Segunda, 28 Setembro 2015 18:46

DO SACERDÓCIO À PROLETARIZAÇÃO

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“Cada hora, de cada dia, a gente aprende

uma qualidade nova de medo!”

GUIMARÃES ROSA, Grande Sertão Veredas. 

Confesso que não imaginava que a ideia de radicalização, evocada na assembleia de greve dos docentes da UFMT, realizada no dia 17/09/2015, provocasse tanto temor em alguns colegas, a exemplo do que fora manifestado em Carta publicada no Espaço Aberto, do dia 18/09/2015.

É bem verdade que tempos sombrios parecem querer instaurar-se, outra vez, na vida de muitos de nós, afugentando-nos da luta interminável pela conquista de direitos políticos e sociais em nosso país, distanciando-nos do reconhecimento de nós mesmos como sujeitos da própria ação política.

Creio que a organização social do trabalho na universidade, especialmente nos dias de hoje, oculta a sua relação com o mundo real, com a dinâmica do capital em sua etapa globalizada. A produção e a difusão do conhecimento, já faz tempo, deixou de ser um exercício filosófico artesanal diletante (se um dia o foi), praticado em nome do sacerdócio. Cada vez mais o trabalho docente, nas universidades e fora delas, subsume-se aos ditames do mercado nos moldes do capitalismo avançado, reduzindo a sua autonomia intelectual e científica às técnicas de controle e reprodução da ordem social, segundo os interesses das forças hegemônicas.

Sem que nos apercebêssemos, fomos gradativamente reduzidos à condição de trabalhadores assalariados, regidos pela lógica da produção de mercadorias em sentido lato, submetidos à cadeia de produção de bens e serviços. Querendo ou não, somos todos vendedores de força de trabalho no mercado, somos todos proletários modernos, apesar da distinção que gostamos de evocar em relação ao produto do nosso próprio trabalho.

Sei que o desvelamento de nossa condição proletária consiste em um processo difícil, complexo. Trata-se de uma dimensão relacionada ao exercício da própria prática política, nela residem os limites estruturais impostos pela ordem social vigente, impossibilitando-nos de nos reconhecer como sujeitos historicamente determinados.

Todavia, são nos momentos de crise estrutural, como esta que estamos enfrentando agora, que o capital revela as suas formas mais plenas de produção e reprodução social, expondo de maneira mais aberta a força de trabalho ao processo de mercantilização geral em curso na sociedade.

É, também, nos momentos de crise que os trabalhadores reagem às ofensivas do capital no processo de exploração e precarização de seus direitos e conquistas sociais e políticas. A greve é, nesse contexto, o instrumento mais radical de luta empreendida pelos trabalhadores, inclusive pelos setores classificados como trabalhadores abstratos, produtores de bens imateriais como é o nosso caso.

Diante das considerações acima, creio que podemos pontuar alguns elementos relacionados à noção de “radicalidade”, a partir de pressupostos filosóficos. A radicalidade, nessa perspectiva, pressupõe a capacidade de realizar uma reflexão rigorosa e de conjunto sobre os problemas apresentados em uma dada realidade, mas não problemas quaisquer. Nesse particular, cabe então, recuperar a nossa pauta de greve, a centralidade da nossa LUTA.

Desde a sua fundação, o ANDES-SN defende, incondicionalmente, a Educação como um direito social, pública e socialmente referenciada, cabendo às Universidades, em especial, a produção e difusão do conhecimento gratuitamente a todos os segmentos sociais, na perspectiva de sua universalização.

Na contra face da centralidade exposta acima, o que vem ocorrendo é exatamente o seu contrário. As possibilidades de concretização desse direito distanciam-se do horizonte de seus defensores, mediante as ofensivas, cada vez mais agressivas, de governos e agencias de desenvolvimento, a fim de colocar a Educação a serviço da lógica mercantil. As práticas e os instrumentos aplicados são inúmeros e eficazes. Debates e denúncias sobre essa questão já vêm de longa data, em vários fóruns locais e nacionais.

Concomitante, e como parte do processo de desmonte da Educação Pública em geral, e da Universidade Pública em particular, verifica-se a precarização acelerada das condições de trabalho nessa instituição, reveladas, entre outras, pelo desmonte da carreira docente e pelos baixos salários pagos pelos sucessivos governos. É contra isso que estamos em greve. Radicalizar significa, sobretudo, ser capaz de identificar a raiz dessas questões, por meio do debate coletivo entre professores e estudantes, na interface mais geral com a sociedade.

Não se trata aqui de fechar e/ou quebrar laboratórios, tampouco manchar a imagem de nossa instituição. Definitivo e irrecuperável é deixar, pelo medo ou pela omissão, que o patrimônio público seja reduzido tão somente à sanha do lucro desenfreado de alguns em detrimento da perda de direitos da maioria. A Universidade hoje, diferentemente daquilo que supõe alguns, está carregada de interesses privados, de caráter mercadológico. Perdeu a sua dimensão de instituição social, afastou-se da crítica dos problemas da sociedade em que se insere.

Vejamos a greve como a oportunidade de ação pedagógica e política para além dos horizontes de nossos gabinetes de produção científica. Quanto mais negamos a nossa condição de sujeitos coletivos, as nossas entidades de organização política - os sindicatos, os partidos - e os nossos instrumentos de resistência e luta, a exemplo da greve como forma de mobilização e ação político-social, a opressão e precariedade invadem o nosso cotidiano no trabalho e na vida privada.

Como nos ensinam os estudiosos dessa questão, “A proletarização não é apenas proletarização da vida produtiva strictu sensu, mas proletarização da totalidade da vida social [...]”, expressa na perda de direitos, no aumento da exploração da força de trabalho, entre outros.

Vejamos a organização, a mobilização e a pressão coletiva como requisitos para o êxito da ação política. Somente a democratização dos direitos políticos e sociais pode libertar-nos da barbárie em curso, e a socialização do conhecimento como conquista coletiva é imprescindível nesse processo. 

Sirlei Silveira

Professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política/ICHS/UFMT

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