O debate sobre temas ligados à deficiência física ainda ocupa um lugar periférico na universidade. A afirmação é de Livia Barbosa, docente da Universidade de Brasília (UnB), que estuda, entre outros assuntos, bioética, pessoas com deficiência. Ela participou, na manhã de sábado (29), do painel “A luta contra o capacitismo nas Instituições de Ensino Superior”. O evento aconteceu no Auditório da Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal de Santa Maria (Sedufsm – Seção Sindical do ANDES-SN).
A atividade foi organizada por três grupos de trabalho do ANDES-SN: de Política Educacional (GTPE), de Seguridade Social e Assuntos de Aposentadoria (GTSSA) e de Política de Classe, questões étnico-raciais, Gênero e Diversidade Sexual (GTPCEGDS). Também participou dessa discussão Anahi Guedes de Mello, antropóloga e cientista social, professora do departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
A incipiência dessa discussão, ressalta Livia, tem uma relação direta com o sistema político e econômico no qual vivemos. Segundo ela, citando diversos estudos, a prioridade no capitalismo são as necessidades do próprio sistema, que se sobrepõem às necessidades das pessoas. Pelo fato de que, para o capitalismo, o que importa é a produtividade máxima, ou seja, quem tem dificuldade para produzir, torna-se desimportante. Nesse sentido, ela entende que existe uma hierarquização dos corpos, na qual, o funcionamento corporal é definido a partir de uma expectativa de normalidade, através de um conceito chamado de “corponormatividade”. Ou seja, a normalidade de um corpo é ter dois braços, duas pernas, dois olhos, dois ouvidos. O diferente disso é visto de forma estranha.
Para a pesquisadora, é preciso rever alguns parâmetros na discussão sobre deficiência física, em que os que falam sobre o assunto são pessoas que não têm essas limitações. Conforme Livia, as desvantagens existentes para os deficientes não são naturais, elas são produzidas socialmente, da mesma forma que também são construídos limitadores para mulheres, negros. Ela dá alguns exemplos: é ruim ser surdo, mas numa sociedade em que não é difundida a Língua de Sinais (Libras); é ruim ser cego em um ambiente em que a arquitetura não é preparada com elementos táteis. No entanto, frisa a docente, em virtude da legislação existente, as universidades têm como tarefa prioritária discutir a deficiência.
Capacitismo
Anahi Mello, professora da UFSC, e que vive na pele as barreiras impostas à deficiência física. Por ser surda, iniciou sua explanação destacando, assim como Livia Barbosa, que o “capitalismo hierarquiza os corpos”. Com o auxílio de lâminas projetadas em um datashow, ela destacou de forma simples o conceito de capacitismo. Conforme o conceito trazido por ela, o capacitismo está vinculado a uma postura preconceituosa que hierarquiza as pessoas em função da adequação dos corpos à “corponormatividade”.
Amplificando a compreensão do termo, Anahi ressaltou que o capacitismo é uma “categoria que define a forma como as pessoas com deficiência são tratadas, de modo generalizado, como incapazes de produzir, de trabalhar, de aprender, de amar, de cuidar, de sentir desejo e ser desejada, de ter relações sexuais, etc.”. Esse modo de ver, segundo a professora, “aproxima as demandas dos movimentos de pessoas com deficiência a outras discriminações sociais, como o sexismo, o racismo e a homofobia”.
A antropóloga lotada na UFSC trouxe em sua análise uma crítica às origens da Antropologia no Brasil. Segundo ela, o mito da “purificação racial” marcou os estudos dessa ciência social no início do século XIX. A ideia “eugênica” de “inteligência” (Q.I) era associada a raças superiores, inteligentes, enquanto as raças inferiores eram vistas como “retardadas”.
Dessa forma, foi difundida a visão de que “retardamento mental” mobiliza a categoria deficiência e a vincula a ideia de raça. Logo, a miscigenação entre as raças “superiores” e “inferiores” deve ser evitada para não haver um “emburrecimento” das populações humanas.
Deficiência x capacidade
Voltando ao ponto em que se fala sobre um sistema capitalista que hierarquiza os corpos, Anahi desvela que a “ordem natural das coisas” é uma corporalidade funcional e capacitada, ou seja, um corpo sem doenças ou deficiências. Conforme o entendimento dela, a partir de seus estudos, a noção de deficiência se materializa e se retroalimenta através de práticas sociais e discursos que a colocam como o “oposto da capacidade”.
Saudação sindical e classista
Antes da abertura do seminário, formou-se uma mesa com lideranças sindicais. Raquel Dias Araújo (1ª tesoureira do ANDES-SN), Carlos Pires (1º Vice-Presidente da Regional RS do ANDES-SN), Julio Quevedo (presidente da Sedufsm-SSind), Clóvis Senger (Atens), Alcir Martins (Assufsm), Marília Bairros (DCE) e Daiane Tucum (CSP-Conlutas regional Centro) fizeram a saudação e as boas-vindas ao evento.
Avalição
Caroline Lima, 1ª secretária do ANDES-SN e uma das coordenadoras do GTPCEGDS, avaliou positivamente o evento e ressaltou a importância da participação de docentes deficientes no evento. “Conseguimos cumprir a tarefa iniciada com debates dentro dos GTs do ANDES-SN. O seminário trouxe uma discussão teórica da necessidade de debater capacitismo dentro das instituições de ensino e dentro dos sindicatos. Houve docentes deficientes participando do seminário. Ouvimos que o ANDES-SN conseguiu tirar o debate do capacitismo do tema de motivação e autoajuda, levando o debate para o mundo do trabalho e para a universidade”, comenta.
“Temos que iniciar um processo de adequação de nosso sindicato a essas necessidades, como criar um mecanismo que dê conta da demanda de docentes deficientes em Congressos e Conads. Temos que ampliar a discussão sobre a lei que garante a inclusão de docentes deficientes nas universidades. O capacitismo é uma discussão interseccional, que acaba entrando no debate das opressões. O preconceito contra o docente e o servidor deficientes é muito grande ainda. O seminário trouxe elementos para essa reflexão. Em uma conjuntura de retirada de direitos, o seminário do capacitismo reafirma que o Sindicato Nacional continua defendendo os interesses da categoria e fazendo uma defesa política não só da inclusão, mas do enfrentamento à violência e ao preconceito dentro das instituições de ensino”, completa Caroline.
Fonte: Sedufsm-SSind (com edição de ANDES-SN).