Frederico Lopes - Dep. Matemática/ICET- O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
Corre na Câmara, sob os auspícios do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), um projeto de lei que pretende tornar mais difusa a laicidade do Estado brasileiro, quando não eliminá-la em termos práticos. É o Estatuto da Liberdade Religiosa (goo.gl/wpOQ7O), de autoria do deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), que há cerca de um mês foi oficialmente proposto à mesa da Câmara. O projeto foi elaborado com a ajuda da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), e abonado por dezenas de entidades religiosas. Dada a legenda partidária do deputado, não deve nos espantar que o projeto tenha também o aval do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) e do vice-presidente Michel Temer.
Leis dessa natureza costumam se apresentar como lobo em pele de cordeiro. A redação, que se pretende clara, é na verdade capciosa e sutil em muitos pontos, e não deixa entrever as interpretações preconceituosas e limitadoras que os sábios juristas da Anajure certamente já divisaram, e com as quais pretendem prover à direita religiosa um instrumento de coação e silenciamento de manifestações contrárias à condição laica do estado e à liberdade de expressão.
O estatuto é composto de 50 artigos, dos quais destaco alguns exemplos. O artigo 4 pode legitimar a realização de Pai Nosso coletivo em instituições públicas, em especial nas sessões da Câmara, como já aconteceu: "É livre a expressão e manifestação da religiosidade, individual ou coletivamente, por todos os meios constitucionais e legais permitidos, inclusive por qualquer tipo de mídia, sendo garantida, na forma da Lei, a proteção a qualquer espécie de obra para difusão de suas ideias e pensamentos." Observemos ainda outra sutileza nas primeiras palavras do artigo: quando um membro da comunidade LGBT for discriminado com palavras e atos, o discriminador poderá dizer que foi "livre manifestação da religiosidade", se sua religião mantém, naquele seu livro sagrado, a condenação da homofobia.
Ainda, o artigo 17 cria privilégios trabalhistas regidos por preceitos religiosos, em detrimento da legislação civil laica: "Os trabalhadores em regime de contrato de trabalho têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam, na forma dos artigos 5º, inciso VIII, e 15 da Constituição, nas seguintes condições: I - trabalharem em regime de flexibilidade de horário; II - comprovarem serem membros de igreja ou comunidade religiosa; III - haver compensação integral do respectivo período de trabalho. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se a servidores e agentes do Estado e demais entidades públicas."
Especialmente terrível é o artigo 27, que tira das comunidades indígenas o direito de reagir às novas missões de evangelização que se instalam em suas terras: "É vedado ao Estado e seus poderes públicos imporem limitações quanto ao exercício da liberdade religiosa das comunidades indígenas, mesmo que sob a justificativa de manutenção das tradições locais, sob pena de responsabilização administrativa, cível e penal do servidor ou agente político que der causa a tal violação, na forma da Lei."
O artigo 32 reveste-se de palavras sedutoras em seu início para destilar logo depois suas verdadeiras intenções, que é a transformação de símbolos e datas religiosas em "expressões culturais", e ainda permitir o uso de dinheiro público para impressão de material religioso: "Nos atos oficiais do Estado serão respeitados os princípios da não-confessionalidade e laicidade, sendo resguardadas as manifestações e expressões culturais e religiosas da nação brasileira. Parágrafo único. Para os efeitos do presente artigo, são consideradas expressões culturais e religiosas da nação brasileira, merecendo proteção e respeito: I - a presença de símbolos religiosos ou livros sagrados em prédios pertencentes à Administração Pública Direta e Indireta; II - a exposição de mensagem de cunho religioso em solenidades oficiais; III - a existência de feriados dedicados a ícones religiosos; IV - a divulgação de materiais, impressos ou mídias com conteúdo religioso por parte de órgãos e entidades públicas."
O pressuposto de base da iniciativa é a consideração da religião como algo especial, superior e destacado das demais manifestações demasiadamente humanas. Também fica claro que "liberdade religiosa" deve ser interpretada não como a possibilidade de exercício pacífico da religião, mas como garantia de que religiosos terão a liberdade de fazer o que bem entenderem.
Em tempo: coincidentemente, alguns minutos antes de terminar a redação deste texto, vim saber que um tal de Thad Cochran, senador americano conservador, pretende passar no senado de lá uma lei de "liberdade religiosa" para proteger as pessoas que ajam de acordo com suas convicções religiosas (goo.gl/WmT6D6). Com essa lei, todo tipo de discriminação baseada na fé será devidamente protegida nos termos da lei. Será o mesmo que pretende o Estatuto homônimo dos deputados do PMDB?