Segunda, 04 Janeiro 2016 12:09

ANO DA LAMA

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Roberto Boaventura da Silva Sá

Dr. Jornalismo/USP; Prof. Literatura/UFMT 

E lá se vai 2015 para o túnel do tempo! Vivemos suas últimas horas. Por isso, se eu tivesse a tarefa de resumir 2015 para nós, brasileiros, em um único vocábulo, com certeza eu diria que “lama” foi a palavra do ano. E que palavra!

Por questões óbvias, excluindo a referência a Lama, grafada com letras maiúsculas por se tratar do chefe supremo da religião budista, resta-nos outras indicações que “lama” – escrita agora com letras minúsculas – pode nos oferecer. E ela nos oferece pelo menos dois caminhos semânticos: um denotativo; outro conotativo.

Pelo primeiro, tradicionalmente, identificamos “lama” como aquela “mistura viscosa, pegajosa, de argila, matéria orgânica e água; terra molhada e pastosa; barro, lodo, vasa”; rejeito de vários minérios, em geral reservado em imensos depósitos construídos para essa finalidade exclusiva.

Pelo segundo viés, entramos no universo das figurações. Neste espaço, “lama” abarca tudo o que seja de “caráter daquilo que degrada e envergonha”. Esse tipo de lama está para as ações vis, para os porões do agir humano.

Pois bem. Hoje, falar de lama no sentido denotativo, sem nos esquecer de tudo o que já ocorreu em termos de destruição de povos (principalmente de indígenas) e lugares desde nosso “achamento” em 1500, é falar da tragédia de distritos de Mariana, cravados nas alterosas de Minas Gerais desde o séc. XVIII.

Mas falar dessa tragédia será sempre insuficiente para descrever o que ali ocorreu, ocorre e ocorrerá sabe-se lá até quando. Tudo é tão gigantesco, absurdo e criminoso que, drummondianamente falando, as palavras não dão conta.

Diante das imagens daquela lama descendo rios e riachos que um dia foram doces, arrasando povoados, até se encontrar com o sal do mar, e sem a ele querer se misturar completamente, a sensação de pequenez humana é inevitável; como inevitável é a indignação.

A perplexidade aumenta à proporção que vemos as medidas de reparo dos danos (que jamais serão reparados por completo) demorarem tanto a sair do papel, dos acordos. Minha preocupação é que, como lamas não nos faltam nunca, esqueçamos disso tudo com uma próxima avalanche. E janeiro já está chegando! Logo depois, as águas de março...

Mas piores do que essa lama – que não é coisa pouca – são aquelas ações que vão nos degradando dia após dia como povo de uma nação; que nos degradam como seres humanos. Detalhe: esse tipo de lama já nos é endêmico.

Aliás, perto dessa lama nossa de cada dia, a lama da tragédia de Mariana é um pocinho insignificante de sujeira. E engana-se quem pensa que esse tipo de lama a que estou me referindo restringe-se apenas às ações de nossos políticos. Com raríssimas exceções, a maioria de nós é um poço desse tipo de lama. A depender da ocasião e das oportunidades, uns mais profundos, outros menos. Agora, é claro que é no espaço público onde atuam representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário que a lama de viés conotativo nada de braçada.

Por tudo isso, urge que coletivamente nos esforcemos muito, mas muito mesmo, para entender nosso caráter, sempre e bastante susceptível à corrupção, para superarmos esse estágio de “civilização à brasileira”.

Por conta de tanto mensalões, lava-jatos etc etc etc..., a entrada de um novo ano pode ser um momento para esse tipo de reflexão. Mais do que isso: para a disposição à mudança geral de que todos precisamos.

Assim, finalizo este meu último artigo de 2015 com o mesmo convite que Gonzaguinha já nos fizera um dia: “vamos à luta, rapaziada”. 2016 está inapelavelmente chegando.

Ler 2626 vezes Última modificação em Segunda, 04 Janeiro 2016 12:10