Às margens do rio Juruena, relatos de histórias centenárias. Um senhor de estatura baixa, cabelos grisalhos e voz macia, fala, num português com sotaque marcado, o que ele e sua família viveram ali. Doenças que dizimaram milhares de índios até então isolados, a intervenção da igreja, violentas disputas pelo território... a história dos povos originários do Brasil diante dos olhos.
Num misto de orgulho e tristeza, as palavras de Rafael Tsakdk Rikbaktsa, de 64 anos, evidenciam diversos momentos de luta pela vida, por respeito, e por dignidade. Ainda sob influência do chamado período de expansão, iniciado pelo governo Getúlio Vargas na década de 1940, ele conseguiu se salvar do processo de extermínio de populações inteiras que ocupavam o interior do território nacional. Em nome do “progresso”, projetos de ferrovias, rodovias, e a distribuição de terras para produção de monocultura e exploração da madeira atropelaram tudo e todos que estavam no caminho. Foi nesse contexto que Tsakdk e outros “parentes”, como se chamam os indígenas de diferentes etnias, estabeleceram os primeiros contatos com o "homem branco" na região de Brasnorte, noroeste do estado de Mato Grosso.
Quando perdeu os pais, vítimas das doenças disseminadas por aqueles que avançavam sobre suas terras, Tsakdk era uma criança. Ele e os irmãos, também pequenos, esperaram durante dias, às margens do mesmo rio em que agora conta a sua história, que algum resgate viesse. O padre missionário João Evangelista, que já havia estabelecido contato com os habitantes da região, os levou para o Utiariti, colégio interno onde foram obrigados a “esquecer” o passado. Com a desativação do internato no final da década de 1960, voltou para o local de origem e fundou, junto ao seu povo, Rikbaktsa, a aldeia da Curva. Os irmãos ficaram pelo caminho. Um morreu após sofrer queimaduras em um incidente; a outra fugiu do internato. Essa, quase 50 anos depois, o índio ainda tem a esperança de reencontrar.
Rikbaktsa significa “povo guerreiro”. Conhecidos também como “canoeiros”, pela intenção ligação com os rios que banham a região em que vivem, ou “orelhas de pau”, a bravura desse povo se destaca entre as demais características. As guerras, nem sempre armadas, garantiram aos Rikbaktsa a sobrevivência e manutenção da cultura, a conquista pela demarcação de três territórios (Erikbaktsa, Escondido e Japuíra), e outras vitórias com relação às investidas para a construção de rodovias e hidrovias no território já demarcado. O espírito guerreiro do povo, afirmam, garantiu aos Rikbaktsa a conquista de respeito.
Mas agora, o respeito historicamente conquistado terá de ser reafirmado. Representantes do governo federal já estiveram na região para informar sobre a construção de mais duas hidrelétricas no Rio Juruena, com impactos que incluem o alagamento de boa parte do território, disseminação de doenças, contaminação do solo, modificações irreparáveis da fauna e flora local, comprometimento da produtividade da terra, dentre outros. Tudo isso está escrito na Avaliação Ambiental Integrada elaborada pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), entregue aos Rikbaktsa e aos moradores do distrito de Fontanillas, que também será atingido.
Por esse motivo, os dias 20 e 21/08 foram de intenso debate na aldeia da Curva, na Terra Indígena Erikbaktsa, que abriga quase 20 aldeias em Brasnorte. O encontro reuniu o povo Rikbaktsa dos três territórios demarcados, moradores de Fontanillas, representantes dos índios Manoki Myky, estudiosos e militantes da causa indígena.
“O governo chega aqui, quer falar bonito, não é isso ou aquilo, mas a realidade é o rio seco”, reclama o cacique da aldeia da Curva, Jaime Zeihamy, sinalizando que as intervenções no Juruena já causam alterações no rio, e que outras só vão agravar a situação. Nunca, de acordo com os indígenas, o rio recuou tanto da margem como esse ano.
Em março, movidos por incertezas e pelas especulações dos últimos dez anos, a população que será atingida elaborou uma carta exigindo informações sobre o processo. “Queremos conhecer os rostos daqueles que querem tirar de nós as nossas vidas, o nosso lugar, pois sabemos que nada pagará o nosso prejuízo, a perda de nossa história, a dispersão dos nossos costumes e a riqueza natural do nosso lugar, do nosso chão”, dizia o documento. Na ocasião, a necessidade era saber se realmente havia algum projeto nesse sentido. Cinco meses depois, munidos de informações oficiais e discussões mais aprofundadas, a postura é incisiva: o povo Rikbaktsa e os moradores de Fontanillas não querem a construção de mais hidrelétricas no Rio Juruena.
“Branco não está preocupado. Se a usina for construída, nós vamos perder tudo”, disse uma das moradoras mais antigas da aldeia, Gertrudes Ateata. Ela utilizou a tragédia de Mariana como exemplo do que a ambição pode causar.
As 529 páginas de linguagem técnica confundem, mas não enganam. O engenheiro eletricista e professor da Universidade Federal de Mato Grosso, Dorival Gonçalves, foi convidado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) para dar apoio técnico aos Rikbaktsa. Sua primeira constatação foi de que tanto os índios quanto os moradores de Fontanillas estão muito bem informados sobre o que pode acontecer com a construção das hidrelétricas. “São 102 hidrelétricas propostas para a Bacia do Tapajós, do qual o Juruena faz parte. Seis delas seriam diretamente no Juruena. Se construídas, afogariam o rio em mais de 600 km, provocando um novo comportamento em todo o seu curso, e transformando-o em um monte de caixas d’águas”, explicou o engenheiro.
Para além dos impactos negativos provocados pela estrutura e alagamentos de uma obra, há uma questão ainda mais comprometedora: os projetos visam a construção de sequencias de hidrelétricas ao longo do rio, à exemplo dos rios Aripuanã, Uruguai, Jamanxim, Tocantins e Araguaia, cujos gráficos seguem abaixo.
Mapa para ilustrar o que seria o Complexo Juruena após a construção de todos os projetos de hidrelétricas. O desenho foi elaborado pelo professor Dorival Gonçalves durante a reunião com os Rikbaktsa, realizada em 21/08/16.
Mesmo que os interessados aleguem que alguns tipos de hidrelétricas trazem prejuízos reduzidos, como é o caso dos reservatórios a fio d’água, a sequência de usinas modifica toda a extensão das bacias. A mudança de velocidade das águas, por exemplo, provoca uma cadeia de reações a partir da dinâmica que cada tipo de peixe exige para reprodução da espécie.
“Esse deve ser um tema recorrente de debate nas escolas, na comunidade. Pode gerar um programa para estudar esse problema direto”, sugeriu Gonçalves.
Já existem duas hidrelétricas no rio Juruena, e a proposta é de que outras quatro sejam construídas. Todos os 27 municípios e os 20 povos indígenas que vivem na extensão do rio poderão sofrer as consequências desses projetos ao longo do tempo.
As crianças Rikbaktsas brincam e pescam no rio do amanhecer ao entardecer. Os peixes, a terra que oferece centenas de frutos e ervas que alimentam e curam, a água saudável para consumo e banho, além das histórias guardadas às margens do Rio Juruena são a vida daquele povo.
Para os anciãos da aldeia da Curva, é chegado o momento dos jovens demonstrarem que trazem consigo o potencial guerreiro de seu povo, enfrentando com bravura essa nova batalha. A missão de proteger o território sagrado, que garante o sustento e a manutenção da cultura, e que foi conquistado à duras penas pelos ancestrais, tem agora uma nova etapa. As palavras de Paulo Skiripi ilustram bem o sentimento: “branco quer acabar com tudo por ganância. Mas nós defendemos essa terra com artesanato, pintura, arco, flecha e facão. Agora é a vez dos jovens”, garante.
Luana Soutos
Assessoria de Imprensa da Adufmat-Ssind