Quarta, 12 Junho 2024 09:23

 

 

****

Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
****

 

 

Por Gerdine Sanson
Profa. UFMT Sinop

 

Num momento de greve, em que a mobilização da comunidade acadêmica e da sociedade se intensifica em todas as esferas, sempre surgem perguntas sobre o movimento estudantil do campus. Quando a greve dos servidores foi iniciada, no semestre acadêmico passado, as perguntas portanto recomeçaram, e as respostas aqui em Sinop eram variações do tema “Sinop não tem DCE nem Centros Acadêmicos, aqui os alunos se organizam nas Atléticas”.

A situação é tão grave que muitos consideram as atléticas como as entidades representantes dos estudantes como categoria. Se tudo que os acadêmicos precisassem fosse de festas, gincanas e esportes, talvez pudesse ser mesmo. Até onde tenho conhecimento, Atlética alguma representa aluno com dificuldades de inclusão por ser minoria, por problemas de acessibilidade, por vulnerabilidade econômica, ou em situações de assédio moral ou sexual. Atléticas não têm perfil para debates em torno de educação pública versus privada, direito à moradia estudantil, aumento do valor da refeição no restaurante universitário, dificuldades de transporte público. Atléticas não têm acúmulo suficiente de lutas, debates, discussões e reflexões políticas para representarem adequadamente os alunos em situações de conflito e assimetria de forças. De tanta ingenuidade, acham que dão conta da missão e não avançam um passo além do que alguém lhes diz que é permitido, o que é perfeito e confortável para a administração institucional.

Impossível para mim não lembrar da greve estudantil de 2013, quando o restaurante universitário ainda não estava funcionando, e os acadêmicos sofriam os mais diversos tipos de limitação para conseguirem estudar. Por ter tido uma posição privilegiada de observação – à época eu era representante sindical no campus de Sinop – pude ver o quanto absolutamente nada teria sido alcançado se não fossem aqueles moços e moças que dormiam em barracas espalhadas em frente à Pró-Reitoria do campus de Sinop. Lembro-me de ter tido minha ínfima parte para apoiar o movimento em suas reivindicações. Mas lembro principalmente do dia em que chorei escondido, quando Miller, estudante da Agronomia, veio mais uma vez falar comigo, pois ele era o presidente do DCE naquele momento. Eles precisavam de alguma coisa que não lembro mais, mas lembro bem daquele moço. Magro como era, estava também com a boca ressecada e ferida por tantos dias ao relento nas barracas, nesse clima quase desértico da Sinop na seca. Lembro-me bem do que pensei, que eu deveria ter vergonha de permitir que um estudante nosso ficasse assim exposto a tanta indiferença, tantas dificuldades, para ter o que comer, para ter como estudar e se formar adequadamente. Mas eu não sabia como poderia ajudar mais do que já fazia, não queria interferir se não tivesse certeza de que seria para somar, e não para subtrair a força e as esperanças daqueles estudantes.

E quando recebi a notícia de que eles haviam ido para Cuiabá ocupar a Reitoria da UFMT, fiquei surpresa e preocupada com as consequências, mas, ao mesmo tempo, senti uma imensa admiração. Lembrei de mim quando estudante, quando por certo tempo participei do Centro Acadêmico da antiga Escola Paulista de Medicina, e minha maior preocupação era com a emissão das carteirinhas de estudantes necessárias para o transporte público. Tínhamos bancos para sentar, espaços de convivência, dezenas de laboratórios, disciplinas com vários professores, todos com laboratórios de pesquisa, dezenas de aulas práticas dos mais variados níveis de complexidade. Lá também tinha Atlética e de fato era muito mais ativa do que o Centro Acadêmico, o que, pelo que descrevi, é totalmente compreensível. Nada sabia eu de exclusão, de direitos negados, de precarização, de evasão escolar, de luta enfim… afinal, até torta de chocolate “de marca” serviam no restaurante universitário de vez em quando! Digo isso para evidenciar a realidade de nossos alunos naquele momento, que nem bancos para sentar tinham, e até hoje têm menos do que seria preciso, se nosso ambiente acadêmico estivesse normal.

O movimento estudantil decidiu ocupar a Reitoria por conta da invisibilidade do movimento num campus que deveria ser chamado de “retardado” ao invés de “avançado”, pois de tão longe da sede, era quase que totalmente desconhecido ou excluído desta. Dias e dias dormindo em barracas espalhadas pelo jardim em frente à Pró-Reitoria, sem um nada de retorno quanto às necessidades dos estudantes, fez com que eles tomassem a decisão de fazer o quê? Serem vistos. Greve sem incomodar não resolve, parece que ninguém vê, ninguém se movimenta, e só nada acontece. Aqueles moços e moças foram fazer em Cuiabá o que já estavam fazendo há dias em Sinop: reivindicar o mínimo que precisavam para permanecer na universidade. E por que de tantas greves que já vimos, estou nos lembrando especificamente desta? Porque num determinado momento, no dia 13 de agosto, quando as tensões chegaram ao máximo pois os estudantes bloquearam o setor de protocolo, a Reitoria se viu coagida a ver o que não queria e ter que responder, e ela então respondeu! Como? Entrando na justiça contra o estudante líder do movimento, que nem era o único que ali estava. Sério? Parece coisa de “bolsonarista”, como se diz hoje em dia, não é mesmo? Pois então… só que não era não! Completamente chocados que ficamos, um grupo de professores de Sinop em reunião no sindicato chegou a escrever uma carta à Reitora, em defesa do acadêmico, por conta de tantas contribuições que este já fizera para o campus e para a UFMT como um todo. Que resposta tivemos? O processo não seria retirado! Os alunos que ocuparam a Reitoria voltariam para Sinop com a lição aprendida, em especial seu líder, o acadêmico Miller. O estudante teve que enfrentar o processo judicial e imensas retaliações institucionais para conseguir continuar seu curso e se formar.

Aquele momento passou e, algum tempo depois, eu ainda tinha na memória em alta conta o agora formado, depois de muitas ameaças, engenheiro agrônomo, que um dia foi presidente do DCE. Em algum momento fiquei sabendo de uma bolsa alemã para jovens lideranças políticas, para a qual achei que ele tinha o perfil perfeito. Eu estava disposta a ajudá-lo a aprender o inglês obrigatório, e fazer carta de recomendação e o que mais fosse necessário. Entrei em contato com ele, fiz a sugestão. Esse moço, que tanto admiro, me respondeu “Prof., eu estou cansado… queria poder apenas trabalhar.” Eu compreendi, silenciei e me despedi. Depois, chorei de novo! E também de novo pensei o quanto eu deveria me envergonhar de ver essas coisas acontecerem sem me posicionar. Esse moço, assim como outros, que mereciam ser estimulados em suas qualidades e talentos, são desafiados, satirizados, ameaçados covardemente por aqueles que deveriam lhes fomentar as qualidades quando estão apenas despontando. Que tipo de lideranças políticas estamos construindo assim? Provavelmente os adeptos do bullying se sentirão confortáveis nas arenas políticas do futuro. Precisaremos de políticos com habilidades de defesa pessoal para os casos constantes de embates que chegarão às vias de fato, tal o embrutecimento e empobrecimento intelectual que observamos atualmente. Em meus sonhos a UFMT um dia se retratará pelo tratamento que deu a esses estudantes de Sinop, e em especial àquele que teve que enfrentar processo na justiça por representar o movimento estudantil do campus. Alguns poderiam dizer que os embates políticos são assim mesmo, e quem não é forte o suficiente é bom mesmo que seja “eliminado do jogo”. O problema é o tipo de “forte” que estamos selecionando. Seriam os mais qualificados para as complexidades da arena política, com formação ampla e experiência na representação de sua base? Ou seriam os que falam de forma mais fácil de entender, os que se colocam em evidência por motivos os mais chocantes possíveis e são adeptos do que se convencionou chamar de “lacração”*?

A vida continua, e chegamos no hoje… no mesmo dia em que o sindicato estava votando a entrada na greve em curso, alunos da agronomia penduraram uma faixa contra a greve dos professores aqui no campus, antes mesmo de a greve ser deflagrada. Bem no estilo atual de política nacional: dicotômica, extremista, rasa e ofensiva. Muitos colegas ficaram de fato ofendidos. Eu não... Fiquei até com uma felicidadezinha estranha porque, desta vez, eu não chorei pelos nossos alunos. Pensei o quão significativo era que fossem alunos do mesmo curso do Miller... O que plantamos, colhemos, e isso vale para todos os cursos além da Agronomia. Como nos lembrou Prof. Ricardo Carvalho, em uma reunião da Adufmat-Sinop nos idos de 2013, durante a greve estudantil, “enquanto educadores, devemos ter em mente que as medidas adotadas por nós em relação aos alunos será repetida por estes dentro da sociedade.” Enfraquecer o movimento estudantil é vital para acabar com a universidade pública, e acabar com a universidade pública é vital ao modelo econômico que quer dominar a educação do pais. Quando nós, inadvertidamente, não zelamos, ainda que sejamos prejudicados por isso, pelo desenvolvimento daqueles que um dia poderão vir a ser representantes políticos em defesa da universidade pública, estamos nos prejudicando muito mais, só ainda não sabemos.

E a vida continua… com certeza chegaremos no amanhã. Como será? Responda quem puder...

Autora: Gerdine Sanson, 11 de junho de 2024

 

*eu não tenho certeza se entendi totalmente o que esta palavra quer dizer, mas me parece que é “calar a boca dos outros com argumentos irrefutáveis e de ampla compreensão pela maioria das pessoas”. 

Terça, 29 Setembro 2020 12:13

 

****
 
Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 

****

 
Por Gerdine Sanson*
 
 

Sinop, 28/09/2020

 
  

               Eu sou a atual coordenadora do curso de Medicina Veterinária no campus Sinop. Essa frase, aparentemente inócua, causou um imenso impacto na minha vida. No início, quando assumi o cargo, eu sentia medo de tanta responsabilidade, pois eu, na minha ainda então ingênua percepção das atribuições (definidas em projeto pedagógico), me considerava muito aquém das competências necessárias, por não ser formada em Medicina Veterinária. Depois, já ciente das reais atribuições que me cabiam na função (bem menos interessantes dos que as que estão no projeto pedagógico), me fazia sentir sem saída. Meu mandato era pra ter terminado no início de maio, mas foi prorrogado, pois não houve candidatos ao cargo para me substituir. Eu e meus colegas do Colegiado de Curso, conscientes da situação difícil deste momento, assumimos o compromisso de manter o mandato até que a situação crítica em que estamos por causa da pandemia COVID-19 se estabilize, e seja possível normalizar as atividades do curso. Parece que foi há muito tempo que isso aconteceu, lá por maio, já até nos acostumamos com a situação, e teria ficado por isso mesmo se a história agora não estivesse se repetindo, só que no curso de Enfermagem, aqui em Sinop. Houve a consulta eleitoral e, mais uma vez, ninguém se inscreveu para concorrer ao cargo. Será coincidência? Com certeza não é!

               A coordenação de curso tem função gratificada. Mas de que adianta? Não há dinheiro que justifique o tamanho do trabalho e dos aborrecimentos que causa. No campus Sinop, o coordenador de curso tem que desde atender alunos e cuidar de questões de estágios, até muitas vezes escrever as atas das reuniões pois o campus conta com algo em torno de duas a três secretárias para auxiliar nas demandas de nada menos que onze cursos de três institutos. O coordenador tem todas as funções que estão descritas em um manualzinho que tem que ler quando assume a função, e depois de um tempo descobre que tudo que tem escrito ali é o que menos tempo vai lhe tomar. Aí ele descobre o resto. Descobre que não vai ter professor pra todas as disciplinas do curso. Descobre que não vai ter laboratório para todas as aulas práticas. Descobre que não vai ter sala com ar-condicionado e projetor pra todas as disciplinas que necessitam. Descobre que a demanda de matrícula em algumas disciplinas é impossível de ser cumprida, e não tem professor pra abrir mais turma (nem sala, nem laboratório). Problemas nos estágios, problemas com os técnicos de laboratório, problemas com adoecimento de professores. O coordenador ainda tem que dialogar com outros pra tentar definir normas em comum ao seu instituto que depois mudam e ele nem sempre fica sabendo. Tem que acompanhar os alunos que apresentam características especiais sem ter nenhuma formação ou apoio pedagógico específico. Tem que administrar conflitos de seus pares os mais diversos possíveis, de forma justa e condizente com as normas institucionais, que nem sempre são fáceis de descobrir. E o pior de tudo, tem que fazer tudo isso dentro dos prazos estipulados sem a menor consideração pela sua humanidade, muitas vezes mais de um no mesmo dia, segundo o inexorável “calendário acadêmico”.

               Um dia, depois de trabalhar quase que ininterruptamente por aproximadamente 48h (período de ajuste de matrícula) eu ouvi da minha filha: “eu odeio essa coordenação de curso, ela está matando você”. Em uma outra oportunidade, me ouvindo reclamar, a mesma filha perguntou “por que é que só você tem que trabalhar tanto?” Eu respondi a ela automaticamente “porque é minha responsabilidade.” E ela disse: “por que você não larga isso?” “Porque eu não quero sair antes de terminar meu mandato.” Ela então disse, com toda razão: “Então não reclame.” E é isso que os coordenadores de curso de forma geral ouvem, seja em alta voz, ou nas entrelinhas das situações cotidianas: “Entrou porque quis, então não reclame.” Não reclame, não reclame… A gente pode até aprender a ser educado e não incomodar ninguém. Mas os colegas nos veem, cansados, exaustos, até deprimidos. No meu caso, sempre descabelada e eternamente com pressa. Meus alunos queridos, quando vem falar comigo, usualmente já começam a fala assim: “Me desculpe professora, sei que está muito ocupada, mas preciso de…” Olham com compaixão para mim, por saber o esforço que tenho feito para manter o curso funcionando. De um lado fico feliz por sentir o carinho dos acadêmicos e dos colegas, mas me sinto realmente péssima por passar tal impressão. Quem vai querer em sã consciência passar por isso também? É sabido que qualquer projeto de extensão ou pesquisa do docente será extremamente prejudicado caso ele tenha que assumir essa função. Eu mesma tive que sair da coordenação de um, que por sorte pode ser continuado por um colega de área afim. Não sei onde vamos parar, mas sei que, do jeito que vamos em Sinop, vai ter que ser com coordenadores de curso que foram obrigados a assumir o cargo. É realmente, o fim.
 

*Gerdine Sanson

Professora da UFMT/Sinop
O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.