“Em muitas localidades é muito difícil de sair. Em Boa Vista, Roraima, você só sai via avião, ou por meio de uma rodovia precarizada, até Manaus. Se perder o voo, vira roraimense”. Com essas palavras, a professora Ana Paula Sacco, da Universidade Federal de Mato Grosso, campus Araguaia, e diretora da Associação dos Docentes da UFMT (Adufmat-Ssind), lembrou do evento sobre Multicampia e Fronteiras, do qual participou este mês.
O Segundo Seminário Multicampia e Fronteira do Andes-Sindicato Nacional ocorreu no estado de Roraima, cidade de Boa Vista, entre os dias 13 e 15/03. Foram três dias de atividades em três diferentes campi. Nas palavras da docente, o seminário foi importante porque agregou professores do Oiapoque ao Chuí. “Grande parte dos participantes eram professores dos campi do interior e existe uma atmosfera de compartilhar dificuldades que os professores que trabalham nesses locais têm: as dificuldades de acesso e de permanência”, destacou.
Ela explica que os presentes debateram a expansão e interiorização da universidade, que muito embora tenha sido um processo extremamente importante para a democratização da educação superior, pois, com isso as universidades se inseriram em regiões de difícil acesso, mais adentradas no interior do país, o processo não se consolidou da forma como deveria. Por isso, a precarização a qual as universidades estão submetidas acaba sendo mais intensificado nesses locais “fora de sede”, isto é, nos campi do interior.
Professora Ana Paula Sacco no primeiro dia do II Seminário Multicampia e Fronteira
“A gente [o Andes-SN] tem uma proposição de que local de trabalho é instituição e não campus. Mas para esses campi fora da sede, nem sempre há autonomia financeira, então os recursos demoram ainda mais para chegarem. As pós-graduações não estão consolidadas, e assim o professor tem dificuldade de exercer o seu tripé, pesquisa, ensino, extensão. As vezes são locais de difícil permanência para o professor, porque você precisa pegar barco, bem longe de uma cidade grande, de uma capital. É difícil para os estudantes também, mas eles costumam ser da região, e isso é muito bom, porque significa que a universidade está atendendo a comunidade local, mas tudo isso é ainda mais difícil para o professor”, afirmou.
Adicional de penosidade, mas não só isso
A docente lembra que o GTMulticampia e Fronteiras foi criado na perspectiva de que os professores que trabalham nos campi do interior consigam um adicional no seu salário. Segundo Sacco, há toda uma discussão, inclusive jurídica, sobre qual seria o melhor caminho para conseguir esse adicional, que se refere à penosidade – um direito trabalhista que compensa o esforço físico, mental ou emocional de trabalhadores que realizam atividades desgastantes. Mas não é apenas isso, pois um aumento de salário, por si só, não pode fazer com que a pessoa permaneça num local sem o mínimo de estrutura, como saúde e educação para os filhos.
Além disso, a discussão se amplia ainda mais quando a pergunta é “quais são as fronteiras brasileiras?” Nesse sentido, além da região Norte, onde ocorreu o evento, o Centro-Oeste também apresenta suas especificidades. “A gente tem vários tipos de fronteiras. Os professores que trabalham nessas regiões, principalmente no sul e norte, percebem a dificuldade relacionada aos vários idiomas, com estudantes, às vezes, de outros países, ou estudantes pertencentes aos povos originários, indígenas, isso gera uma complexidade, que se dá também, por vezes, no próprio acesso a localidade fora do país. Para ir para outro país fazer extensão, trabalho de campo, por exemplo, é preciso autorização via Portaria, publicada no Diário Oficial, que demora a ser expedida. Essa é mais uma insegurança jurídica relacionada ao exercício da nossa profissão, principalmente para esses professores. Aqui mesmo no Centro Oeste, a gente tem a fronteira do Agronegócio, que traz projetos de desmembramentos da UFMT, de forma verticalizada, uma vez que nem a comunidade local e/ou universitária foram ouvidas. Desmembramentos a partir de projetos de lei sem previsão de orçamento, para campus dos quais não foram consolidadas a expansão do Reuni, cursos com uma evasão enorme, com pouco avanço nos cursos de pós-graduação, problemas com transporte de estudantes e permanência universitária, são alguns dos problemas que podemos citar. Assim, caminhamos no sentido contrário a um projeto de universidade popular”, destacou.
Assim, a avaliação é de que seria importante essa contrapartida, um adicional ao salário, mas a discussão não pode acabar quando esse adicional for incorporado, porque essas localidades podem melhorar até mesmo pela presença da universidade, já que ela pode fomentar meios em termos de estrutura de saúde, educação, segurança, transporte. “A existência da universidade nessas localidades é um processo de resistência, de democratização do ensino superior para as diferentes comunidades que estão inseridas nesse interiorzão do Brasil, e as discussões não podem findar a partir da incorporação de um auxílio, porque são muito mais amplas do que num aumento de salário”, pontuou Sacco.
Dinâmica entre participantes e comunidade local
Num país tão diverso, uma infinidade de problemas que não são, exatamente, a multicampia
De acordo com Sacco, os relatos dos professores do interior do Amazonas se assemelham aos de Roraima. É muito difícil chegar à cidade, porque precisa pegar um avião até Tabatinga, uma das cidades próximas a destino final, depois pegar barco para chegar a Manaus. A viagem de barco dura horas. A mobilidade também é um problema geral no Brasil, mas se intensifica nas regiões mais interiorizadas.
Mas o problema da multicampia não é a multicampia, porque ela pode ser extremamente rica, interessante, pois consegue capilarizar a universidade em diferentes localidades, fazer com que a instituição chegue a diferentes comunidades, povos ribeirinhos, originários, povos que estão na fronteira com outros países, e isso é alcançar um papel social extremamente importante, que expressa o próprio conceito de universidade.
“O que a gente tem aí é muito mais do que essas dificuldades, é esse avanço do neoliberalismo, onde os recursos não estão indo para fomentar a saúde, a educação. Esse é o problema, o desinvestimento na multicampia, não só no Centro-Oeste, na educação do nosso país, já tão precarizada. Esses são os grandes problemas, não a multicampia. Isso a gente pode perceber durante toda a troca que a gente teve nesses dias, uma troca empática entre nós professores que estamos nessas localidades, fora de sede, e que, talvez, percebamos mais essa importância frente a uma possibilidade de democratização real da educação superior e de troca de saberes com toda essa comunidade que é tão diversa no nosso país”, concluiu.
Sensação de pertencimento
As fronteiras da multicampia podem ser localizadas, ainda, na sensação de pertencimento. Muitos professores não são da região onde são lotados acabam não criando o sentimento de pertencimento pela instituição, ou por aquela comunidade. Por isso a formação de novos sujeitos, pertencentes ao local e que conseguem cursar a universidade e desenvolver os trabalhos ali se mostra ainda mais necessária.
“Uma das falas mais potentes que eu ouvi foi da professora do interior do Amazonas, que fez o relato dos professores que estavam lá e que foram formados pela universidade federal, e que hoje são professores, que estão atuando como jornalistas, tinha o jornalista da seção sindical do Amazonas. Foi muito emocionante essa fala, e ela ainda relata quanto custa o gás, por exemplo, lá no interior. Porque precisa ir de barco. Não vai leite in natura; como que um frango vai? Vai no barco, porque só chega de barco. Então, o transporte de alimento, de tudo que é perecível, o litro de gasolina... por isso que a gente precisa falar que as questões vão muito além das fronteiras, porque essa fronteira cultural, essa fronteira geográfica do nosso próprio país mostra essas nuances da questão da regionalidade. Aí o professor jovem, ele passa nesse concurso, não é pertencente, as condições são adversas mesmo, para o nosso país de uma forma geral, e ainda mais nesse contexto específico, de custo de vida mais caro, de um acesso mais difícil, ele não fica. Esse Seminário trouxe toda essa diversidade de falas, de experiências. E mesmo nesse contexto de eleições para a diretoria do Andes, a gente não sentiu um clima de rivalidade, de campanha. Pelo contrário, eu me senti muito acolhida, sou muito feliz de ter participado e mais do que isso, do nosso sindicato, da Adufmat-Ssind poder contribuir para que a gente reflita políticas de multicampia da UFMT”, acrescentou Sacco.
Ainda como ponto de dificuldade, a docente observou o momento político do país, em que avança o conservadorismo. ““Reconhecemos que a fronteira geográfica ela vai além, Temos as fronteiras culturais, as fronteiras do Agro - impiedosas no extermínio de espécies e de nós mesmos, porque vem intensificar a emergência climática, com mudanças climáticas em curso -, e tem ainda o avanço da extrema direita e o do conservadorismo dentro das universidades, ainda mais nos campi fora de sede, com estrutura mais precarizada, que acaba resistindo menos ao conservadorismo. E até mesmo o sindicato local, que pode optar por ser um braço do Governo, não é? Com a escolha do Proifes. Porque, com eventual desmembramento que atenda esse projeto do Agronegócio, qual o tipo de sindicato essas universidades criadas já com bases conservadoras vão aderir? Não vai ser o sindicato de luta do qual nós fazemos parte neste momento. Enquanto professora é complicado pensar nisso, porque o sindicato é o que me faz resistir neste cenário."
Uma experiência na Raposa Serra do Sol
Além da imersão que propunha a chegada de docentes de todo o país nos três campi da Universidade Federal de Roraima, onde ocorreram as atividades do Seminário, a organização promoveu, também, uma experiência na Terra Indígena Raposa Serra do Sol – a maior reserva indígena do país e uma das maiores do mundo.
“Nós tivemos a oportunidade de conhecer a fronteira lá de Roraima, foi muito interessante essa vivência, a experiência de ver como é o cotidiano daqueles professores, como eles fazem o trabalho de pesquisa e extensão, próximos das comunidades. Então a gente andou de balsa, mais de três horas de estrada de chão, para chegar na Raposa da Serra do Sol (leia mais aqui), que é território indígena. Tem toda uma história envolvida de luta para conseguir preservar esse território, que é muito grande, são 1.747.464 hectares. Nós tivemos uma experiência turística com o povo Macuxi, que nos recebeu com defumação de ervas, para que a gente deixasse as coisas ruins e ficasse bem para as atividades, depois fizemos algumas oficinas, pintura com jenipapo, culinária com a damorida (peixe), oficina de arco e flecha, trançado com fibras, panelinha de barro. A gente teve a hospitalidade do povo Macuxi, que nos ofereceu um almoço, foi uma experiência única e importante, porque nos mostra o Brasil de fato e o que os nossos colegas vivem”, contou Sacco.
Também professor da UFMT e diretor da Regional Pantanal do Andes-SN, o professor Breno dos Santos também relatou a vivência. “Houve um momento de grande importância, de conhecimento da realidade da multicampia da própria Universidade Federal de Roraima. A gente conseguiu fazer um evento que ocupou três campi, em municípios diferentes de Roraima, e também podemos, no último dia do evento, fazer uma visita política à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que é uma região que ocupa uma parte considerável de Roraima e que tem se colocado com um desafio para o próprio entendimento do papel do universidade naquela região, porque, por mais que exista a possibilidade grande, territorial, entre a capital, a universidade e o território indígena, ainda há uma lacuna grande de como a universidade pode se relacionar de forma adequada, qualitativa, com esse território. Então a visita à comunidade da Terra Indígena Raposa Serra do Sol foi um elemento importante do nosso Seminário e colocou em contato, na prática, o que é viver a multicampia, a realidade de fronteira, num espaço em que a política pulsa na luta dos povos indígenas e na resistência ao avanço do capital nesses espaços”, destacou.
Como a Terra Indígena Raposa Serra do Sol fica próxima à fronteira com a Guiana Inglesa, os docentes tiveram, ainda, a possibilidade de conhecer o município de Lethem. “A gente percebeu como é a essa localidade de fronteira onde se falam muitos idiomas, porque Roraima faz divisa tanto com a Venezuela quanto com a Guiana Inglesa, então é uma região onde de fala espanhol, inglês, português e todas as línguas dos povos originários que vivem ali. Há uma complexidade de linguagem que a gente percebe do local. Então é um tanto mais desafiador estar nesses locais, conseguir exercer o nosso trabalho. As atividades culturais sempre são muito importantes. Nós tivemos cantores e poetas locais, um deles afirmou, num poema, que o maior defensor da floresta amazônica é o mosquito da malária, inimaginável para quem não vive essa realidade”, observou Sacco.
As condições de trabalho como centralidade
Diante de todo o exposto, as condições de trabalho, como sempre, se apresentam como centralidade do debate. Esse foi o destaque do professor Breno dos Santos, diretor da Regional Pantanal do Andes-SN e também um dos coordenadores nacionais do GT Multicampia e Fronteira.
O professor Breno dos Santos também é um dos coordenadores do GT Multicampia e Fronteira do Andes-SN
“Eu penso que o destaque central do 2º Seminário Multicampia e Fronteira foi a oportunidade para a categoria poder discutir questões relativas a condições de trabalho, orçamento das universidades, como orçamento impacta na multicampia, e também questões relativas à disparidade entre aqueles trabalhadores e trabalhadoras que estão nos centros principais do país, nos grandes centros, e aqueles que estão nas regiões consideradas periféricas. Isso se demonstra pela disparidade, por exemplo, do custo de vida, nas condições de transporte e deslocamento, nas condições de acesso e permanência de docentes, discentes, técnicos, e também nas condições de fixação docente em locais muitas vezes não tem uma estrutura de saúde, transporte, de vida social de garanta uma permanência confortável para a docente e o docente nesse espaço. Diante desse debate foi reivindicado que se aprofunde ainda mais a análise de como a questão orçamentária tem impactado as condições de trabalho, as condições estruturais da atividade docente nesses espaços, mas que também se reforce no âmbito do sindicato nacional a defesa de que, sem desviar do horizonte da carreira única, se possa reivindicar um adicional para atividades penosas para os docentes que trabalham nessas condições. Esse é um debate que vem sendo feito nos espaços deliberativos do Andes, e foi feito também nesse seminário, inclusive com a indicação de que a coordenação nacional do GT possa fazer um levantamento sobre as propostas de lei que estão em tramitação acerca desse tema, e que isso possa, inclusive, surgir no debate do Setor das Federais, para pensar a pauta de negociação junto ao Governo Federal”, concluiu.
Luana Soutos
Assessoria de Imprensa da Adufmat-Ssind
Fotos: Andes-SN