Imagem: Flávio André
A Adufmat-Ssind protocolou, nessa terça-feira, 08/02, ofícios solicitando audiências com autoridades locais para tratar do assunto e a carta denúncia será divulgada em coletiva de imprensa na quinta-feira, 10/02
Mais de cento e sessenta entidades assinam uma carta denúncia contra a instalação do Porto Barranco Vermelho no município de Cáceres, região do Pantanal mato-grossense. Apesar das cento e onze pendências apontadas pela Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema/MT) e dos riscos, apontados por técnicos e especialistas, ao bioma de importância internacional, autoridades e deputados ligados ao Agronegócio se articulam para viabilizar o projeto.
A maior superfície alagável do mundo, que abrange três países e tem áreas reconhecidas internacionalmente desde a década de 1990 pela ConvençãoRamsar, que reúne sítios de áreas úmidas de importância internacional que precisam ser preservados, está ameaçada.
Para escoar a produção do Agronegócio, o setor empresarial e seus agentes públicos já aprovaram a licença prévia para a instalação, via Conselho Estadual do Meio Ambiente do Mato Grosso (Consema-MT), e movimentam o Projeto de Lei 03/2022, na Assembleia Legislativa, com o objetivo de alterar a Lei no 8.830/08, que dispõe sobre a Política Estadual de Gestão e Proteção à Bacia do Alto Paraguai no Estado de Mato Grosso.
Preocupadas com as consequências dessa investida, apontada por diversos estudos, mais de cento e sessenta entidades marcarão presença, essa semana, em diversas frentes, para evitar mais este ataque ao Pantanal, que ainda sofre as consequências dos prováveis atentados dos últimos dois anos – vide Operação Mataá, deflagrada pela Polícia Federal.
Na carta - que será lançada em uma coletiva de imprensa na quinta-feira, 10/02, às 9h, no auditório da Adufmat-Ssind -, um dos documentos de base é o parecer técnico sobre a Hidrovia Paraguai-Paraná, elaborado pela pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Pantanal/UFMT, Dra. Débora Fernandes Calheiros. “Nas conclusões, a pesquisadora nomeia de forma profunda e detalhada que a criação da hidrovia colocará em risco: a Unidade de Conservação Federal – Estação Ecológica de Taiamã; o Parque Estadual do Guirá localizado junto a foz do Rio Cuiabá; o Parque Nacional Pantanal Mato-grossense (Parna), este considerado como Sítio Ramsar em 1993 – sítio de área úmida de importância internacional pela Convenção Ramsar de Conservação de Áreas Úmidas”.
Por que a correria?
A professora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat/ Cáceres), Solange Ikeda Castrillon, doutora em Ecologia e Recursos Naturais, tem acompanhado de perto o processo e afirma que há uma contrariedade na aprovação da Licença Prévia pelo Consema/MT. “Está sendo aprovada uma licença pontual, mas que dependerá do uso do rio como uma via para escoamento. Licenciar estes processos separadamente não faz sentido. É preciso mensurar os impactos que a ampliação do escoamento pelo rio vai causar. Além deste porto, ainda se propõe o licenciamento e a reativação de mais dois portos, na mesma região”, alerta.
Além disso, a especialista observa que o pantanal é regido pelo pulso de inundação, e a biodiversidade do sistema depende deste pulso. “Para a implementação não de um porto, mas das atividades no rio, como uma via que terá seu tráfego ampliado, haverá necessidade de adequações, principalmente relacionada à dragagem em pontos sensíveis, como próximo a Estação Ecológica de Taiamã e Parque Nacional do Pantanal. Mudanças que naturalmente ocorrem como nas curvas dos leitos dos rios, se ampliam com a pressão de maiores embarcações. Estes impactos podem mudar o pulso de inundação. Como comunidade científica, devemos exigir que, como lançamos em uma declaração internacional, no dia das áreas úmidas, os estudos de viabilidade socioambiental devem incluir informações que contemplem toda a navegação, tanto nos trechos imediatamente comprometidos do rio quanto em toda a bacia. Deve também incorporar o caráter internacional do rio Paraguai, que envolve as populações e territórios dos países inevitavelmente interessados e afetados pelos impactos de um rio e bacias compartilhadas”, critica a docente.
Imagem: Flávio André
Além das entidades que assinam a carta denúncia, ligadas ao campo científico, social, político e até religioso, a comunidade local também demonstrou contrariedade ao projeto, realizando manifestações no dia da reunião em que o Consema aprovou a licença. Entre os grupos presentes, comunidades tradicionais do pantanal, pescadores e ribeirinhos exigiram ser ouvidos e criticaram a inexistência de consulta pública.
“Os habitantes do Pantanal estão muito preocupados, porque reconhecem que não se trata somente de um prejuízo trabalhista, mas por não dissociarem cultura e natureza, reconhecem que há um perigo biocida, além da morte de porções não vivas, porém vitais à dinâmica ecológica planetária”, afirma a professora Michèle Sato, pesquisadora do Grupo Pesquisa em Educação Ambiental, Comunicação e Arte (GPEA), da Universidade Federal de Mato Grosso.
Também como lutadora social, a professora destaca que, muito embora a instalação tenha um local demarcado, os problemas não serão limitados. “Sabemos que os problemas originados deste Porto não terão ação somente local, mas se espalharão pelos Pantanais, pelos territórios mato-grossenses e quem sabe, pelo mundo, já que somos um sistema conectado na Terra, sem confins demarcados quando consideramos os dilemas socioambientais. O ambiente não possui fronteiras”, aponta.
“Temos diversos exemplos de descaso e maltrato às comunidades tradicionais, povos indígenas ou diversos outros grupos sociais em situação de vulnerabilidade em todo o mundo. Há diversos exemplos em regiões de mineradoras que colocam o Brasil em terceiro lugar de conflitos socioambientais, além de ser o campeão em assassinatos de ambientalistas. Trabalho escravo pelo agronegócio, as disputas de terras por grileiros principalmente na Amazônia, ou os conflitos indígenas gerados pelo acesso à água são alguns exemplos. No Brasil, estes conflitos se avolumam e se intensificam nos últimos 3 anos em função da má política do governo federal”, destaca ainda a professora.
Argumentos falsos
As reações de alguns entes públicos e parte da população que defende a instalação do Porto como sinônimo de “progresso” também preocupam os especialistas. Sobre isso, Sato e Ikeda são taxativas: é falsa a concepção de que o Porto traria desenvolvimento à região.
“O avanço econômico é tido como positivo, mas é uma noção equivocada, principalmente porque a riqueza do agronegócio não é solidária, muito menos compartilhada. Uma dúzia de pessoas controlam 50% do planeta, segundo o último relatório de desigualdades da Oxfam”, diz Sato.
Para Ikeda, o discurso de avanço econômico para a proposição de grandes empreendimentos não beneficia a todos. “A pergunta é sempre avanço econômico para quem? Vemos essa história repetindo, constroem os empreendimentos, não ouvem os atingidos, a população local, fazem promessas de empregos e desenvolvimento. No final quem está no território é quem sofre as consequências dos impactos. Certamente os empresários que nem sempre ficam expostos ou são da região, terão os lucros. Mas se, nesse caso, impactar de forma irreversível o rio Paraguai e consequentemente o Pantanal, o que sobra para a população local?”, questiona.
Para o deputado estadual Lúdio Cabral (PT), cujo mandato representa uma das entidades que assinam a carta denúncia, a hidrovia é insustentável inclusive do ponto de vista econômico. “O processo de escassez progressiva de água compromete qualquer possibilidade de navegação nessa escala no Pantanal. E outra coisa, é um tipo de atividade que concentra renda e riqueza, não gera emprego, não gera trabalho, não distribui renda e riqueza. A planície pantaneira tem outra vocação, que é o ecoturismo, a navegação de turismo pelas chalanas, a pesquisa científica, a conservação de uma relação saudável com a biodiversidade. Há muitos outros caminhos para tornar a vida tanto da população pantaneira quanto dos municípios do entorno do Pantanal, há outras alternativas para gerar emprego e renda, com qualidade, para a população”.
O argumento de que as tecnologias atuais incidiriam o mínimo possível sobre o Pantanal também não é aceito tanto pelos pesquisadores quando pelos movimentos sociais, tanto que o esforço para alterar da Lei estadual 8.830/08 visa modificar, justamente, o trecho que impede a instalação de empreendimentos de “atividades de médio e alto grau de poluição e/ou degradação ambiental”.
“Veja como há necessidade de uma avaliação ambiental integrada de todo o rio para a instalação da navegação de grande porte neste tramo norte. É uma região com baixa declividade e muitos meandros que determinam um escoamento lento das águas contribuindo para a existência desta imensa área úmida. Até discursos como estes dos que defendem o empreendimento demonstram isso. Se há tecnologia que permita isso, não foi discutida, precisa ser debatida, e licenciar os portos separadamente não engloba os estudos necessários sobre os impactos da hidrovia ou mesmo propostas que amenizem estes impactos”, destaca Ikeda.
E quanto às autoridades?
Enfático, Cabral afirma que a instalação de um terminal portuário no rio Paraguai representa um golpe final na existência do Pantanal. “O rio Paraguai é o principal provedor de águas para a planície alagável do Pantanal e as intervenções que teriam que ser feitas para retificar o leito do rio, explodir os obstáculos naturais ao fluxo de água, elevariam a velocidade desse fluxo e, na prática, esvaziariam o pantanal. Ele ficaria sem água e deixaria de existir como bioma. Um bioma que já sofre várias outras ameaças, as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), o desmatamento da Amazônia que altera o ciclo das águas das chuvas, a escassez progressiva de águas nos rios, a destruição do Cerrado, que armazena a água da chuva ao longo do ano, a destruição das nascentes pela expansão da monocultura ao lado tanto da destruição do Cerrado quanto da Amazônia, a mineração. Há um conjunto de ameaças sofridas pelo Pantanal que precisam ser denunciadas. Por isso o fato de nós nos mobilizarmos: sociedade civil, academia, pesquisadores, ambientalistas, parlamentares, para poder denunciar esse projeto.
Imagem: Flávio André
Para o deputado, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso poderia barrar o projeto, mas não quer. “O Pantanal é um patrimônio da humanidade, não pode ser tratado dessa forma. O rio Paraguai é federal, não faz sentido construir um Porto sem antes a hidrovia existir. Na verdade, essa é uma tática para criar fatos e tornar irreversível a ideia da hidrovia. O parlamento estadual deveria, em defesa do meio ambiente, colocar freios a essas iniciativas, o que infelizmente não acontece porque há um comprometimento político da maioria do parlamento com os interesses econômicos que governam o estado. A Assembleia teria todas as condições para corrigir esses erros e evitar esse processo, mas a vinculação aos mesmos interesses econômicos da maioria do parlamento impede isso”.
Além da carta denúncia, que será protocolada em diversos órgãos públicos e divulgado na imprensa local e nacional, as entidades estão reunindo documentos para propor ações na esfera judicial, e o próprio deputado pretende debater a possibilidade de propor um projeto de lei que proíba esse tipo de iniciativa. No entanto, o mais importante, destacam, é mobilizar a população, a consciência pública, a sociedade civil toda para não deixar que esse processo siga adiante.
Nesse sentido, a Associação dos Docentes da Universidade Federal de Mato Grosso (Adufmat-Ssind), uma das entidades que assinam a carta denúncia, protocolou, nessa terça-feira, 08/02, ofícios solicitando audiências para tratar do assunto com o Governo do Estado, Assembleia Legislativa, Ministério Público Estadual (MPE), Ministério Público Federal (MPF) e Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT). Outras instituições também serão provocadas nos próximos dias.
“Estamos fazendo esses protocolos na expectativa de poder apresentar todos esses documentos, denunciando ações orquestradas para exploração de um território que pertence a um bioma importante para todo o mundo e, assim, possamos pensar formas não só de barrar a instalação desse tipo de empreendimento, mas principalmente fortalecer a preservação desse Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera Mundial reconhecido pela Unesco”, afirma o diretor geral da entidade, Reginaldo Araújo.
Luana Soutos
Assessoria de Imprensa da Adufmat-Ssind