Mais uma Reforma aponta no horizonte como a solução dos problemas do país. Depois das mais recentes, Trabalhista e da Previdência (a sétima nos últimos 30 anos), disputando a vez com a Reforma Tributária, a Reforma Administrativa foi apresentada ao Legislativo no início de setembro.
Na última sexta-feira, 11/09, a Adufmat-Ssind realizou um debate sobre a Reforma Administrativa de Bolsonaro. As servidoras Eliana Siqueira e Ágatha Justen, que atuam nas áreas da Saúde e Educação, respectivamente, foram as convidadas para analisar o que está explícito e o que não está explícito na proposta que visa alterar a Constituição Federal para nivelar, por baixo, as relações de trabalho dos servidores, e ameaça a própria existência dos serviços públicos.
O primeiro aspecto da Reforma observado pela especialista em Administração Pública e professora do Departamento de Administração da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ágatha Justen, foi o político. “O que é uma política de Reforma? É uma proposta baseada num diagnóstico, e nenhum diagnóstico é meramente técnico. Ele é feito a partir de uma perspectiva. Essa Reforma utiliza como argumento que o serviço público não funciona porque é burocrático, engessado, que os servidores públicos não gostam de trabalhar por causa da estabilidade, custam muito, que os governos anteriores aumentaram muito o gasto com pessoal. Mas o que fundamenta tudo isso é o que está na base do neoliberalismo desde a década de 1990. Não começou nesse governo. Tudo isso já é reivindicado pelo capital internacional há anos”, afirmou.
Logo após a eleição de Collor as garantias de direitos inseridas na Constituição Federal, promulgada em 1988, começaram a ser atacadas. Sua campanha já trazia um elefante branco de costas, simbolizando o peso do Estado para justificar as futuras reformas. Em 1990 veio a primeira Reforma Administrativa: a Lei 8031, com o Programa Nacional de Desestatização, em que Collor pretendia privatizar 68 empresas públicas que antes arrecadavam para o Estado e revertiam sua receita à população, e com a reforma passariam a dar lucro a pequenos grupos empresariais.
Collor não conseguiu realizar sua Reforma na íntegra porque renunciou para tentar evitar o impeachment. Mas Fernando Henrique Cardoso deu continuidade ao plano e, em 1995, apresentou a proposta nomeada Reforma de Gestão Pública. Assim, instituiu um modelo de privatização indireta, transformando instituições estatais em empresas por ações, como no caso do Branco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Petrobrás. Além disso, houve abertura para “serviços sociais competitivos”, nos quais saúde, educação, previdência e outras garantias sociais da competência do Estado passaram a ser oferecidas também por empresas privadas.
Desde aí a estrutura estatal brasileira conquistada em 1988 passou a ser desmontada sistematicamente, com justificativas mentirosas voltadas especialmente aos custos, eficiência e estabilidade dos servidores públicos.
Custos
Se o argumento de que o Estado brasileiro é oneroso é verdadeiro, a pergunta que não quer calar é: por que a proposta de Reforma se restringe ao Poder Executivo, onde estão lotados justamente os servidores que entregam os serviços públicos para a população – médicos, professores, assistentes sociais.
Para a médica Eliana Siqueira, que atua na linha de frente de atendimento e se organiza na Rede Médicos e Médicas Populares, para acabar com a mamata, é preciso, antes, saber quem está se beneficiando, de fato, na atual situação.
“Os militares recebem salários altíssimos, e o que eles estão fazendo nessa guerra contra a Covid-19, por exemplo? Eles não deveriam nos ajudar nas guerras? Para não dizer que estão atrapalhando no Ministério da Saúde. No Legislativo são os políticos, que estão trabalhando para quem? O deputado ganha salário de R$ 30 mil. Por que a gente tem um aumento de R$ 60,00 para a população e R$ 5 mil para o Judiciário? Por que aceitar isso se é a gente que paga esses salários? O que precisa mesmo é a gente não aceitar mais! Por que a Reforma atinge apenas o Executivo, onde a grande maioria dos servidores recebe os piores salários?”, questiona a médica.
A professora da UFF chegou a citar exemplos enquanto apresentava quadros comparativos. “Generais, no topo da carreira ganham, em média, R$ 29 mil. Um professor de universidade federal no último nível, com mestrado, doutorado, pós-doutorado, ganha em média R$ 21 mil. Adivinhem vocês quem será afetado pela reforma? O professor.”
Tabela de Variação de gastos com os serviços públicos de 1999 a 2018
Siqueira também afirmou que, enquanto o governo diz que os gastos no serviço público só aumentam, os concursos públicos estão cada vez mais raros. São os próprios servidores brigam para que publiquem o edital e depois deem posse.
“Nenhum governo tem interesse em fazer concurso público, porque não tem como fazer rachadinha com a gente. Na minha unidade, por exemplo, já chegaram duas servidoras novas com indicação política para lugares que já têm servidores”, afirmou.
Salários
Em 2019, Bolsonaro declarou, numa roda de conversa com empresários no Chile, que as leis trabalhistas no Brasil precisam beirar à informalidade. “A equipe econômica nossa também trabalha uma forma de desburocratizar o governo, desregulamentar muita coisa. Tenho dito à equipe econômica que na questão trabalhista nós devemos beirar a informalidade, porque a nossa mão-de-obra é talvez uma das mais caras do mundo”, disse o político.
Essa é a razão da Reforma e da grande maioria das suas ações no governo: reduzir salários e condições de trabalho para agradar o setor privado. “O argumento é que o servidor público ganha salários altos, mas não é verdade. O problema é que o setor privado tem salários indecentes se comparados aos salários dos países pelo mundo”, afirmou Justen.
Utilizando dados do IBGE, a professora demonstrou que a renda per capta do brasileiro que trabalha para o setor privado é de R$ 1.439,00, em média, enquanto a do servidor de nível estadual é R$ 4 mil. “É mais de 100% a mais do que a renda per capta do setor privado. Isso constrange o setor privado. O servidor público não recebe super salários, é o empregador privado que fica incomodado, constrangido com o salário do setor público, porque isso é via de comparação para demonstrar que o trabalhador do setor privado é extremamente explorado e aviltado, ganhando um salário médio que é impossível viver com o mínimo de dignidade em que qualquer cidade do Brasil hoje”, afirmou a professora.
Pirâmides de comparação salarial entre servidores do Executivo, Legislativo e Judiciário.
A Reforma Trabalhista de Temer, em 2017, foi um dos maiores ataque aos direitos trabalhistas dispostos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em mais de 70 anos de existência. Mesmo com mais de três mil alterações até então, naquele ano, os direitos garantidos por lei praticamente foram anulados de uma só vez, a partir da “prevalência do acordado sobre o legislado”.
Esse debate demonstra o quanto os interesses dos trabalhadores dos setores público e privado estão ligados. Quando os governos estão atrelados ao setor privado, todos os trabalhadores perdem.
As convidadas da Adufmat-Ssind afirmaram ainda que a Reforma Administrativa não atingirá apenas os novos servidores, como afirma o governo. “Isso só existe no discurso. A Reforma está sendo feita sabendo que haverá grande quantidade de aposentadorias nos próximos dois anos, quase metade. Será uma substituição grande. Que força os servidores terão para lutar?”, questionou Justen.
Eficiência
A proposta de Reforma Administrativa tem a intenção de desconstitucionalizar os critérios estabelecidos para o atendimento público em nome de uma flexibilidade ou agilidade que o Mercado diz ter – e pensando na quantidade de tempo que se perde para resolver um problema de telefonia, por exemplo, sabe-se que não é real.
As convidadas chamaram a atenção para contradições desse argumento. “Quer engessamento maior do que um teto de gastos por 20 anos? Independentemente da condição financeira do país, das necessidades da população, não se pode mexer nos recursos da saúde, educação, infraestrutura. Mas no que diz respeito ao pessoal é possível? Dessa forma os servidores aparecem como os únicos responsáveis pelos problemas dos serviços públicos”, avaliou Justen.
Siqueira utilizou os exemplos de privatização em Mato Grosso. “Com a implementação das Organizações Sociais, privatizaram todos os hospitais regionais. Ao final, as unidades ficaram todas sucateadas, sugaram tudo e deixaram para nós apenas as dívidas. Quem cuida das pessoas somos nós, servidores. O governo precariza justamente para vir com essa pecha de que nós precisamos privatizar para ter mais eficiência”, argumentou a servidora, incluindo uma provocação: “se não precisa de concurso público para gerir, para que eleição se a gente pode ter uma licitação e avaliar qual prefeito pode gerir nossa cidade da melhor forma e com o menor custo?”
Estabilidade
A estabilidade no serviço público é um dos pontos mais questionados pelo setor empresarial e seus representantes nos governos. Para quem conhece a história, representa, na verdade, condição essencial para superar um estado patrimonialista, clientelista, e coronelista, como o brasileiro. É dessa forma que se pode evitar que serviço público volte a ser cabide de emprego, como exemplificou Siqueira. Para Justen, a estabilidade não é uma reivindicação progressista, um direito trabalhista, mas condição de existência de um Estado Republicano.
“O servidor público cumpre funções que incomodam. Ele executa funções públicas, lida com dinheiro público. Precisa ter autonomia, precisa ser blindado de pressões políticas, de interesses privados. O que permite que o servidor realize o serviço público de maneira adequada é a estabilidade”, disse a docente.
Sem a estabilidade, os governos utilizam o serviço público como bem entenderem. “Não estou inovando, isso acontecia no passado. Não existe eficiência sem estabilidade”, disse a professora, citando exemplos registrados em um trabalho orientado: médicos fazendo plantões de 24h durante sete dias da semana, contas de luz, água, e outras pagas sempre com atraso, gerando multas exorbitantes desnecessárias, além de medicamentos superfaturados.
Com os serviços públicos como barganha, até vaga no hospital para a sobrevivência das pessoas corre risco de virar questão de disputa política.
Também é omitido pelo governo, de forma conveniente, que existem critérios de produtividade no setor público, além de muitas demissões. “Na universidade, docentes que não cumprem esses critérios não ascendem na carreira, ficam marginalizados. Não podem participar de bancas, etc”, afirmou Justen.
Na Saúde pública, a estabilidade é essencial até para a garantia de respeito aos procedimentos médicos adequados, alertou Siqueira. “A estabilidade é necessária para eu poder dizer que não vou passar cloroquina para os meus pacientes. As queimadas na Amazônia são outro exemplo. Quem eles puderam demitir no INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], eles demitiram”.
Os critérios de produtividade quantitativos, utilizados pelo Mercado, também não se comparam aos qualitativos, utilizados pelo Serviço Público. “Um paciente com o pé comprometido, por exemplo, o serviço público vai querer recuperar, o setor privado vai querer amputar para gerar número e medir produtividade. Não tem como comparar qualidade e quantidade. Critério de produtividade quantitativo é esse de curar o pé ou cortar, é uma distorção. A falta de produtividade não tem absolutamente nada a ver com a estabilidade. Eu vejo que as pessoas mais dedicadas são justamente as concursadas, que têm uma carreira pela frente, que sabem que, se não cuidarem dos equipamentos, da medicação, não conseguirão continuar realizando seu trabalho”, comentou a médica.
Ameaça à existência dos Serviços Públicos
Justen fez questão de dizer que a Reforma Administrativa não representa apenas um ataque a direitos, mas, antes de tudo, uma ameaça às condições elementares e essenciais para a existência de uma administração pública eficiente.
Além de flexibilizar a gestão de pessoal para poder demitir, pressionar o servidor, a proposta apresentada pelo governo também é cheia de “obscurantismos”, entregando nas mãos do Executivo decisões importantes como a definição do que sejam “cargos típicos de estado”, e a extinção de cargos e instituições. “Várias questões serão definidas depois, pois a proposta indica como ‘objeto de lei específica posteriormente’. Quer dizer, nós vamos aprovar uma coisa que nem sabemos o que é direito, não se sabe quais critérios”, pontuou a professora da UFF.
Por fim, o debate explorou formas mais justas de aumentar os recursos do Estado, concluindo que, se o governo tivesse interesse real de garantir mais recursos públicos para entregar serviços melhores à população, se debruçaria sobre uma Reforma Tributária que corrigisse disparidades, com vistas a diminuir a desigualdade. Taxar grandes fortunas seria um exemplo nada revolucionário. “O jatinho não é taxado no Brasil, não paga imposto. O Uber tem que pagar imposto, o carro é tributado”, exemplificou a docente.
A cobrança das dívidas da Previdência também foi apontada como boa alternativa para arrecadar mais recursos. Os bancos devem bilhões de reais e foram os menos afetados pela pandemia, garantindo o lucro de R$ 1,2 trilhão nesses seis meses de caos absoluto entre a população.
Além disso, todos os anos o Congresso Nacional aprova perdões e isenções fiscais a empresas privadas, causando prejuízos bilionários aos cofres públicos.
Diante dessas verdades, os trabalhadores precisam se organizar para desmascarar o discurso do governo, demonstrando que a luta contra a Reforma Administrativa não é corporativista e não combate privilégios. A Reforma Administrativa é um projeto de destruição do Estado.
A íntegra do debate “A Reforma Administrativa é o fim da mamata?” está disponível nas páginas oficiais da Adufmat-Ssind no Youtube e no Facebook. Clique aqui para assistir.
Luana Soutos
Assessoria de Imprensa da Adufmat-Ssind