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Terça, 18 Março 2025 11:19

PRODUÇÃO SOCIAL DE TIJOLOS - Aldi Nestor de Souza

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Espaço Aberto é um canal disponibilizado pelo sindicato
para que os docentes manifestem suas posições pessoais, por meio de artigos de opinião.
Os textos publicados nessa seção, portanto, não são análises da Adufmat-Ssind.
 
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Antônio é um nome fictício. A história a seguir é baseada em fatos reais. Antônio era empregado de uma olaria, fazia tijolos daqueles conhecidos como comuns, artesanais, de barro ou de poeira. Na região de Antônio as olarias utilizavam uma fôrma que comportava dois tijolos. O processo manual, que é ocaso aqui, de fazer tijolos, consiste, uma vez preparado o barro, de pegar uma porção dele, preencher a fôrma, fazer o acabamento, retirar os tijolos da fôrma e colocá-los no sol para secar. Depois queimar.

Esse processo exige, basicamente, os seguintes movimentos: deslocar-se até o monte de barro para pegar uma porção suficiente para dois tijolos; levar essa porção até a fôrma; baixar-se diante dela, preenchê-la e fazer o acabamento;  devolver, quando houver, o excesso de barro para o monte; retirar os tijolos da fôrma, que na verdade é retirar a fôrma dos tijolos, já que esses são feitos no chão de um pátio onde permanecem até secar. A cada dois tijolos prontos, coloca-se a fôrma do lado destes e repete-se o processo até o pátio ficar repleto de filas paralelas de tijolos.

A semana de trabalho, nas olarias da região de Antônio, era composta de dois expedientes, manhã e tarde, de segunda à sexta feira, e um expediente na manhã do sábado. O pagamento do salário era semanal e feito por unidades produzidas, sempre ao meio dia do sábado.

Além de trabalhar na olaria, Antônio era, à noite, estudante de engenharia. Ele era, no universo dos trabalhadores das olarias da região, o único que conseguiu lugar nos bancos escolares da universidade. E tinha um certo orgulho disso. A família de Antônio, que sempre trabalhou de empregada nas olarias da região, tinha a maior esperança com ele na faculdade. Seu pai e sua mãe mal acreditavam que um dia teriam um filho “doutor”.

De tanto ouvir falar, durante as aulas da faculdade, sobre inovação, eficiência, eficácia, ganhos de produtividade e otimização dos processos produtivos, deu na telha de Antônio construir uma fôrma que, com o mínimo de esforço por vez, fizesse o máximo de tijolos. Antônio pensava em, por exemplo, com o mesmo esforço de fazer dois tijolos, que era o que ele fazia, quem sabe fazer uns quatro tijolos. Nessa altura do curso ele já tinha ouvido falar sobre as peripécias de Taylor.

Não perdeu tempo, decidiu inovar.  Nas horas vagas, meteu-se nos cálculos, nos estudos dos modelos físicos e matemáticos, nas propriedades do barro, na resistência dos materiais, no esforço físico humano exigido para cada movimento e para cada modelo de fôrma que, por obra de seus estudos, passaram a existir teoricamente, até alcançar a solução ótima: uma fôrma capaz de comportar 6 tijolos. A exigência de duas viagens ao monte de barro para trazer as porções capazes de preencher essa nova fôrma, significava um ganho substancial de produtividade, pois para se fazer 6 tijolos na fôrma de dois tijolos eram necessárias três viagens.

A disposição dos tijolos na nova fôrma também exigiu estudo. Não podia ser seis tijolos em paralelo, como na fôrma de dois tijolos, devido ao risco de estragar tijolos na hora de retirá-los da fôrma. Duas fileiras paralelas, de três tijolos cada uma, foi o modelo ótimo encontrado. O material utilizado, que devido ao peso não podia ser o mesmo da fôrma de dois tijolos, foi uma madeira muito mais leve, porém com resistência suficiente para não se quebrar no processo. Um estudo sobre as madeiras, portanto, teve de ser empreendido, ao cabo do qual, Antônio foi a uma marcenaria e mandou confeccionar um exemplar, que, uma vez pronto, numa segunda feira de manhã, ele o levou à olaria para testar.

Ao chegar na olaria, explicou para o dono do que se tratava, pediu autorização para fazer um teste, foi atendido e caiu em campo. Ao cabo de uma semana de trabalho, enquanto seus colegas fizeram, em média, o de sempre, cerca de 1000 tijolos por dia, Antônio atingiu a incrível média de 2,5 mil tijolos por dia e recebeu, por isso, 2,5 vezes o dinheiro que seus colegas receberam.

Nesse mesmo sábado, à tarde, enquanto Antônio saboreava os louros dessa vitória e planejava, eufórico, a partir de então, trabalhar só meio expediente por dia, para se dedicar cada vez mais aos estudos, o dono da olaria, encantado com a descoberta, foi à marcenaria e mandou fazer, sem sequer pedir licença a Antônio, um exemplar da nova fôrma para cada um dos demais funcionários da olaria e a partir da semana seguinte todos os colegas de Antônio passaram a atingir a mesma produtividade de 2,5 mil tijolos por dia.

Durante algumas semanas, os trabalhadores e o dono da olaria faturaram alto. Bamburraram, como se diz nos garimpos quando alguém acha uma pepita. Mas bastou as outras olarias da região descobrirem o segredo, que todas mandaram fazer fôrmas iguais e em pouco tempo, toda a região estava produzindo, em média, por trabalhador, 2,5 mil tijolos por dia. E ao inundarem a região de tijolos, a consequência seguinte foi que, com tantos tijolos feitos em tão pouco tempo, o preço dos tijolos veio abaixo e o que se pagava antes por 1000 tijolos, passaram a pagar por 2,5 mil tijolos.

Ou seja, Antônio se viu diante da inusitada situação de, depois de tanto estudo, e de tamanha inovação, ser obrigado a ter a mesma jornada de trabalho, a produzir 2,5 mil tijolos por dia e receber o mesmo dinheiro que recebia pelos 1000 que fazia antes.

E não parou por aí. A abundância de tijolos, mais do que suficiente para a região, forçou os preços ainda mais para baixo, o que exigiu, de algumas olarias, a demissão de trabalhadores, inclusive de familiares de Antônio, que passaram a questioná-lo.

Depois desse episódio, Antônio passou a se perguntar:

- Para que ou para quem serve, então, uma tecnologia que aumenta a produtividade?

Sem respostas e sem entender direito o que estava acontecendo, desenvolveu um certo ceticismo diante do que estava aprendendo na faculdade. A lição da olaria fez com que ele, a partir de então, olhasse sempre com muita desconfiança para os dogmas que sustentavam as aulas: inovação, empreendedorismo, produtividade, eficiência, eficácia, otimização.

Certo dia, na faculdade, ao compartilhar a história da fôrma e também suas desconfianças com o que estava estudando, um de seus professores disse:

- Você deveria ter patenteado a fôrma.


Aldi Nestor de Souza
Professor do Departamento de Matemática da UFMT-CUIABÁ
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