Pense um pouco mais, reflita sobre seu papel, sua missão neste planeta e como juntos poderemos transformar o mundo, a partir de nossos lares, nossas comunidades, nossos locais de trabalho, nossas igrejas, nossas cidades e nossos países!


O futuro é uma construção coletiva, jamais fruto de semideuses, salvadores da pátria ou iluminados, muito menos por quem vive de privilégios `as custas do trabalho de milhões que praticamente só vegetam ou meramente conseguem sobreviver na miséria e na pobreza.


*JUACY DA SILVA, professor universitário, titular e aposentado UFMT, mestre em sociologia, colaborador de diversos veículos de comunicação. Twitter@profjuacy Email O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. Blog www.professorjuacy.blogspot.com

 

Quarta, 12 Junho 2019 18:00

 

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Paulo Wescley M. Pinheiro

Professor da UFMT

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    O obscurantismo vai costurando sua perversidade por todos os âmbitos e a desesperança fortifica o medo social no tempo histórico da barbárie. Se a vida pede coragem, envoltos na atmosfera temerosa e fatalista é preciso lembrar a famosa frase do Bispo Pedro Casaldáliga de que “o problema é o medo de ter medo”. Se no momento atual de incertezas há muito o que temer é também importante que esse medo impulsione o enfrentamento dos monstros reais e a dissolução das formas fantasmagóricas.

    Na guerra de narrativas, na peleja simbólica e na batalha das ideias muito tem se escondido da retroalimentação da luta de classes. Perdidos entre encruzilhadas e facas de dois gumes estamos carentes de direção, de lideranças e de predileções, buscando soluções mágicas em convicções frágeis e apostas desesperadas numa banca falida.

    Há que se superar quimeras, cultivar a coragem do cotidiano e encarar a necessidade da paciência histórica diante das determinações do mundo como ele está. Uma famosa frase de outro lutador das causas sociais diz que “a prática é o critério da verdade”, assim é crucial que voltemos nossos olhos e lentes mais profundas para aquilo que se esconde na reprodução corriqueira dos desvalores sociais e para os exemplos de luta naquilo que se efetiva na vida do povo.

    Por isso tenho insistido em olhar para essas questões com atenção especial e me repetido que não basta criticar o conservadorismo, que não adianta apenas apresentar as incoerências, muito menos tripudiar em cima dos fatos que jorram dos escândalos oriundos das práticas dos hipócritas e oportunistas. A disputa real está em potencializar cotidianamente a afirmação que nenhum espaço da vida do povo é propriedade da direita, dos protofascistas e dos setores das milícias reais e virtuais. Para isso é preciso relembrar e fortalecer quem sempre buscou demonstrar possibilidades em todos os espaços, inclusive, na religião.

    Em tempos de cruzes laminadas e da sacralização das espadas se perpetua o mito de que a espiritualidade cristã caminha necessariamente com a intolerância, com a arrogância e com o comprometimento político com o fundamentalismo religioso e a ideologia ultraliberal da economia. No apogeu do protofascismo brasileiro as facções que catalisaram um “cristianismo de ódio” cresceram, caminharam pelos rincões do país e pelas vielas da periferia, ocupando o vácuo do Estado e a ausência de políticas sociais universais, o distanciamento dos movimentos sociais, sindicatos e partidos de esquerda, além do enfraquecimento da formação política popular com sentido emancipatório em todos os espaços.

    Obviamente, não é novidade que a história do Ocidente tem a cultura judaico-cristã e a estrutura religiosa como um importante pilar cultural do ethos moderno, burguês, branco, machista e eurocêntrico e que o processo de colonização impetrou particularidades históricas que fermentam as características da formação sócio-histórica do Brasil. No entanto, essa constatação em vez de enterrar os religiosos numa vala comum revela ainda mais a importância dos sujeitos individuais e coletivos que se expressaram na contracorrente desse processo.

    Nesse percurso, a ação orquestrada na Igreja Católica, a partir dos anos 1980, de dilapidar o humanismo cristão latino-americano da Teologia da Libertação casou com o fortalecimento dos setores neopentecostais do protestantismo, onde foi ganhando espaço uma lógica ampla que unificava a forma modernizada da indústria cultural com um conteúdo reacionário nos valores morais, articulando a potencialização da lógica neoliberal individualista e consumista com questões tradicionais.

    Esse processo se solidifica com o crescimento da ocupação da política formal por indivíduos e grupos fundamentalistas e reverbera a construção histórica do patrimonialismo brasileiro, da dificuldade de efetivação de um Estado laico, questão também fortalecida pelos recuos constantes dos governos ditos progressistas e sua ampliação dos conchavos políticos para alimentar os demônios que, tão logo se aprofundasse as expressões de crise do capital, viriam os engolir.

    No ano de 2013, enquanto pulsavam nas ruas as famigeradas grandes manifestações, tão discutidas e tão pouco compreendidas em sua complexidade, eu, como mestrando, finalizava uma pesquisa que buscava compreender a questão dos valores religiosos, do crescimento do fundamentalismo e do choque dessa questão dentro da formação acadêmica do curso de serviço social.

    Naquele estudo já era visível como havia um crescimento das tensões, de um revisionismo histórico e ideológico que vilipendiava no cotidiano possibilidades pedagógicas de debater o princípio da laicidade, da tolerância, do respeito e da diversidade e isso ocorria principalmente por esse fenômeno mais amplo do papel religioso na cena política, mas também apareciam os problemas de efetividade de disputa presente no debate contra-hegemônico. A despeito do crescimento na esfera pública de debates importantes sobre direitos de setores historicamente oprimidos ocorria, concomitantemente e paulatinamente, uma desconexão com a capacidade de enraizamento desses debates nos setores populares.

    Nesse sentido, pensando a atual conjuntura é preciso pontuar como foi (e tem sido) ineficaz o contraponto centrado apenas no apontamento dos equívocos de quem reproduz os discursos de opressão e menos no combate de quem articula e estrutura esse fortalecimento. Assim, a “hegemonia da contra-hegemonia” tem circulado no pragmatismo eleitoral, na naturalização das (im)possibilidades conjunturais e, quando busca sair disso, caminha apenas na esteira dos discursos em-si-mesmados, sucumbindo às particularidades em particularismos, potencializando falas apenas entre aqueles que já se tem identidade e convencimento.

    A atuação política performática instrumentaliza condições, reza para convertidos e joga no inferno a principal parcela dos sujeitos que sofrem as opressões. O não-diálogo é o princípio do espírito do tempo histórico da barbárie não somente entre os conservadores. O resultado são os gritos sem direção, as guerras meméticas, divertidas mas estéreis e a incapacidade de descer do céu dos discursos e símbolos e pisar no chão da realidade concreta das pessoas que sofrem, vivem e reproduzem os valores que temperam sua própria exploração e o conjunto de complexos que os oprimem.

    Pensando tudo isso e angustiado por menos ilusões de atalhos e muito menos escapismos pós-modernos, eu que sou um crítico ferrenho dos limites da estratégia democrático-popular e que estou convencido que seus problemas não foram somente táticos nos últimos anos, penso que é fundamental reconhecer suas práticas e experiências de mobilização e atuação na segunda metade do século XX e tudo que se construiu na luta por democracia, pelos direitos humanos e na construção de possibilidades de enfrentamento do conservadorismo brasileiro dentro da realidade das pessoas, partindo do cotidiano, formulando teoricamente, mas sem perder de vista o diálogo efetivo com a concretude da vida.

    Na seara das disputas dentro das religiões cristãs poderíamos citar muita gente na atualidade, poderíamos nominar pessoas como o Pastor Ricardo Gondim, poderíamos citar coletivos como as Católicas pelo Direitos de Decidir, poderíamos relembrar fatos recentes como a posição importante da CNBB em abril de 2017 contra a contrarreforma da previdência de Temer. Nesse sentido, se exemplos não faltam, nesse momento de desesperança, rememorar práticas inspiradoras é fundamental, por isso, é preciso reavivar um daqueles que marcam com sua vida a história e fazem de sua existência a materialização de que vale a pena lutar.

    Dois dias antes de uma greve geral, em tempos de sobrevivência ameaçada da universidade pública, da criminalização do pensamento livre e da demonização da ciência, da ética e da política a vida de um religioso marcada pela resistência, pela ruptura de cercas e pelo enfrentamento dos cercos terá sua biografia lançada. No dia 12/06/2019, no Instituto de Linguagem do campus de Cuiabá da UFMT, em evento organizado pela Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL), a vida de um homem necessário será lembrada no lançamento do livro intitulado “Um bispo contra todas as cercas: a vida e as causas de Pedro Casaldáliga”, escrito pela jornalista Ana Helena Tavares.

    Rememorar os caminhos e descaminhos de Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia, nos coloca a certeza de que o ser humano, imperfeito, mas criativo, individual, mas coletivo, historicamente determinado, mas um ser da práxis, pode muito, pode sempre mais, pode lutar nas condições mais adversas e nas instituições mais difíceis.

    Pedro é pedra, é padre, é poeta, é político e é povo. É o bispo das colisões linguísticas, políticas e ideológicas. Ousou mais que falar, viver, vivenciar o que se acredita. O bispo que reverberou uma verdade pujante, tão firme que foi capaz de se comunicar por todo o mundo e com todo mundo, falando com cristãos e ateus, com acadêmicos e analfabetos, com doutores das letras e doutores da terra, com o universo de todos aqueles que buscam uma vida com sentido.

    Não é preciso comungar da cosmovisão teológica do Bispo, mas é fundamental perceber que sua história resguarda uma contra-hegemonia que nos falta na batalha das ideias da atual conjuntura. Unir o pessimismo da razão com o otimismo da vontade é algo que esse e tantos outros sujeitos que construíram com o povo uma resistência coletiva transcende os limites táticos e estratégicos do campo majoritário da esquerda das últimas décadas.    

    Se queremos enfrentar as duras batalhas pelos direitos das pessoas da classe trabalhadora precisaremos romper as cercas e os muros para se comunicar organicamente, para escutar e se fazer ouvir, para pensar coerência mesmo na contradição, para ter menos fé no além e ter mais convicção, como Pedro, de que se pode ir além.

 

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Atenciosamente,

Paulo Wescley Maia Pinheiro

Professor do Departamento de Serviço Social da UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso.

Coordenador do Grupo ETOS - Grupo de Estudos  e açõessobre Trabalho, Opressões e Ontologia do Ser Social. 

 

 
Quinta, 06 Junho 2019 09:38

 

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P. Wescley M. Pinheiro 

Professor da UFMT

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É corriqueiro o discurso de que é preciso acabar com a violência nos estádios para que eles sejam ocupados pelas famílias. No entanto, quais famílias são essas? Que tipo de arranjo familiar tem condições de ir ao estádio? Nessa direção discursiva se escolhe um modelo específico de família, sendo ele idealizado, conservador e considerado como o normal, ou seja, o formato aceitável onde tudo que existe fora dele faz parte do problema. A forma como tem se constituído esse discurso e as ações promovidas se revelam como parte do processo de elitização do futebol

 

Assim, o discurso do direito das crianças no estádio sucumbe em falas de responsabilização individual, questões mercadológicas ou somente argumento para firmar políticas de segurança pública repressiva, caminhando longe de outras questões fundamentais. 

 

O exercício de desnaturalizar o estado de coisas em nosso cotidiano é desconfortável. Afinal, as coisas estão nos seus devidos lugares até momento que ousamos perceber que essa organização representa não-lugares de tantas outras coisas. O Estádio de futebol, espaço reproduzido como democrático, onde todos se vestem da mesma paixão e apagam divergências para unir as mesmas cores, sempre distanciou sujeitos historicamente oprimidos, estes, incluídos apenas sob condição de se fantasiarem de iguais, ainda que suas diferenças continuem como palco para desigualdade material e reprodução de preconceitos. 

 

O discurso familista vazio é apenas um argumento moralista para obscurecer o alavancamento do abismo social no esporte que, em vez de pensar a violência estrutural da sociedade e suas refrações no futebol, passa a ter a expressão imediata como problema central. Se não fosse assim, as medidas para se incluir as famílias no estádios estariam voltadas para a construção de uma cultura que absorvesse a diversidade dos arranjos familiares, que pensasse a estrutura das praças esportivas para a inclusão desses setores e que construísse possibilidades de ambientes menos hostis para mulheres e crianças. 

 

Afinal, não é somente a violência entre as torcidas que limita esse espaço. Ir ao estádio é uma saga: horário dos jogos, valores absurdos, amostra grátis da forma como a polícia age nas periferias e, por fim, toda uma estrutura física e de serviços que envolve a reprodução do patriarcado e do adultocentrismo. 

 

Por isso, nesse debate, a dificuldade de acessibilidade, a repressão policial, o preço dos ingressos, além de, obviamente, a reprodução machista de responsabilização das mulheres são elementos importantes a serem refletidos. Quantas mães deixam de ir ao estádio para ficar com as crianças em casa enquanto seus companheiros e/ou pais de seus/suas filhos/as estão nas arquibancadas exercendo seu direito de lazer? Muitos homens adoram idealizar a passagem para seus filhos (a flexão de gênero aqui não é mera conversão linguística) pelo seu clube, mas poucos estão dispostos a compartilhar o processo de cuidado efetivo no espaço público e privado.

 

A arquibancada quer mesmo acolher as crianças? Quem tem filhos/as sabe que sair com elas é um trampo: exige tempo, bagagem, dinheiro e paciência dos adultos, seja dos responsáveis seja de quem está em volta. Quantas arenas/estádios tem "banheiros família"? Quantos banheiros têm trocadores de fralda, inclusive nos masculinos? Quantos clubes pensam, além da lei da gratuidade, ações de acolhimento e serviços durante os jogos para crianças de todas as idades? Quantas torcidas pensam em não tornar aquele lugar um espaço de aprendizado para os meninos serem machões e para as meninas serem objetificadas? 

 

Se o discurso de incluir as crianças nos estádios quiser se estabelecer na realidade será necessário pensar a questão da paternidade responsável e crítica, num ambiente que ainda é hegemonicamente masculino, será fundamental pensar como incluir as mulheres mães (inclusive parando de romantizar agressões verbais de cunho machista e lgbtfóbico como provocações aceitáveis), além de exercer a tolerância com a diversidade, afinal, famílias existem de todas cores, credos, formas e amores e não somente aquela do comercial de margarina. 

 

Assim, há um longo caminho a ser percorrido para esse seja um ambiente de todas as pessoas, para que as crianças possam exercer seu direito e possam existir nesses lugares sem riscos diversos, com menos custo e com mais potencialidade lúdica, pedagógica, de entretenimento e cidadania, para cultivar uma paixão tão bonita que, por vezes, atravessa as gerações familiares. 

 

Até lá, nós torcedores/as precisaremos assumir a responsabilidade paterna, desnaturalizar a responsabilização exclusiva da mulher, além de desenvolver ações coletivas de redes de solidariedade com as famílias que vão ao estádio, possibilitando cuidado e proteção aos/às pequenos/as torcedores/as que aprenderão a curtir o futebol sem precisar excluir e violentar o outro.


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Atenciosamente,

Paulo Wescley Maia Pinheiro

Professor do Departamento de Serviço Social da UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso.

 

Segunda, 22 Abril 2019 15:55

 

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Por Aldi Nestor de Souza*


 

Fabião das Queimadas viveu no século dezenove, no sertão do Rio Grande do Norte. Era negro, escravo, analfabeto, poeta e músico. Compunha versos de cordel e sabia tocar rabeca.  Ele tinha concessão, do dono da fazenda onde trabalhava, para, nos finais de semana, andar pelos povoados vizinhos a tocar, cantar e recitar seus poemas (Fonte:  Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira.)

Dizem que, com os trocados que recebia nessas incursões no mundo da arte, conseguiu juntar dinheiro e comprar sua alforria, a de sua mãe e a de sua sobrinha, com quem veio a se casar.

O cordel mais conhecido de Fabião é o Romance do Boi Mão de Pau, que foi adaptado por Ariano Suassuna e pode ser apreciado, em qualquer internet, tanto na forma de texto, quanto em vídeo, na voz solene do músico pernambucano Antônio Nóbrega.

Muito sucintamente falando, o romance conta a história de um boi muito valente que se negava a viver preso. Mão de Pau, como era conhecido, fugia de qualquer curral, pulava qualquer cerca, arrebentava qualquer corda, desafiava qualquer vaqueiro, qualquer patrão, qualquer ordem estabelecida.

Um dia o dono de Mão de Pau resolveu prendê-lo a qualquer custo. Chamou tropa grande de bons vaqueiros, providenciou cordas resistentes e rumou pro mato à sua procura. A tropa o encontrou nas proximidades de um alto rochedo, a famosa Serra Joana Gomes. Quando percebeu a tropa, Mão de Pau rumou em direção à serra. E quando se sentiu acossado e teve certeza da iminente prisão, subiu até o gume da serra e de lá se jogou rumo à morte.

Por esse dias me lembrei de Mão de Pau ao saber que o ex-presidente do Peru, Alan Garcia, que governou seu país por 10 anos, havia se matado para evitar a prisão.

Guardadas as devidas proporções, as causas e circunstâncias de um e de outro caso, a semelhante morte, inevitavelmente, aproximam cruamente a metáfora poética de Fabião com a realidade do ex presidente. Vida e morte, liberdade e prisão, fuga.

Na adaptação de Suassuna, o romance caminha pro fim através da seguinte estrofe:

“Silêncio. A serra calou-se no poente ensanguentado. Calou-se a voz dos aboios, cessou o troar dos cascos. E agora, só, no silêncio deste sertão assombrado, o touro sem sua vida, os homens em seus cavalos.”

E o tempo mostrou que não nascem mais bois como Mão.  Eles são amansados ainda na concepção. E já nascem confinados, regulados, com dia e hora marcados para morrer. Não tem mais pasto livre, campo solto, rochedo à vista, vaqueiros a desafiar. Mal mugem. São meras mercadorias. Mesma cor, mesmo comportamento, mesmo tamanho, mesmas arrobas, mesmo destino.  O abate!

Na tragédia peruana, um revólver se fez serra; uma bala, precipício; um disparo, um salto. Silêncio em todas as cordilheiras da América Latina. Calou-se a voz das denúncias? Cessou o troar dos repórteres?  O ex presidente sem sua vida; a polícia, amada ou não, com seus coturnos, suas fardas, suas armas, suas investigações, seus espetáculos.  

A morte do ex presidente nada mudará na história da América Latina.  Será apenas mais uma morte. E não contribuirá em nada para que o continente avance e venha a debater a “corrupção” com um mínimo de seriedade. Continuarão as caçadas policiais cinematográficas, em busca dos “culpados”, para gozo e delírio dos simplistas,  e continuaremos míopes no processo, sem entender nada, desejosos apenas de prisão, crentes na justiça, crentes no estado burguês.

Continuaremos condenando a América Latina, historicamente espoliada, ultrajada, vilipendiada, a seguir abastecendo, de matérias primas básicas e de mão de obra barata, o mundo “desenvolvido” e vamos nos contentando com as séries policiais televisionadas, que expõem os “ladrões locais”,  nos criam a sensação de justiça, nos iludem e nos fazem crer que, com esse comportamento, o capital e o livre mercado vão, um dia, livrar o nosso lombo do chicote.

Precisamos livrar a América Latina de ser como os bois que sucederam Mão: que já nascem confinados, regulados, com dia e hora marcados para morrer. Não tem mais pasto livre, campo solto, rochedo à vista, vaqueiros a desafiar. Mal mugem. São meras mercadorias. Mesma cor, mesmo comportamento, mesmo tamanho, mesmas arrobas, mesmo destino.  O abate!

 
*Aldi Nestor de Souza
Departamento de Matemática/UFMT-Cuiabá
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Terça, 02 Abril 2019 17:33

 

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Paulo Wescley M. Pinheiro

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Universidade

 

Na fábrica de trabalhadores

Não mais apaga dores

Não mais quadros e cores

Só moedores de humanos

 

Tem espremedor de anos

Tem um ralador de sonhos

Tem fermento de intempéries

Tem forno, lenha e esteira

Para produzir em série

 

Tem tempero de arrogância

Tem corantes de ganância

No discurso do produto

E na ferramenta do mestre

Tem doença e tem cobrança

Tem tremores e tributos

Carne fresca de doutores

Tem de tudo e tem de nada

Tem de pasto e tem de peste

Na sala dos roedores

 

Entra semestre e sai semestre

A fábrica trabalha dores

 

1.1. Prolegômenos sobre a Máquina: (não) leia o manual

 

    A forma como temos lidado com a produção e socialização de conhecimento tem nos colocado em esparrelas capciosas para nossos espaços de trabalho e estudo. Entramelados numa robusta engrenagem vamos seguindo o curso das catracas intelectuais, lubrificando o sistema com nosso suor, queimando o combustível dos nossos neurônios até não sabermos mais quem somos nós e quem é a máquina institucional que vivemos boa parte de nossos dias.

    No dia 29 de março de 2019, em uma mesa do Pré-Encontro Nacional de Educação, no auditório da ADUFMAT, dialogamos sobre uma interrogação tão pertinente quanto espinhosa: conhecimento para que e para quem? Em tempos de desconstrução da universidades nunca foi tão necessário se perguntar sobre isso.

    As gavetas das especialidades da ciência burguesa tem apresentado sua forma mais grave de decadência ideológica nesses tempos de crise. Isso hipertrofia o caráter mercadológico da ciência e o conhecimento como mercadoria. Cada vez mais distante de uma perspectiva de práxis que aproxime ação e reflexão partindo das necessidades coletivas, vamos naturalizando uma formação procedimental e cultivando relações de estranhamento entre os sujeitos da comunidade acadêmica.

    Da sacralização da razão instrumental abstrata ao processo de demonização de todo conhecimento racional temos nos percebido longe da superação da falsa dualidade entre o conservadorismo e a crítica pós-moderna. Um apelo ao pragmatismo tem se ampliado nos espaços da academia. A universidade tem se transformado em um espaço cada vez menos possível de disputas contraditórias e cada vez mais afirmado, explicitamente ou de forma tênue, o caráter desumanizador, privilegiando o ser tecnificado, o irracionalismo e a mistificação da realidade.

    O prólogo para entender uma série de problemas que vivenciamos enquanto docentes, discentes e demais trabalhadores da universidade perpassa por compreender como temos constituído nossas relações, qual a essência dessa instituição e como ela tem aprofundado os preceitos de uma determinada sociabilidade. Tentaremos apresentar esse debate em cinco seções de textos (incluindo esse) que compõem aquilo que eu intitulei de “Ensaio sobre a magnífica máquina de moer gente”.

    Nessa primeira primeira parte, procuramos introduzir a questão e apresentar a ênfase que daremos ao longo das formulações: o processo de expressões de sofrimento e adoecimento mental na universidade. A lógica de formulação e socialização de conhecimentos sem sentido é expressão de uma sociedade sem sentido e, assim, temos manifestado características similares de ampliação da exploração, das opressões e de sofrimento tal e qual outros espaços de trabalho presentes em nosso tempo histórico.

   

1.2. Reflexões sobre o sofrimento mental na Universidade

 

O processo de adoecimento no âmbito acadêmico não é propriamente uma novidade. Tem sido frequente o crescimento dos debates sobre o assunto, embora os eventos e proposições estejam longe de encontrar respostas efetivas diante da complexidade do problema.

O Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis (FONAPRACE), no ano 2018, desenvolveu um levantamento que demonstra a agudização dos processos de adoecimento mental entre os/as alunos/as. No ano anterior, ganhou as redes sociais uma campanha que explicitava uma série de formas do sofrimento discente dentro das universidades brasileiras.

Com o mote #NãoÉNormal, as imagens e textos circulavam denunciando a naturalização do modelo arcaico e hierárquico da academia, expressando a  perpetuação do autoritarismo, de diversas formas de preconceito e do silenciamento discente que, junto com diversos outros fatores, culminava em exposições de depoimentos sobre crises de ansiedade, processos depressivos, somatizações físicas, entre outras questões graves. Em matéria no dia 18 de setembro de 2017, o site Olhar Direto apresentou um dado expressivo que apontava que 10% das/dos estudantes da UFMT já pensaram em suicídio.

Não é preciso ser especialista em saúde mental para perceber que o cotidiano da universidade tem sido cada vez mais difícil. É perceptível a dificuldade progressiva em realizar processos efetivos em sala de aula. O que vemos são discentes cansadas/os, em sua maioria, aparentemente, desinteressadas/os ou desencantadas/os com o processo de formação. O sofrimento latente salta aos olhos de maneira multiforme, ora na apatia, ora de modo agressivo, outras vezes, desesperado. O difícil é tirar o véu da naturalização disso tudo e não cair em análises rasas, maniqueístas e imediatas da questão.

Não é raro a perpetuação de formas insistentemente equivocadas do trato sobre saúde mental e a concepção do que é ser saudável e doente nessa sociedade. Ora tratada como algo menor, do campo dos valores pessoais, da vida privada e de um plano afeito à “força de vontade”, também se chega ao processo de fetichização dos modismos de tratamento e, por fim, ao tradicional e limitado trato centrado em questões fisiológicas, genéticas, neurológicas e, em larga medida, protagonizando a centralidade do diagnóstico, da descrição de sintomas, do modelo biomédico como exclusividade e do uso de farmacos como principal elemento.

Na esteira do recrudescimento do conservadorismo, cresce ainda a imposição da moralização, da repressão e do disciplinamento como pilares importantes para fortalecer a desresponsabilização do Estado em detrimento do mercado e da refilantropização da saúde, além do enclausuramento, do proibicionismo, da desconstrução da laicidade e da focalização em ações individualizantes.

No tempo histórico da internação compulsória, das comunidades terapéuticas, da venda desmedida de remédios tarja preta, da política de “guerra às drogas” em detrimento da política de redução de danos, do senso comum dos livros de auto-ajuda e coach’s, além da assombrosa revitalização do manicômio, debater sobre saúde mental de forma rigorosa é mais que salutar, faz parte de uma reflexão sobre o caminho da barbárie que temos construído.

O que surge em nosso cotidiano é resultado de um vácuo nas políticas sociais, de uma forma reacionária do trato das expressões da questão social e da concentração de uma política de saúde mental que fortalece sua contrarreforma e privatização. A forma como temos atuado no “fazer ciência” não está alheia a tudo isso.

Entre tantas discussões e exposições de diversos olhares, quase sempre, se perde algo crucial: se está todo mundo mal deve haver algo de errado com esse lugar. Entra dia e sai dia, pessoas diferentes, com vivências particulares e distintas formas de acessá-las tem reclamado do cotidiano universitário e isso acontece entre alunos/as, professores/as e técnicos-administrativos/as. A conclusão óbvia é que numa sociedade profundamente adoecedora a universidade não é uma bolha.

Formar profissionais que não terão emprego para pessoas que não terão acesso aos serviços, produzindo pesquisas que não tem financiamento e socializando em periódicos que não são lidos tem sido a tônica da máquina de moer gente, dilapidando o espírito de quem sonha construir um outro processo educativo,diminuindo a resistência aos ataques às possibilidades de atividades emancipatórias dentro desse lugar.

Quando não nos concentramos em debater um projeto de universidade articulado ao desenvolvimento de um projeto de sociedade tendemos à articulação imediata das questões fenomênicas como elemento essencial. Assim, passamos a não refletir sobre quais as determinações de um cotidiano tão pesado e vamos apenas reagindo sobre ele.

Se não passarmos a pensar a universidade como um instrumento que precisa ser disputado para uma lógica efetivamente pública, garantindo um tipo de produção e formação que realize os sujeitos que a constroem e a classe que a alimenta estaremos aprofundando o caráter adoecedor desta instituição.

 

1.2. O estranhamento no espaço do conhecimento: universidade, relações sociais e coisificação

 

Nesse sentido, embora reveladora e importante, a campanha #Nãoénormal só expressa a ponta de um complexo fenômeno e, se percebida de modo isolado, tende a concentrar no/a professor/a o problema. Nas reflexões da maioria das pessoas que compartilhavam as peças da campanha a dimensão mais reproduzida era apenas uma crítica à forma de avaliação, à eventual tirania, ao ritmo exigido na formação acadêmica.

Embora saibamos o quão problemática é a forma de avaliação, mesmo que não seja ficção os inúmeros casos de abuso de autoridade e, por fim, reconhecendo as intempéries do aligeiramento da formação, há muito mais a ser colocado em relação às questões que envolvem a temática central para que o protagonismo do problema não caia sobre os ombros dos sujeitos que também são atingidos: os/as trabalhadores/as da universidade, inclusive, os/as professores/as

O coquetel de uma instituição historicamente determinada pelas elites, aprofundada no tecnicismo, no conservadorismo e na lógica formal-abstrata é um pontapé para entender que a idealização da academia encobre que ela é fruto e reprodutora da sociedade e de seus valores hegemônicos. O aspecto contraditório e contra-hegemônico sempre enfrentou a violência maquiada nos legalismos, formalismos, burocracias e afins.

Sendo assim, o racismo estrutural, a naturalização machista, lgbtfóbica e misógina, a falta de acessibilidade para deficientes, a desigualdade regional das instituições, o acesso não universal e tantas outras formas de reprodução das opressões aparecem em práticas e em componentes de todos os sujeitos que compõem a comunidade acadêmica.

Esses elementos se expressam desde os trotes estudantis à insensibilidade nas aulas por parte de professores, aparecem na falta de políticas efetivas de assistência estudantil, na hegemonia de um conhecimento eurocêntrico da ciência burguesa, na reprodução da desigualdade de financiamento e estamento de profissões do ensino superior, na burocracia e no burocratismo dos processos internos, etc.   

A lógica do capital se capilariza por todos os espaços e a universidade, ao invés de ser a idealizada e romantizada “fábrica intelectual dos trabalhadores” é, apenas, uma fábrica de trabalhadores, produzindo sujeitos podados para a esfera do mercado e assumindo o individualismo e todas as suas formas de expressão ideológica, desde a culpabilização de sujeitos até a miragem do oasis meritocrático e empreendedor diante do desértico cotidiano desumanizador.

Na agudização da crise da sociabilidade hegemônica o esfacelamento estrutural do espaço universitário degrada condições de trabalho e estudo, fortalece perspectivas conservadoras no campo teórico, potencializa críticas meramente espontaneístas e voluntaristas, numa perspectiva irracionalista e infantilizada.

Tudo isso reverbera em atitudes e práticas dos sujeitos que materializam posturas coisificadas, autoritárias e violentas, sejam na reprodução do status quo, seja na suposta tentativa de bradar suas intempéries para a superação. As disputas pelos quinhões produtivistas diante do corte de verbas são expressões disso.

Ao invés de uma leitura profunda da lógica imposta há, costumeiramente, apenas um senso comum esclarecido, que percebe expressões cotidianas de reprodução da mesma e impõe à elas a essência enquanto imediaticidade. A partir disso se esgota a crítica estrutural e se constitui à “caça às bruxas”, nos supostos jogos do micro-poder, sem perceber que há algo mais amplo que promulga a vigência dessas relações estranhadas nos diversos sujeitos e grupos particulares que vivem da venda de sua força de trabalho.

Não podemos fechar os olhos para as manifestações de violência, preconceito e discriminação no espaço universitário. Isso implica perceber suas expressões e o que representam essas posturas, responsabilizar legalmente quem pratica e pressionar politicamente por respostas institucionais para além do punitivismo.  

É necessário pensar os processo de contradições inerentes dessa sociedade que pulsam em diferentes formas de desenvolvimento de atos desumanizadores. Seja na lógica elitista dessa estrutura, que possibilita a reprodução do autoritarismo em muitos docentes, passando pelo processo de redução da importância dos trabalho dos técnicos-administrativos e a diminuição de seus postos de trabalho, chegando ainda no espraiamento de uma concepção desvirtuada, reproduzida por  grande parcela de discentes, oriundos da educação bancária, que tratam a formação como uma mercadoria e o professor como um instrumento de trabalho.

Quando permanecemos apenas descrevendo as manifestações imediatas passamos a desresponsabilizar a estrutura, amortecemos o impacto da lógica institucional e jogamos novamente para os indivíduos a responsabilidade de lidar com coisas muito mais complexas do que o que surge no campo da aparência. Uma manifestação de coisificação da práxis educativa se solidifica.

Semelhante à alienação no processo produtivo, um não-reconhecimento diante daquilo que realizamos se constitui em nosso cotidiano. O/a professor/a não se realiza naquilo que produz, envolto nos prazos, formalismos do sistema de avaliação da graduação e da pós-graduação e baixo rendimento com os alunos em sala de aula, cresce uma frustração constante. O/a profissional não tem identidade com os seus pares, diante da concorrência e do fomento da competitividade como tática de resistência individual na busca por espaço físico, notoriedade acadêmica ou financiamento de pesquisa e nem se enxerga nos/nas estudantes, diante da precariedade do exercício profissional.

Os técnicos-administrativos também vivem semelhante sentimento. Numa condição de trabalho distinta dentro do espaço de saber, vivenciam a desvalorização do seu trabalho, diante de uma imagem historicamente constituída de sobreposição do trabalho intelectual, presenciam o processo paulatino de substituição de sua função, imbuída cada vez mais aos docentes, por via da tecnologia, imposta aos estudantes empobrecidos pela tática de pseudo-estágios, de uma pseudo-assistência estudantil, que coloca a condição de recebimento de bolsa diante de horas de trabalho administrativo. Para os assalariados da universidade, docentes e técnicos, o assédio moral vira uma prática tão recorrente quanto naturalizada.

Aos discentes essa condição também se reverbera e com muito mais força. Sem identidade com os/as professores/as, concorrendo com os/as colegas, sem encontrar sentido no que estudam e nas perspectivas profissionais, a formação vira um peso sem sentido, uma via crucis a ser ultrapassada sem saber porquê. O/a professor/a adoecido/a, assoberbado de encargos, realizando trabalhos fora do horário de expediente e expressando os processos de ataques a sua carreira é um anti-clímax para o alunado que espera uma imagem do profissional idealizado como modelo da sua profissão.  

Com os trabalhos, provas, seminários, listas de presença e tantos outros medidores o foco permanece na nota que será registrada. O espaço de aprendizado se torna um momento do dia a ser superado e não aproveitado. Estudantes disputam, comparam, cobram, fiscalizam dentro da competição naturalizada no espaço do saber. Dentro da própria categoria haverá a seletividade constante. Desde o sistema de entrada da universidade, passando pela disputa das bolsas de iniciação científica, extensão e monitoria, o fomento de uma cultura egoísta é sempre potencializada.

Na política de assistência estudantil, o viés focalista reproduz a disputa para provar quem é mais pobre. Cada vez mais o caráter universal vai perdendo força para uma percepção residual.  Isso contamina, inclusive, os coletivos políticos que afirmam lutar contra essa lógica

Nessa equação, existe ainda o conjunto de trabalhadores/as terceirizados/as, invisíveis, silenciados e cada dia mais precarizados em seus processos de trabalho, temperando o pesado ar da academia, que busca atalhos cruéis diante de seu processo de desmantelamento.

Assim, a “alienação intelectual” torna a experiência universitária um processo autofágico. Todos praguejam a falta de condições como algo universal, mas buscam saídas particulares. O individualismo é a primeira expressão, porém, além dele, o corporativismo também se fortalece. Cada setor, grupo, curso, departamento, instituto, categoria luta pelo seu pirão primeiro diante da pouca farinha que é garantida.

Na parte que nos cabe nesse latifúndio vamos cultivando um processo educativo anti-emancipatório. Partindo da questão discente é impossível não lembrar daquele conhecido conto de Rubem Alves onde Pinóquio entra humano na escola e vai virando um boneco de madeira ao longo da formação. A paródia que demonstra o avesso do processo de humanização é pertinente.

Diante de tudo isso, já podemos notar que não há como generalizar uma categoria e culpabilizar apenas um sujeito diante de questões tão complexas. Pensar a lógica da universidade e porque ela tem se perpetuado num cotidiano de disputas, lamentações e sofrimento mental é descortinar o cabo de guerra entre diferentes sujeitos que, tendo papéis distintos, sofrem de modo peculiar as expressões de uma estrutura problemática.

Isso significa pensar a totalidade, realizar uma crítica estrutural, cobrar responsabilidade institucional, mas também pensarmos criticamente como catalisamos esse processo, como contraditoriamente todos os sujeitos acabam por reproduzir essa lógica.

 

Segunda, 18 Março 2019 09:17

 

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para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Por Roberto de Barros Freire*
 
  

Sem dúvida que o atentado à escola em Suzano/SP foi coisa de pessoas perturbadas, incapazes de sentimentos humanos. O que leva alguém a querer matar tantas pessoas e depois se matar é algo inexplicável para pessoas normais, que dão valor a vida, que respeitam o direito de todos. Só alguém aloprado se considera superior aos demais, capaz de impor aos outros suas vontades, e dizimar vidas humanas.


Mas, se o acontecimento por si já foi algo horrível, ainda pior foram os comentários do senador Major Olímpio. Insensível à dor de todos, defendeu de forma oportunista sua bandeira armamentista. Aloprado, defende que os professores andem armados, não para acabar com os tiroteios, mas para ter mais pessoas atirando nesse país repleto de bala para todo lado.


Percebam a loucura do infeliz senador. Ao invés de propor um detector de metal na entrada da escola para impedir a entrada de armas, ele propõe armar os professores para revidar os tiros recebidos: com que recursos? Se a arma é um instrumento de trabalho, segundo o insano Major Olímpio, a secretaria de educação é que fornecerá essas “ferramentas” ao professor? Comprar uma arma é coisa de rico, e professor não dispõe de salário para ter uma arma; com o que custa uma arma, compraria antes uma motocicleta para si. Supondo que a secretaria de educação fornecesse as armas, ele transportaria da escola para a casa e da casa para escola, nos ônibus, pelas ruas, ou deixaria a mesma na escola? As escolas, todos sabem, são furtadas até por causa de sua merenda, imagina quantos bandidos não atrairia para roubar as armas dos professores. Ficar andando pela rua armado é não só perigoso, como insano, uma vez que são pessoas despreparadas, pois só a polícia possui esse preparo, e mesmo assim estamos cansados de ver os desastres.


Segundo esse incapaz senador, teríamos que mudar as licenciaturas: sai didática, filosofia e psicologia da educação, entra tira ao alvo, defesa pessoal e o uso de armas brancas: faca e machado. Enfim, o professor guardião armado, preparado para o combate, porém despreparado para a sabedoria e o conhecimento, vigiará crianças e adolescentes contra possíveis ataques, e quando der, ensinará alguma coisa trivial.


Major Olímpio é para mim um terrorista, ampliando a insegurança escolar, não sendo uma pessoa razoável e ocupando um lugar com tanto poder. Um serviçal da indústria armamentista que está mais interessado em aumentar o mercado das armas do que resolver o problema da violência. E o que é pior, sem dar um palpite ou sugestão de como manter os jovens nas escolas – como é obrigação do Estado – para não se tornarem criminosos, querendo apenas punir os jovens abandonados por esse Estado ruim, com senadores ainda piores, diminuindo a menoridade penal. Quer penalizar duplamente nossos jovens, de forma maldosa; o jovem que foi penalizado por não ter recebido educação do Estado, será penalizado por não ter sido educado.


Os limites mentais desse senador assustam, não apenas pelas bobagens que diz e defende, mas pelo fato de ter instrumentos para por em prática suas idiossincrasias. Um senador atrasado, bruto, rústico, terrorista, querendo apenas armar as pessoas, sem outra atuação ou militância que seja penalizar adolescentes pelos crimes dos adultos, ou armar as pessoas para que todos resolvam suas desavenças pela bala. No congresso, sobram trogloditas e faltam humanistas. Todos querem endurecer as leis erradas e abrandar as leis boas até torná-las fracas.


Em minha opinião, esse senador deveria ser repreendido por emitir ideias inadequadas, pois ainda que se tenha liberdade de ideias, não se pode utilizar tão alto posto público para bradar ideias desumanas, arbitrárias e insanas. Deve haver um limite mesmo a imunidade parlamentar, pois que há ideias como a desse senador que podem ser nefastas. Como membro do senado deveria ter um comportamento mais adequado ao posto, e não reagir como um bárbaro sanguinário, e pronto para ver tiroteio nas escolas, a defender suas ideias até mesmo sobre as dores de todos.


Para mim, esse senador é um assassino em potencial, só faltando o pretexto para matar alguém. Antes de defender o direito a legítima defesa, defende a o direito de matar quando se vê ameaçado, e ameaça pode ser qualquer coisa, até mostrar a língua.

 
*Roberto de Barros Freire
Professor do Departamento de Filosofia/UFMT
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Sexta, 15 Março 2019 10:35


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Paulo Wescley M. Pinheiro

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Os primeiros meses de 2019 se arrastam. Entre tragédias ambientais, incidentes, acidentes, caricaturas de seres humanos no poder, espraiamento da violência, reverberação do preconceito e anestesia geral na indignação coletiva organizada caminhamos naturalizando a unidade Estado Penal/Mercado ditatorial como elemento inexorável. A vida cotidiana sangra.

 

Na Nova Era dos Mitos, abrimos nossa caixa de Pandora e soltamos os espíritos da barbárie com a autorização simbólica da agressividade, das práticas bélicas como costume e da falsificação do real como religião. Não é só pau e pedra, são os tiros de sempre e, cada vez mais, achamos que é o fim do caminho. 

 

Na enxurrada diária mães e pais choram crianças mortas, enlameadas, incendiadas, assassinadas.  Quem acha que não estamos produzindo a barbárie na sociedade da exploração, opressão e da repressão comunga com acomodação de uma vida sem sentido, da banalização do que é humano e das dores inimagináveis. 

 

Sempre que somos acometidos por diversas tragédias um dessabor se espraia no cotidiano e logo surgem as mais diversas explicações para o conjunto de desgraças. Quando nossa lama não é somente moral, mas concreta, afogando trabalhadoras e trabalhadores, quando jovens sonhadores são carbonizados enquanto sonhavam serem jogadores de futebol, quando o vermelho perseguido não é somente ideológico, mas principalmente do sangue da juventude negra, da população LGBT e de tantas outras pessoas historicamente oprimidas, quando crianças são alvejadas friamente por jovens com seus troféus bélicos nas mãos, quando as farsas tomam contornos trágicos, quando os mitos desmascaram-se do seu moralismo e o conjunto da obra aparece em noticiários... quando tudo parece (e é!) um caos se estabelece o desencanto. 

 

Nesses momentos, não é incomum buscarmos no pensamento mágico as justificativas mais mirabolantes. Sobre os crimes ambientais e sociais assinados por CNPJs, ao invés da inoperância da regulação pública e da revelação pujante do aspecto mais feroz da mão invisível do mercado, despejamos as lágrimas e a direção dos olhos para o sobrenatural: castigo divino, provações, nuvens carregadas sobre o país, energia negativa, a via crucis de sempre. Quanto aos mitos e mentes perversas... a fé de sempre: o fundamentalismo religioso condimentando as notícias falsas.

 

Um tsunami por dia se estabelece na vida brasileira e não há sequer tempo para digerir um novo escândalo, uma fala bizarra de uma ministra, um depoimento irracionalista de um ministro, uma soberba descabida de um deputado. Ao mesmo tempo, não há como não engolir a seco os números, as mortes, o medo social diante da barbárie.

 

Assistimos, ainda estarrecidos, a universalização do sofrimento vivenciado nas periferias. O caminhar cheio de incertezas diante da vida, a convivência imposta diante da possibilidade da morte. O gosto amargo da vivência caótica nivela por baixo nossa indignação e o tempero dos discursos é puro torpor. As coisas se misturam, a avalanche de notícias nos toma, o espetáculo mórbido da vez precisa de seus espectadores.

 

Dos programas policiais aos cultos televisivos permanecemos aprofundando uma overdose de obscenas formas e cores de intolerância, descasos e modos de jogar para debaixo do tapete a complexidade do que vivemos. O nosso almoço é temperado pelo espetáculo das dores. Contra o ódio? Mais ódio! Contra as armas? Mais armas! Contra as mentiras? Mais mentiras! Contra as interrogações das perguntas difíceis, as exclamações violentas e repletas de cinismo.

 

Diante de tal quadro há muitas formas de pseudo-escape. A negação “memética” do ciberespaço, acostumada ao “desespero que é rir de tudo”, zombando do que chama de politicamente correto e dissimulando a famigerada liberdade de expressão. Há ainda as pequenas frestas de humanidade, evidenciando o reconhecimento da dor do outro, a empatia momentânea, ainda que se expresse quase sempre no minuto anterior das justificativas místicas e da resignação fatalista diante do suposto imponderável. 

 

No entanto, a energia que nos falta não é a do pensamento positivo, não é uma nuvem sobrenatural que nos acomete. Nossa tragédia é material, se concretiza quando degustamos cotidianamente a desumanização e cozinhamos nossas possibilidades nos fornos do protofascismo ou na fogueira das vaidades.

 

Entre a aurora assombrosa e o crepúsculo de fios de esperança costuramos nossos dias, com seus tecidos de contradições, limites e possibilidades, com a materialização de pesadelos e a necessidade de reconstruir sonhos coletivos. Os espaços genuinamente da classe trabalhadora ainda cheiram mofo, estão cobertos pelas migalhas neoliberais, conciliatórias e/ou pós-modernas. O ar rarefeito do carreirismo ainda toma de conta e a ausência de experiências humanizadoras grita: é a lama, é a lama! 

 

Quando o trágico é naturalizado, quando aprendemos a arte de catapultar suas causas e condicionalidades para o além ou para o aquém, matamos também a nossa possibilidade de reação. E quando, por um instante, a sensibilidade nos permite criar laços com aqueles que sofrem, vem o conjunto de uma sociabilidade alienada e alienante, com seu anzol e suas iscas, transformando o laço em nó... na garganta.

 

No terceiro mês do ano colecionamos perdas irreparáveis, muitas pessoais, outras tantas coletivas. As tórridas águas da onda da Nova Era anunciam o aprofundamento de um cotidiano cada vez mais distante de condições dignas de vida. O desmantelamento das esfareladas políticas sociais, as contrarreformas em curso, a educação punitivista e militarizada, a hostilidade como política e a a autorização simbólica para matar.

 

Se as lágrimas de março fecharão o seco verão não sabemos, mas já é hora de pensarmos em florescer uma nova primavera dos povos. Se não pararmos de constituir uma lógica desumanizadora, cada dia mais, nos amorteceremos diante da morte. O fast food de escândalos e tragédias tendem a acostumar nosso paladar. No espetáculo do caos o aperto no peito faz parte do combo. Até quando?

Quinta, 14 Março 2019 10:40

 

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Roberto Boaventura da Silva Sá

Prof. de Literatura/UFMT; Dr. em Jornalismo/USP

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Agora é pra valer: o carnaval e o pós-carnaval terminaram mesmo, mas não sem deixar debates e embates.

Há muito tempo, o carnaval não nos marcava tanto, pois as críticas políticas foram revigoradas; ganharam personagens até então ignoradas pelo público, como, p. ex., as figuras e as ideias bizarras de Bolsonaro e sua turma.

Dentre tudo que visto, como não ter se emocionado com o desfile da Mangueira? Mais do que expor críticas sociais e políticas deste perigoso momento pelo qual estamos a atravessar, o samba-enredo da Mangueira – “História pra ninar gente grande” – serviu como maravilhosa aula de história, de cultura brasileira, de arte; em resumo, de sensibilidade, de brasilidade. 

Diante de tanta beleza estética exposta neste carnaval, ficou a impressão de que o momento político que vivemos deu novo ânimo às festas de Momo, mesmo com as dificuldades impostas por diversas prefeituras, dentre elas a do Rio, cidade, por natureza, tão maravilhosa quanto carnavalesca.

Muitas das prefeituras que tentaram “atravessar o samba” tomaram essa decisão não para conter gastos, como alegaram, mas por conta do moralismo-cristão que visa tomar conta do país, feito sombra repugnante herdada do medievo.

Do moralismo imperante, o destaque mais negativo ficou por conta da visibilidade que o presidente da República, em sua rede social, deu para um fato ocorrido isoladamente em desfile de um bloco paulistano: dois rapazes praticaram, em público, o golden shower (“ducha dourada”; ou seja, urinar sobre o/a parceiro/a).

Em nome da maldita “indignação” e do “repúdio” a “cenas imorais”, repito, compartilhadas pelo presidente Bolsonaro em sua rede social, atitude, aliás, bem próxima das produzidas por beatos fofoqueiros, quem não sabia passou a conhecer de mais essa modalidade de prática sexual, exercida por um contingente de seres humanos.

Portanto, pior do que a cena escatológica em si, inicialmente circunscrita a poucos internautas, foi a visibilidade lhe dada, inclusive no plano internacional. Tudo por conta do moralismo do presidente da República.

Nesse sentido, a capa da Revista Veja, desta semana, resume tudo isso, dizendo que ao divulgar aquele “vídeo pornográfico”, “o presidente Bolsonaro fica menos presidente e mais Bolsonaro”. Assim, provoca a “morte do decoro”; e se esse tipo de assassinato não lhe render um impedimento, já não lhe isentou de um grande desgaste político, principalmente sob o olhar do estrangeiro.

Pois bem. Se Bolsonaro fosse menos preconceituoso e preocupado com a vida alheia, saberia que, antes de tudo, por mais aberração que pudesse ser um golden shower, o carnaval é parênteses nos calendários religioso e civil, concedidos pela própria Igreja Católica desde idos tempos. O carnaval, diferentemente da Paixão de Cristo, é a festa da carne; por isso, é mais humano e menos cínico do que qualquer outra festa. 

Sendo assim, na condição de parênteses, nele tudo cabe, inclusive o golden shower, que, segundo os praticantes em questão, não passou de mise-en-scène para estabelecer uma crítica política deste momento, que continua tão asqueroso como antes.

Aliás, mais do que nojento, vivemos um momento de incertezas; daí, perigoso. Tão incerto que, diante de tantas aberrações, muitas vindas da própria família Bolsonaro, já há apostas no sentido de se saber quanto tempo o presidente conseguirá permanecer no poder.

Em outras palavras, quanto tempo faltaria para o vice – que é um militar – tomar assento na cadeira presidencial.